O PAÍS DAS QUIMERAS - Conto Fantástico - Machado de Assis
O
PAÍS DAS QUIMERAS
(Conto
Fantástico)
Machado
de Assis
(1839 – 1908)
Arrependera-se
Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso
romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas
vezes funestos. Os feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, e é
também por esta circunstância que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou,
para falar mais decentemente, os espíritos prudentes e seguros.
Mas,
para justificar o provérbio que diz: debaixo dos pés se levantam os trabalhos —
a via terrestre não é absolutamente mais segura que a via marítima, e a
história dos caminhos de ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes
episódios.
Absorto
nestas e noutras reflexões estava o meu amigo Tito, poeta aos vinte anos, sem
dinheiro e sem bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia
silenciosamente uma vela.
Devo
proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito.
Tito
não é nem alto nem baixo, o que equivale a dizer que é de estatura mediana, a
qual estatura é aquela que se pode chamar francamente elegante na minha
opinião. Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz
descendente legítimo e direto do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga
como o verdadeiro trono do pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e
de objeto amado aos corações de quinze e mesmo de vinte anos.
Como
as medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um
reverso. Oh! triste coisa que é o reverso das medalhas! Podendo ser, do colo
para cima, modelo à pintura, Tito é uma lastimosa pessoa no que toca ao resto.
Pés prodigiosamente tortos, pernas zambras, tais são os contras que a pessoa do
meu amigo oferece a quem se extasia diante dos magníficos prós da cara e da
cabeça. Parece que a natureza se dividira para dar a Tito o que tinha de melhor
e o que tinha de pior, e pô-lo na miserável e desconsoladora condição do pavão,
que se enfeita e contempla radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece
quando olha para as pernas e para os pés.
No
moral Tito apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem
fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o
enobrecem. É bom e tem a virtude evangélica da caridade; sabe, como o divino
Mestre, partir o pão da subsistência e dar de comer ao faminto, com verdadeiro
júbilo de consciência e de coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse
mal ao mais impertinente bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas
idênticas, nos curtos dias da sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua
piedade e bons instintos o levaram uma vez a ficar quase esmagado, procurando
salvar da morte uma galga que dormia na rua, e sobre a qual ia quase passando
um carro. A galga, salva por Tito, afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o
deixou; à hora em que o vemos absorto em pensamentos vagos está ela estendida
sobre a mesa a contemplá-lo grave e sisuda.
Só
há que censurar em Tito as fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são
filhas mesmo das suas virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa,
não por meio de uma permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio
desonroso e nada digno de um filho de Apolo. As vendas que fazia eram
absolutas, isto é, trocando por dinheiro os seus versos, o poeta perdia o
direito da paternidade sobre essas produções. Só tinha um freguês; era um
sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que, sabendo da facilidade com que
Tito rimava, apresentou-se um dia no modesto albergue do poeta e entabulou a
negociação por estes termos:
—
Meu caro, venho propor-lhe um negócio da China...
—
Pode falar, respondeu Tito.
—
Ouvi dizer que você fazia versos... É verdade?
Tito
conteve-se a custo diante da familiaridade do tratamento, e respondeu:
—
É verdade.
—
Muito bem. Proponho-lhe o seguinte: compro-lhe por bom preço todos os seus
versos, não os feitos, mas os que fizer de hoje em diante, com a condição de
que os hei de dar à estampa como obra da minha lavra. Não ponho outras condições
ao negócio: advirto-lhe, porém, que prefiro as odes e as poesias de sentimento.
Quer?
Quando
o sujeito acabou de falar, Tito levantou-se e com um gesto mandou-o sair. O
sujeito pressentiu que, se não saísse logo, as coisas poderiam acabar mal.
Preferiu tomar o caminho da porta, dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me,
deixa estar!”
O
meu poeta esqueceu no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias
passaram-se e as necessidades urgentes apresentaram-se à porta com o olhar
suplicante e as mãos ameaçadoras. Ele não tinha recursos; depois de uma noite
atribulada, lembrou-se do sujeito, e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era,
e que estava disposto a aceitar o negócio; o sujeito, rindo-se com um riso
diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a condição de que o poeta lhe
levaria no dia seguinte uma ode aos Polacos. Tito passou a noite a arregimentar
palavras sem ideia, tal era seu estado, e no dia seguinte levou a obra ao
freguês, que a achou boa e dignou-se apertar-lhe a mão.
