FESTIM NO CEMITÉRIO - Conto Clássico de Terror - Cícero Pontes
FESTIM
NO CEMITÉRIO
Cícero
Pontes
(séc.
XIX)
I.
Era
uma noite escura e medonha. O trovão fazia ecoar em todo o espaço a sua voz de bronze.
Os relâmpagos fosforejavam no horizonte em um movimento contínuo. O mar ao
longe bramia, soltando agudos gemidos e a chuva caía a cântaros!
Parecia
que o gênio das tempestades, soerguendo-se em suas negras asas, ditava a uma coorte
de fúrias o completo extermínio da criação. Era a natureza em luta com os
elementos!...
As
casas do curato de N... conservavam-se fechadas, hermeticamente fechadas: nem
uma luz, nem um vestígio que denunciasse a existência de um ser humano. Apenas
o mocho, o agoureiro cantor das trevas, soltava de quando em vez um lúgubre
piar que, sendo levado por entre as fortes rajadas do vento, semelhava o
cântico fúnebre dos sepulcros, ou o rir infernal do demônio às últimas
convulsões de suas vítimas!
Era
horrível!
II.
O
caminho que conduz do pequeno curato de N... à cidade de C... é um estreito e
tortuoso carreiro, completamente deserto.
Os
grandes arvoredos que lhe orlam os lados e a densidade dos arbustos que aí se aglomeram
dão-lhe um ar sombrio e fantástico que faz estremecer de pavor, muitas vezes, o
coração dos poucos viajantes que por ele passam.
Além
disto, o único lugar descampado que há, e a que os habitantes do país lhe dão o
apropriado nome de Campo Negro, é povoado por um cemitério em ruínas, onde a
crença popular tem feito o teatro de mil fatos singulares.
Perguntai
por cada uma dessas lendas a qualquer morador do curato e ele, depois de
benzer-se duas ou três vezes, contar-vos-á, na linguagem expressiva do povo,
possuído de tal convicção e, apoiando-a de tantas circunstâncias, que vos verei
na necessidade de acreditá-lo ou de meditar profundamente no fantástico e na tradição.
Nenhum
deles, ainda mesmo que lhe prometais os tesouros de Monte Cristo, se animará a
transpor de noite e, principalmente, na de sexta-feira, a distância que separa
o curato da cidade: preferem fazer um caminho muito mais longo a passarem pelo
Campo Negro.
III.
Nessa
noite, porém, que acabamos de descrever, um homem abria cauteloso a porta de
sua casa e, entre os horrores da tempestade, marchava em direção à estrada que
vai do curato à cidade.
Embuçado
em uma longa capa, com um chapéu que lhe encobria a fronte, e com um grande
punhal atravessado à cinta, ele toma precipitadamente o caminho como que impelido
por uma força sobrenatural.
Nem
o raio que caía a seus pés, derribando as gigantescas atalaias da floresta, nem
a corrente que, impetuosa, se despenhava, talando os campos e os montes, nada,
nada o fazia demover do seu propósito: o seu pensamento era fixo e inabalável,
como o rochedo contra quem luta debalde o embate das ondas!
Oh,
quem seria o louco que, zombando assim das crenças de todo um povo, dirigia-se
a essas horas a um lugar reputado maldito, aonde nenhum outro se animava a ir?!
Quem seria o precito que, afrontando os próprios elementos, conjurava destarte
as iras do céu, a cujo poder ludo parecia curvado?!
IV.
Maurício
(assim se chamava o nosso desconhecido) era um mancebo de temperatura ardente e
caráter fogoso, que tinha aprendido um pouco de latim com o cura, e que, com o
vinho das orgias, tinha igualmente bebido o gelo da descrença.
Na
idade de vinte e dois anos, que então contava, tinha já perdido os seus pais,
honestos e industriosos agricultores, que, à força de uma severa economia, o
deixaram único senhor de uma modesta fortuna.
