OS ESPECTROS DA MORTE (Tradições Galegas: A Companha) - Conto Clássico de Terror - Juan de Dios de La Rada
OS
ESPECTROS DA MORTE
(Tradições
Galegas: A Companha)
Juan
de Dios de La Rada
(1827
– 1901)
Tradução
de Paulo Soriano
I
Logo
será meia-noite.
A
trêmula luz da Lua esparge a sua morna claridade a intervalos regulares,
iluminando com matizes sombrios o fundo
do vale.
Uma
casa rodeada de ciprestes se destaca lugubremente em meio à parda vegetação do
terreno, qual os horrendos fantasmas lendários que vagam em torno dos escombros ruinosos de
um castelo.
A
disforme silhueta daquela pobre mansão e dos funéreos arbustos ora se encolhe, ora
se prolonga, ora desaparece completamente, conforme a caprichosa viragem das
sombrias nuvens que cruzam a atmosfera.
Não
há nada que embeleze a escuridão do céu ou o silêncio aterrador da paisagem.
A
natureza adormecida parece apenas despertar não para tanger o ouvido com a
música harmoniosa da torrente, mas com o surdo murmúrio da água deslizando de
pedra em pedra; não com a delicada cautela do rouxinol, mas com o estridente ruflar
da cigarra; com aquele desagradável sonido que tantas vezes nos vêm à lembrança
quando ouvimos a lenha verde a ranger no fogo.
Os
cães lançam uivos tristes e prolongados; e, se o vento agita as flores, assim o
faz para produzir sibilos mais imponentes
que os dos monstruosos répteis da América.
Que
gênio maléfico repousa em uma morada de tão sombrios arredores?
II
Entre
na vivenda dos Ciprestes.
O
que o assusta?
Ah!
É o pobre Ali, o fiel mastim que insiste em ladrar teimosamente.
Não
tenha medo; abra a porta e ele vai cobri-lo de carícias.
Dê-lhe
um pedaço de pão. Há tanto tempo que ele não come!
Mas...
o que o detém? Suba sem demora. Não ouve um soluço?
É
o gemido de uma mulher. Não faça barulho; apenas a escute:
—
Meu Deus! Meu Deus! Não o leves ainda. Ainda não é a hora! — exclama uma anciã
ajoelhada aos pés de um leito mesquinho, apertando violentamente um tosco crucifixo
de madeira contra o peito.
—
Sai daqui! Vai embora! — replicou o homem doente, sacudindo convulsivamente com
um pé o ombro da anciã lastimosa.
—
Lembra-te de Deus! Nicolau, lembra-te do mal que fizeste neste mundo! — insistiu
a mulher, lançando gemidos desgarrados.
—
Deixa-me! Eu não estou morrendo, não... Eu quero ver o meu filho, o meu
Manuel... para lhe dar a chave.
Dizendo
isto, Nicolau, pelejando para se erguer da cama, mostrava, com um ignóbil e
repugnante sorriso, uma chave que seus dedos descarnados apertavam violentamente.
— Não pensaste senão em ouro durante tua vida
inteira: olvidaste as tuas obrigações, a educação do teu filho, o socorro dos
desvalidos, a observância dos deveres religiosos. Agora, os últimos momentos da
tua vida se aproximam; e, surdo à voz da tua alma, só tens em vista a riqueza miseramente
adquirida.
—
Queres me matar? — perguntou o enfermo com uma voz rouca e sufocada, estendendo
os punhos num gesto de cólera.
A
pobre esposa deixou que deslizassem as lágrimas e beijou fervorosamente a
imagem do Crucificado.
Nicolau
teria cerca de sessenta anos. Sobre o seu crânio, nu e debastado, flutuavam
apenas crespas e sujas mechas brancas; os seus olhos, fundos e brilhantes, estavam
rodeados por uma curva roxa; as suas maçãs, salientes e ossudas, destacavam-se
ao lado de um nariz fino e aquilino, cuja ponta avançava sobre lábios trêmulos
e descoloridos. Rugas profundas sucavam-lhe o rosto e as sobrancelhas arqueadas,
unidas pelas extremidades, conferiam àquela fronte comprimida e recuada, àquela
fisionomia amarelada, o tom sombrio da mais sórdida avareza. A cama em que ele jazia
eram três tábuas sustentadas por dois deletérios cavaletes, e, sobre eles,
estendia-se um mesquinho colchão de palha coberto por dois lençóis sujos, além
de um cobertor, em que a agulha se empenhara
para fazê-lo triunfar sobre as injúrias do tempo.
Próximo
à cabeceira do doente havia um armário aberto e pregado na parede. Em frente à
cama, uma porta ligava aos demais cômodos da casa.
III
Havia, detrás da cama, um gabinete guarnecido
de janela.
Nesta
janela, apenas um painel de vidro estabelecia relação entre o exterior e o
interior.
Imóvel,
e com os lábios quase tocando o vidro gelado, estava um jovem que contava, no
máximo, dezessete anos.
Se,
aproveitando o fugaz raio de lua, que às vezes iluminava o seu semblante, quiséssemos
examiná-lo, nada chamaria a atenção naquela cara gorda, redonda e morena, a não
ser o branco esmalte dos dentes, que pareciam de marfim polido.