Tal
é a face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com
os dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido
quando se achou com a corda ao pescoço.
A
mesa à qual Tito estava encostado era um traste velho e de lavor antigo; herdara-a
de uma tia que lhe havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena
de ave, algum papel, eis os instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e
uma cama completavam a sua mobília. Já falei na vela e na galga.
À
hora em que Tito se engolfava em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva
caía com violência, e os relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu
deixavam ver o horizonte pejado de nuvens negras e túmidas. Tito nada via,
porque estava com a cabeça encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é
provável que não ouvisse, porque se entretinha em refletir nos perigos que
oferecem os diferentes modos de viajar.
Mas
qual o motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou
explicar à legitima curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de
vinte anos, poetas e não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos
pretos, um porte senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa
por este teor, havia influído por tal modo no coração de Tito, que o pusera,
pode-se dizer, à beira da sepultura. O amor em Tito começou por uma febre;
esteve três dias de cama, e foi curado (da febre e não do amor) por uma velha
da vizinhança, que conhecia o segredo das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta
de pé, com o que adquiriu mais um título à reputação de feiticeira, que os seus
milagrosos curativos lhe haviam granjeado.
Passado
o período agudo da doença, ficou-lhe este resto de amor, que, apesar da calma e
da placidez, nada perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente
apaixonado, e desde então começou a defraudar o freguês das odes,
subtraindo-lhe algumas estrofes inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus
íntimos pensamentos, tal qual como aquele Sr. d’Ofayel, dos amores leais e
pudicos, com quem se pareceu, não na sensaboria dos versos, mas no infortúnio
amoroso.
O
amor contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva
à tragédia ou à asneira. Era nesta alternativa que se debatia o espírito do meu
poeta. Depois de haver gasto em vão o latim das musas, aventurou uma declaração
oral à dama dos seus pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele
acabou de falar disse-lhe que era melhor voltar à vida real, e deixar musas e
amores, para cuidar do alinho da própria pessoa. Não presuma o leitor que a
dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo
contrário, um modelo da mais seráfica pureza e do mais perfeito recato de
costumes; recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de milícias,
homem de incrível boa-fé, que, neste século desabusado, ainda acreditava em
duas coisas: nos programas políticos e nas cebolas do Egito.
Desenganado
de uma vez nas suas pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da
memória a filha do militar; e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe
no coração como um punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a
lembrança, viva sempre, como ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao
meio das suas horas mais alegres ou menos tristes da sua vida, como aviso de
que a sua satisfação não podia durar e que a tristeza era o fundo real dos seus
dias. Era assim que os egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim,
como lembrança de que a vida é transitória, e que só na sepultura existe a
grande e eterna verdade.
Quando,
depois de voltar a si, Tito conseguiu encadear duas ideias e tirar delas uma consequência,
dois projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de
pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa
dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente
deixar este mundo; o outro, limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar
ou por terra, a fim de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava
o primeiro por achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe
melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos
de conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria
por mar? Qualquer destes dois meios tinha seus inconvenientes. Estava o poeta
nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem
seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas
encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a
muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar. Mas, ó pasmo!
mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial,
vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de
névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e
insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos loiros do mais leve e delicado
cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó
Afrodite! eis que uma criatura assim invade o aposento do poeta e, estendendo a
mão, ordena-lhe que feche a porta e tome assento à mesa.
Tito
estava assombrado. Maquinalmente voltou ao seu lugar sem tirar os olhos da
visão. Esta sentou-se defronte dele e começou a brincar com a galga que dava
mostras de não usado contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do
que a peregrina singular criatura cravando os seus olhos nos do poeta,
perguntou-lhe com uma doçura de voz nunca ouvida:
—
Em que pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça
dos homens? Dói-te a desgraça alheia, ou é a própria que te sombreia a fronte?
Esta
indagação era feita de um modo tão insinuante que Tito, sem inquirir o motivo
da curiosidade, respondeu imediatamente:
—
Penso na injustiça de Deus.
—
É contraditória a expressão; Deus é a justiça.