Só,
sem ter quem guiasse os seus passos na escabrosa estrada da vida, sem um
parente ou um amigo que o aconselhasse, ele costumava ir repelidas vezes à
cidade, onde tinha uma amante, e onde, em companhia de outros rapazes, entre o
vinho e as cartas, gastava quase sempre o dinheiro que levava. Sem participar
das crenças dos seus patrícios, a quem chamava supersticiosos e visionários,
encarando as coisas debaixo de um prisma todo diferente, Mauricio passava
sempre e a qualquer hora por esse caminho, que vai do curado à cidade, com a
maior indiferença possível.
Era,
portanto, para as orgias, para os braços da sua amante, a quem não via há dias,
que, ele corria pressuroso com semelhante tempo. Mas, dessa vez, a sua
curiosidade foi seriamente despertada, quando, ao chegar pequena distância do
Campo Negro, ouviu como que umas vozes que partiam do cemitério.
A
princípio, quis ele atribuir isso ao ciciar do vento na folhagem das arvores;
porém, ao passo que mais se aproximava, mais distintas se tornavam essas vozes:
já não era, pois, uma aparência, uma quimera — era uma realidade!
V.
Maurício,
tão veloz como o pensamento, e com o punhal na destra, galga em dois pulos a
distância que o separa do cemitério, franqueia as paredes desmoronadas e salta
dentro.
Horror!...
Sobre
a campa de um sepulcro, jazia um cadáver dilacerado. Uma multidão de esqueletos,
com gestos endemoniados, o rodeava; e fazendo desaparecer todos os seus membros
com uma voracidade incrível, bebiam em crânios reluzentes um sangue negro e
pútrido, que infeccionava o ar!
De
todas as sepulturas, levantavam fachos de uma cor azulada para iluminarem esse
horrível festim e de sob a terra saíam gemidos tão prolongados, suspiros tão
magoados, que se iam infiltrar, um a um, no coração do temerário rapaz!
Dir-se-ia
que Satanás, nessa hora, sentado sobre o seu trono de fogo, dava rendez-vous
a todas as fúrias do inferno!
Maurício
estava como que petrificado sobre seus pés: seu punhal havia-se-lhe escapado
insensivelmente das mãos; e ele, que jamais tivera medo, sentia sua coragem
abandoná-lo pelas copiosas bagas de suor que lhe saíam do corpo.
De
repente, sentiu uns lábios frios, frios como o mármore, que lhe pousavam nas
faces, e uns braços descarnados, que o apertavam convulsivamente: olhou e
achou-se nos braços de um cadáver, nos braços de sua amante que já era morta!
Um
grito agudo escapou-se-lhe do imo do peito, e com ele uma gargalhada estridente
repercutiu no espaço!
IV.
No
outro dia, dois viajantes, que passavam pelo Campo Negro, viram um homem
estendido dentro do cemitério.
Tomados
de medo, e na dúvida de que seria ou não algum fantasma, permaneciam em
expectação e a fazerem diversas conjecturas, quando um deles, vencendo a sua
própria repugnância, ali entrou e reconheceu Maurício.
Estando
convencido de que este ainda vivia, chamou o seu companheiro; e, fazendo uma
padiola de ramos, o conduziram para sua casa no curato, onde, graças aos
cuidados que lhe foram prodigalizados, tornou a si depois de algumas horas.
Uma
febre devoradora, porém, o teve prostrado por muito tempo na cama entre a vida
e a morte. E, ou fosse o vigor da mocidade, ou fosse a prontidão com que lhe aplicaram
os remédios, ele viu-se, enfim, escapo, conservando, todavia, uma dolorosa
impressão sobre o seu semblante.
A
notícia desse estranho acontecimento circulou imediatamente por todo o curato,
e a estrada do Campo Negro ficou, de uma vez para sempre, interceptada, pesando
sobre ela um anátema geral.
Fonte: “Revista Mensal da Sociedade
Ensaios Literários” (RJ), agosto de 1864.
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