Este
rapaz era o filho do avarento Nicolau. Era Manuel, a quem o moribundo tanto
desejava ver. De seu escondido mirante, parecia preocupado com o que descobria
lá fora. Falava alto, abria os olhos, e às vezes tremia, revelando sempre
agitação e surpresa.
—
Estão se aproximando — disse ele —, e já chegam ao nosso curral; um, dois,
três... são sete! Virgem Maria, protegei-me!
E
o atemorizado jovem, prosseguindo naquele monólogo, embaciava a superfície
pálida do vidro com a sua entrecortada respiração.
Mas
era em vão que o seu hálito umedecia o vidro transparente, porque a sua mão
apressada limpava-o com o lenço; e o camponês, estático, paralisado,
acorrentado a seu posto, satisfazia, com os olhos assustados, a anelante curiosidade
que o devorava.
Eis
o que ele acreditava ver e ouvir:
O
vento rugia impetuosamente, trazendo as agudas e intermitentes vibrações de um
sino tocando a finados.
Uma
nuvem de pássaros, negros e enormes, agitava-se, com aterrorizante voo, em
torno dos ciprestes do pátio, lançando, por vezes, dolentes e agudos grasnados,
que ressonavam nos ouvidos de Manuel com a mística entoação de um De
profundis.
No
curral, acabavam de entrar, envolvidos em sudários flutuantes, brancos como
flocos de neve, sete fantasmas que levavam nas mãos círios rutilantes,
consumidos por pálidas chamas.
Manuel
tremia incontrolavelmente: a tétrica dança — que, diante dos seus olhos
assombrados, os espectros encetavam — o encheu de estupor, entorpeceu as
faculdades da sua alma e concentrou toda a seiva de sua vida na vista e no ouvido.
Não
havia dúvida: diante dos seus olhos estava a Companha[1],
aquela sociedade de espectros noturnos que quase todos os camponeses galegos
acreditam ter visto, em algum momento da sua vida, ao cruzar um monte, bordejar
um rio, sair de casa, atravessar um bosque ou saudar um cemitério.
E,
tal qual, nas longas noites de inverno, ouvira descrita a aparição da Companha,
aglomeravam-se e se agitavam diante dos seus olhos os sinistros visitantes, cujas
luzes lívidas e oscilantes enchiam-no de pavor.
A
Companha formou um círculo em cujo centro brilhava uma luz mais exuberante
que as outras. Aquela roda girava como uma grinalda de estrelas, e ia-se
estreitando de um modo fantástico e misterioso, até quase suprimir a distância
entre o centro e a circunferência.
Um
bando de corujas, mochos e morcegos revoluteava junto à janela em que estava
Manuel.
A
luz da Lua ia-se desvanecendo: parecia prestes a extinguir-se.
As
aves noturnas apinhavam-se diante da janela com tal tenacidade que só a
intervalos permitiam ao jovem vislumbrar a dança dos fantasmas.
De
súbito, uma coruja passou voando, roçando com as asas o vidro da janela, e
lançou um prolongado crocitar que fez o Manuel recuar de assombro.
A
porta do quarto do enfermo abriu-se e a figura da anciã desenhou-se sob o dintel.
Manuel cravou-lhe um olhar incerto, quase
estúpido.
—
Roga a Deus por teu pai! — exclamou a velha, com uma entonação solene,
apontando para o alto.
—
Ele morreu? — perguntou o rapaz, precipitando-se para a janela como se absorto
e fora de si.
Não
havia nada no pátio; as aves e as luzes haviam desaparecido; só ao longe se
podia ouvir o tilintar de um sino.
Com
um rápido olhar, Manuel varreu o fundo da paisagem, e pensou que distinguia, entre
névoa e escuridão, seis luzeiros cujo brilho mortiço ia-se dissipando à
distância.
—
É verdade! É verdade! — repetia o jovem, golpeando-se na fronte. — Sete vieram
e só vejo seis! Mataram-no ou lhe puseram a luz negra! Oh, minha mãe! Velemos
o meu pai! As portas do céu fecharam-se para ele por toda eternidade!
Mãe
e filho caíram de joelhos.
IV
A
casa dos Ciprestes — onde o pobre não encontrava a esmola, nem a viúva o amparo,
nem o sedento a água, nem o desnudo o abrigo — foi, desde a morte de Nicolau,
refúgio dos desvalidos, asilo dos desgraçados, consolo de infortúnios e
calamidades.
Dizia-se
na aldeia que a Companha viera buscar a alma do falecido; mas o seu
filho e a sua viúva, por meio de esmolas e boas obras, fizeram desaparecer a
odiosidade que a ambiciosa conduta do usurário havia atraído àquela casa.
Fonte: “La Ilustración
de Madrid”, ano I nº 14, edição de 27 de julho de 1870.
[1]
A
Companha, ou mais precisamente Santa Companha, é uma
lendária tradição galego-portuguesa descrita como uma procissão de defuntos ou
almas penadas.
Comentários
Postar um comentário