—
Não é. Se fosse teria repartido irmãmente a ternura pelos corações e não
consentiria que um ardesse inutilmente pelo outro. O fenômeno da simpatia devia
ser sempre recíproco, de maneira que a mulher não pudesse olhar com frieza para
o homem, quando o homem levantasse olhos de amor para ela.
—
Não és tu quem fala, poeta. É o teu amor-próprio ferido pela má paga do teu
afeto. Mas de que te servem as musas? Entra no santuário da poesia, engolfa-te
no seio da inspiração, esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.
—
Coitado de mim, respondeu o poeta, que tenho a poesia fria, e apagada a
inspiração!
—
De que precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração?
—
Preciso do que me falta... e falta-me tudo.
—
Tudo? És exagerado. Tens o selo com que Deus te distinguiu dos outros homens e
isso te basta. Cismavas em deixar esta terra?
—
É verdade.
—
Bem; venho a propósito. Queres ir comigo?
—
Para onde?
—
Que importa? Queres vir?
—
Quero. Assim me distrairei. Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?
—
Nem amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje, e pelo ar.
Tito
levantou-se e recuou. A visão levantou-se também.
—
Tens medo? perguntou ela.
—
Medo, não, mas...
—
Vamos. Faremos uma deliciosa viagem.
—
Vamos.
Não
sei se Tito esperava um balão para a viagem aérea a que o convidava a
inesperada visita; mas, o que é certo, é que os seus olhos se arregalaram
prodigiosamente quando viu abrirem-se das espáduas da visão duas longas e
brancas asas que ela começou a agitar e das quais caía uma poeira de ouro.
—
Vamos, disse a visão.
Tito
repetiu maquinalmente:
—
Vamos!
E
ela tomou-o nos braços, subiu com ele até o teto, que se rasgou, e passaram
ambos, visão e poeta. A tempestade tinha, como por encanto, cessado; estava o
céu limpo, transparente, luminoso, verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas
fulgiam com a sua melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os telhados
das casas e sobre as flores e a relva dos campos.
Os
dois subiram.
Durou
a ascensão algum tempo. Tito não podia pensar; ia atordoado, e subia sem saber
para onde, nem a razão por quê. Sentia que o vento agitava os cabelos loiros da
visão, e que eles lhe batiam docemente na face, do que resultava uma exalação
celeste que embriagava e adormecia. O ar estava puro e fresco. Tito, que se
havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas,
contava que, naquele subir continuado, breve chegariam a sentir os efeitos da
rarefação da atmosfera. Engano dele! Subiam sempre, e muito, mas a atmosfera
conservava-se sempre a mesma, e quanto mais ele subia melhor respirava.
Isto
passou rápido pela mente do poeta. Como disse, ele não pensava; ia subindo sem
olhar para a terra. E para que olharia para a terra? A visão não podia
conduzi-lo senão ao céu.
Em
breve começou Tito a ver os planetas fronte por fronte. Era já sobre a
madrugada. Vênus, mais pálida e loira que de costume, ofuscava as estrelas com
o seu clarão e com a sua beleza. Tito teve um olhar de admiração para a deusa
da manhã. Mas subia, subiam sempre. Os planetas passavam à ilharga do poeta,
como se fossem corcéis desenfreados. Afinal penetraram em uma região
inteiramente diversa das que haviam atravessado naquela assombrosa viagem. Tito
sentiu expandir-se-lhe a alma na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? O poeta
não ousava perguntar, e mudo esperava o termo da viagem. À proporção que
penetravam nessa região ia-se a alma do poeta rompendo em júbilo; daí a algum
tempo entravam em um planeta; a fada depôs o poeta e começaram a fazer o
trajeto a pé.
Caminhando,
os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas
reais. Tito pôde ver então que se achava em uma nova terra, a todos os
respeitos estranha: o primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Istambul
ou a poética Nápoles. Mais entravam, porém, mais os objetos tomavam o aspecto
da realidade. Assim chegaram à grande praça onde estavam construídos os reais
paços. A habitação régia era, por assim dizer, uma reunião de todas as ordens
arquitetônicas, sem excluir a chinesa, sendo de notar que esta última fazia não
mediana despesa na estrutura do palácio.
Tito
quis sair da ânsia em que estava por saber em que país acabava de entrar, e
aventurou uma pergunta à sua companheira.
—
Estamos no país das Quimeras, respondeu ela.
—
No país das Quimeras?
