O SINISTRO CASAL DÉMALON - Conto Clássico de Crime e Mistério - Henri Falk
O
SINISTRO CASAL DÉMALON
Henri
Falk
(1881
– 1937)
Tudo
parece simples, igual, em certas existências — disse-nos Léon Magros, que tem a
mania de parecer filósofo. — E, no entanto, se examinamos mais detidamente cada
fato...
—Dê
um exemplo — um de nós ordenou.
—
Se estão dispostos... Ei-lo. Conheci, há tempos, um velho casal, o Sr. e a Sra.
Démalon, casados havia mais ou menos trinta anos. Ele já ultrapassara de pouco,
ela em breve atingiria os sessenta anos.
Quando Gustave Démalon, pequeno funcionário,
conseguiu sua aposentadoria, sua esposa, professora de piano, deixou de dar
lições aos poucos alunos que ela ainda disputava com a triunfal invasão das
pianolas e dos discos fonográficos.
Compraram
uma pequena casa nos subúrbios e o restante de suas magras economias foi
suficiente para lhes permitir viverem felizes, porque não tinham ambições, mas sim
uma longa prática de privações e de mútuas ternuras. E os vizinhos admiravam
aquele casal, modelo das virtudes conjugais.
Quando
os fatos, que vou narrar, ocorreram, eu os conhecera havia um mês. Vocês sabem
que, no verão, costumo alugar um pavilhão na margem do Sena, a fim de retemperar
meu espírito na meditação e na pesca. Um livreiro, que ali mora também, apresentara-me
ao Sr. Démalon que, por sua vez, me a presentara à sua esposa. Sem dúvida, conquistei
sua simpatia à primeira vista, porque logo me convidaram para jantar. Aceitei.
A
pequenina sala tradicional, o ambiente pacato, a toalha com pintas vermelhas. Uma
sopa de aveia e ervilhas.
—
Não repare nosso jantar tão frugal — suplicou a Sra Démalon.
—
O Sr. Magros, querida, compreende que, em nossa idade, temos de ser, frugalmente,
vegetarianos — explicou o Sr. Démalon, acariciando a mão de sua companheira,
pousada sobre a mesa
—
Também eu prefiro — respondi delicadamente... — Em geral, abusamos das dietas
baseadas em carne.
Eles
sorriram com serenidade, sentamo-nos e eu teria ficado satisfeito se pudesse
renovar, moderno Júpiter, o milagre do vaso inesgotável, porque uma só garrafa
de vinho tinto foi toda nossa bebida. Depois, em minha honra, a Sra. Démalon
depositou sobre mesa um enorme queijo branco e um pote de geleia.
—
Nem sempre é dia de festa! — declarou meu anfitrião.
Separamo-nos
os melhores amigos deste mundo.
Na semana seguinte, sendo forçado a dar um
pulo a Paris para tratar de um negócio urgente, não foi pequena minha surpresa
quando, ao voltar, vi o Sr. Démalon, muito pensativo, na estação.
—
Como! O senhor por aqui? — exclamei. — E eu que imaginava que jamais
abandonaria seus pensamentos campestres.
Ele,
visivelmente embaraçado, respondeu:
—
Tive de vir a Paris. Veja só!
Intrigado,
subi para o mesmo vagão em que ele entrou e, graças a uma série de perguntas
bem desviadas, consegui saber que o cupom de um formidável concurso de Ano Novo
fizera-o ganhar cem mil francos.
—
Isto é, ganhamos, minha mulher e eu — corrigiu ele. Vim consultar alguém
bem informado; nós compramos esse título premiado com o dinheiro comum. Mas, já
que lhe disse tudo, doutor, eu desejaria fazer-lhe dois pedidos: primeiro, nada
dizer, a quem quer seja, lá onde vivemos, porque não nos deixariam em paz, Marguerite
e eu; em seguida, indicar-me, o senhor que é advogado e conhece bem essas coisas,
de que modo seria mais conveniente colocar esse dinheiro. Porque — não é
verdade? — é a mim, como chefe da família, que cabe investir o capital como
melhor me parecer.
—
De fato — respondi —, é o senhor quem gere o patrimônio comum.
—
O patrimônio comum... — balbuciou o velho, como se fosse o eco e muito
pensativo.
Conservou-se
calado por muito tempo. Quando chegamos, recomendou-me, mais uma vez, que
guardasse segredo. Dei-lhe minha palavra e ele se afastou, fazendo visíveis
esforços para dominar sua agitação.
Tive oportunidade, dois dias mais tarde, de
encontrar em uma rua deserta, por onde vinha, com ar preocupado, a Sra. Démalon.
Não quis perder a ocasião e felicitei-a por sua sorte. Ela respondeu-me com um
erguer de ombros e um fulgor estranho no olhar:
—
Ah! Sorte... Sim! O dinheiro é dele e meu. No entanto, Gustave quer empregá-lo
a seu modo sem me dar satisfações.
Uma
semana inteira passou.
Certa
tarde, com o deitar do Sol, escondido quase entre moitas floridas, eu tentava
pescar algumas trutas, quando julguei ver, muito ao longe, o velho casal,
caminhando ao longo do rio, discutindo e gesticulando. Uma cortina de árvores
se interpôs entre eles e meus olhos. Ao cair da noite, voltei para meu pavilhão
e a minha criada contou-me que se passara um drama horrível. Não adivinham? Um
quarto de hora depois, eu ouvia o Sr. Démalon, em lagrimas, contar, a mim e a
outros amigos ali reunidos, que sua adorada esposa, a pobre e cara Margarida,
passeando pela margem do rio, caíra na água, tão profunda naquele trecho que,
tentando salvá-la, ele quase se afogara também... Seu desespero era de
enternecer. Todas as pessoas choravam. Todas, menos eu, bem entendido. Compreendem
por quê?
Mas
eu podia exprimir minhas suspeitas? Nesse momento, julguei que não. Todavia, depois,
a convicção cravou de tal modo em meu cérebro que, após alguns dias de
hesitações angustiosas, eu estava decidido a ir à polícia. Foi quando uma notícia
atravessou, como um relâmpago, a pequenina aldeia: o Sr. Gustave Démalon caíra
da janela de sua residência e fraturara o crânio.
Vou
descrever com exatidão o triste fato. Fora de uma janela minúscula, a janela da
mansarda, que o ancião caíra à rua, arrastando, em sua queda, um pedaço da
grade do peitoril, sem dúvida bichada e carcomida. Ninguém se interessou por
esse pedaço de madeira. Eu, entretanto, examinei-o sem que ninguém o notasse. E
verifiquei que a tába do peitoril da janelinha fora serrada não havia muito
tempo.
Aí
está! Compreenderam? Cada um dos Démalon, com a cabeça alucinada, o coração
transtornado pela fortuna que viera quando menos esperava, tivera um só pensamento:
fazer perecer o outro para ficar único dono de tudo. O marido atirara a mulher
no rio. E a mulher matara o marido, indiretamente, serrando a barra da janela em
que ele costumava se apoiar todas as tardes.
—
Está louco, Magros! — interrompemos em coro.
—
Afirmo-lhes que é verdade! — articulou ele, com força. — Eu os conhecia. Somente
eu estava em condições de pesar os imponderáveis: dois assassinatos, dos quais
um retardado. Mas, para toda a gente, um acidente e um suicídio! Porque a história
não tardou a ser forjada e, no dia do enterro do velhote, os assistentes
repetiam, com voz úmida de lágrimas:
—
Era de esperar... Ela partira... Era evidente que ele não tardaria a seguir a
velha companheira.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: “Eu Sei Tudo”
(RJ), setembro de 1930.
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