—
Das Quimeras. País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas
que não se acha consignado nas tábuas da ciência.
Tito
contentou-se com a explicação. Mas refletiu sobre o caso. Por que motivo iria
parar ali? A que era levado? Estava nisto quando a fada o advertiu de que eram
chegados à porta do palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados
que fumavam em grosso cachimbo de escuma do mar, e que se embriagavam com
outros tantos padixás, na contemplação dos novelos de fumo azul e branco que
lhes saíam da boca. À entrada dos dois houve continência militar. Subiram pela
grande escadaria, e foram ter aos andares superiores.
—
Vamos falar aos soberanos, disse a companheira do poeta. Atravessaram muitas
salas e galerias. Todas as paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de
papel prateado e lantejoulas.
Afinal
penetraram na grande sala. O gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava
sentado em um trono de casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado.
O próprio soberano tinha por coifa um pavão vivo, atado pelos pés a uma espécie
de solidéu, maior que os dos nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na
cabeça por meio de duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos
reais queixos. Coifa idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que
correspondem aos viscondes deste mundo e que cercavam o trono do brilhante rei.
Todos aqueles pavões, de minuto a minuto, armavam-se, apavoneavam-se, e davam
os guinchos do costume.
Quando
Tito entrou na grande sala pela mão da visão, houve um murmúrio entre os
fidalgos quiméricos. A visão declarou que ia apresentar um filho da terra.
Seguiu-se a cerimônia da apresentação, que era uma enfiada de cortesias,
passagens e outras coisas quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão.
Não se pense que Tito foi o único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os
presentes fizeram o mesmo, porque, segundo Tito ouviu depois, não se dá naquele
país o ato mais insignificante sem que esta formalidade seja preenchida.
Depois
da cerimônia da apresentação perguntou o soberano ao poeta que tratamento tinha
na terra, para dar-se-lhe cicerone correspondente.
—
Eu, disse Tito, tenho, se tanto, uma triste Mercê.
—
Só isso? Pois há de ter o desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós
temos cá a Senhoria, a Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas, quanto à
Mercê, essa, tendo habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que
julguei melhor despedi-la.
A
este tempo a Senhoria e a Excelência, duas criaturas empertigadas, que se
haviam aproximado do poeta, voltaram-lhe as costas, encolhendo os ombros e
deitando-lhe um olhar de través com a maior expressão de desdém e pouco caso.
Tito
quis perguntar à sua companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas
pessoas; mas a visão puxou-lhe pelo braço, e fez-lhe ver com um gesto que
estava desatendendo ao Gênio das Bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como
dizem os poetas antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante.
Neste
momento entrou um bando de moçoilas frescas, lépidas, bonitas e loiras... oh!
mas de um loiro que se não conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas
a correr, com a agilidade de andorinhas que voam; e depois de apertarem
galhofeiramente a mão aos gênios da corte foram ao Gênio soberano, diante de
quem fizeram umas dez ou doze mesuras.
Quem
eram aquelas raparigas? O meu poeta estava de boca aberta. Indagou da sua guia,
e soube. Eram as Utopias e as Quimeras que iam da terra, onde haviam passado a
noite na companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.
As
Utopias e as Quimeras foram festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes
e bater-lhes na face. Elas alegres e risonhas receberam os carinhos reais como
coisa que lhes era devida; e depois de dez ou doze mesuras, repetição das
anteriores, foram-se da sala, não sem abraçarem ou beliscarem o meu poeta, que
olhava espantado para elas sem saber por que se tornara objeto de tanta
jovialidade. O seu espanto crescia de ponto quando ouvia a cada uma delas esta
expressão muito usada nos bailes de máscaras: Eu te conheço!
Depois
que saíram todas, o Gênio fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no
soberano, a ver o que ia sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque
o gracioso soberano apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o mísero
hóspede que daqui tinha ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos
minutos, em virtude das mesuras, cortesias e beija-mão do estilo.
Os
três, o poeta, a fada condutora e o cicerone, passaram à sala da rainha. A real
senhora era uma pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e
graciosa; trajava vestido de gaze e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim
alvo, pedras finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça;
na cara trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido
corada pelo pincel da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e
delicados óleos.
Tito
não disfarçou a impressão que lhe causava um todo assim. Voltou-se para a
companheira de viagem e perguntou como se chamava aquela deusa.
—
Não a vê? respondeu a fada; não vê as trezentas raparigas que trabalham em
torno dela? Pois então? é a Moda, cercada de suas trezentas belas, caprichosas
filhas.
A
estas palavras Tito lembrou-se do Hissope. Não duvidava já de que estava no
país das Quimeras; mas, raciocinou ele, para que Dinis falasse de algumas
destas coisas, é preciso que cá tivesse vindo e voltasse, como está averiguado.
Portanto, não devo recear de cá ficar morando eternamente. Descansado por este
lado, passou a atentar para os trabalhos das companheiras da rainha; eram umas
novas modas que se estavam arranjando, para vir a este mundo substituir as
antigas.
Houve
apresentação com o cerimonial do estilo. Tito estremeceu quando pousou os
lábios na mão fina e macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão
esquerda um psiquê, onde se mirava de momento em momento.
Impetraram
os três licença para continuar a visita do palácio e seguiram pelas galerias e
salas do alcáçar. Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou
mulheres, algumas vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes
misteres de que estavam incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do
soberano. Tito percorria essas diversas salas com o olhar espantado,
estranhando o que via, aquelas ocupações, aqueles costumes, aqueles caracteres.
Em uma das salas um grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa
branca, leve e balofa. Naturalmente este lugar é a ucharia, pensou Tito; estão preparando
alguma iguaria singular para o almoço do rei. Indagou do cicerone se havia
acertado. O cicerone respondeu:
—
Não, senhor; estes homens estão ocupados em preparar massa cerebral para um
certo número de homens de todas as classes: estadistas, poetas, namorados etc.;
serve também a mulheres. Esta massa é especialmente para aqueles que, no seu
planeta, vivem com verdadeiras disposições do nosso país, aos quais fazemos
presente deste elemento constitutivo.
—
É massa quimérica?
—
Da melhor que se há visto até hoje.
—
Pode ver-se?
O
cicerone sorriu; chamou o chefe da sala, a quem pediu um pouco de massa. Este
foi com prontidão ao depósito e tirou uma porção que entregou a Tito. Mal o
poeta a tomou das mãos do chefe desfez-se a massa, como se fora composta de
fumo. Tito ficou confuso; mas o chefe, batendo-lhe no ombro:
—
Vá descansado, disse; nós temos à mão matéria-prima; é da nossa própria
atmosfera que nos servimos; e a nossa atmosfera não se esgota.
Este
chefe tinha uma cara insinuante, mas, como todos os quiméricos, era sujeito a
abstrações, de modo que Tito não pôde arrancar-lhe mais uma palavra, porque
ele, ao dizer as últimas, começou a olhar para o ar e a contemplar o voo de uma
mosca.
Este
caso atraiu os companheiros que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na
contemplação do alado inseto.
Os
três continuaram caminho.
Mais
adiante era uma sala onde muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os
diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os
pretextos para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e
espantalhos. Esses homens tinham ares de finos e espertos. Havia ordem do
soberano para não se entrar naquela sala em horas de trabalho; uma guarda
estava à porta. A menor distração daquele congresso seria considerada uma
calamidade pública.
Andou
o meu poeta de sala em sala, de galeria em galeria, aqui, visitando um museu,
ali, um trabalho ou um jogo; teve tempo de ver tudo, de tudo examinar, com
atenção e pelo miúdo. Ao passar pela grande galeria que dava para a praça, viu
que o povo, reunido embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução
que ia ter lugar. Crime de morte? perguntou Tito, que tinha a nossa legislação
na cabeça. Não, responderam-lhe, crime de lesa-cortesia. Era um quimérico que
havia cometido o crime de não fazer a tempo e com graça uma continência; este
crime é considerado naquele país como a maior audácia possível e imaginável. O
povo quimérico contemplou a execução como se assistisse a um espetáculo de
saltimbancos, entre aplausos e gritos de prazer.
Entretanto
era a hora do almoço real. À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a
rainha, dois ministros, um médico e a encantadora fada que havia levado o meu
poeta àquelas alturas. A fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a
mercê de admitir Tito ao almoço; a resposta foi afirmativa; Tito tomou assento.
O almoço foi o mais sucinto e rápido que é possível imaginar. Durou alguns
segundos, depois do que todos se levantaram, e abriu-se mesa para o jogo das
reais pessoas; Tito foi assistir ao jogo; em roda da sala havia cadeiras, onde
estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras
empertigavam-se os fidalgos quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras
de escarlate. Tito aproveitou a ocasião para saber como é que o conheciam aquelas
assanhadas raparigas. Encostou-se a uma cadeira e indagou da Utopia que se
achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do
costume, retirou-se a uma das salas com o poeta, e aí perguntou-lhe:
—
Pois deveras não sabes quem somos? Não nos conheces?
—
Não as conheço, isto é, conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque
quisera tê-las conhecido há mais tempo.
—
Oh! sempre poeta!
—
É que deveras são de uma gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?
—
Em tua própria casa.
—
Oh!
—
Não te lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e
aí, abrindo velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa
viagem acompanham-te algumas raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as
Quimeras.
Tito
compreendeu afinal uma coisa que se lhe estava a dizer havia tanto tempo.
Sorriu-se, e cravando os seus belos e namorados olhos nos da Utopia, que tinha
diante de si, disse:
—
Ah! sois vós, é verdade! Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias
e pesares. É no seio de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem!
Conforta-me ver-vos a todas de face e embaixo de forma palpável.
—
E queres saber, tornou a Utopia, quem nos leva a todas para tua companhia?
Olha, vê.
O
poeta voltou a cabeça e viu a peregrina visão, sua companheira de viagem.
—
Ah! é ela! disse o poeta.
—
É verdade. É a loira Fantasia, a companheira desvelada dos que pensam e dos que
sentem.
A
Fantasia e a Utopia entrelaçaram-se as mãos e olhavam para Tito. Este, como que
enlevado, olhava para ambas. Durou isto alguns segundos; o poeta quis fazer
algumas perguntas, mas quando ia falar reparou que as duas se haviam tornado
mais delgadas e vaporosas. Articulou alguma coisa; porém, vendo que elas iam
ficando cada vez mais transparentes, e distinguindo-lhes já pouco as feições,
soltou estas palavras: — Então! que é isto? por que se desfazem assim? — Mais e
mais as sombras desapareciam, o poeta correu à sala do jogo; espetáculo
idêntico o esperava; era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como se fossem
feitas de névoa. Atônito e palpitante, Tito percorreu algumas galerias e afinal
saiu à praça; todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação. Dentro
de pouco Tito sentiu que lhe faltava apoio aos pés e viu que estava solto no espaço.
Nesta
situação soltou um grito de dor. Fechou os olhos e deixou-se ir como se tivesse
de encontrar pôr termo de viagem a morte.
Era
na verdade o mais provável. Passados alguns segundos, Tito abriu os olhos e viu
que caía perpendicularmente sobre um ponto negro que lhe parecia do tamanho de
um ovo. O corpo rasgava como raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu, e
cresceu até fazer-se do tamanho de uma esfera. A queda do poeta tinha alguma
coisa de diabólica; ele soltava de vez em quando um gemido; o ar, batendo-lhe
nos olhos, obrigava-o a fechá-los de instante a instante. Afinal, o ponto negro
que havia crescido, continuava a crescer, até aparecer ao poeta com o aspecto
da terra. É a terra! disse Tito consigo.
Creio
que não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma,
perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta
foi a alegria. Tito pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse
em terra seria para nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante
de si, e encomendou a alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até
que — milagre dos milagres! — caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não
houvesse dado aquele infernal salto.
A
primeira impressão, quando se viu em terra, foi de satisfação; depois tratou de
ver em que região do planeta se achava; podia ter caído na Sibéria ou na China;
verificou que se achava a dois passos de casa. Apressou-se o poeta a voltar aos
seus pacíficos lares.
A
vela estava gasta; a galga, estendida sob a mesa, tinha os olhos fitos na
porta. Tito entrou e atirou-se sobre a cama, onde adormeceu, refletindo no que
lhe acabava de acontecer.
Desde
então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz
na cabeça miolos ou massa quimérica. Devo declarar que poucos encontra que não
façam provisão desta última espécie. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu
entro no número das pouquíssimas exceções. Em que pese aos meus desafeiçoados,
não posso retirar a minha confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa
viagem, e que pôde olhar de face o trono cintilante do rei das Bagatelas.
Publicado
originariamente em “O Futuro” (RJ), 1862.
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