A ENCLAUSURADA - Conto Clássico Fúnebre - Emilia Pardo Bazán




A ENCLAUSURADA

Emilia Pardo Bazán

(1851 – 1921)

Tradução de Paulo Soriano

 

Reclinada sobre tapetes persas, pálida e triste, entre as fumaredas  de turíbulos que a envolvem em nuvens de exóticos incensos e violentas fragrâncias orientais, a czarina treme, porque seu marido — seu terrível marido — retornará da guerra ou da caça. E, quando ele voltar, a czarina sofrerá o suplício da marmórea indiferença e o desdém brutal com que seu senhor a olha e a trata, farto de sua formosura e aborrecido com a mulher que não consegue atraí-lo aos seus braços.

Por que o czar a odeia? A czarina ignora. Seus espelhos de prata polidos lhe dizem que é linda. Sua caudalosa ramagem de cabelos, cor de cobre limpo, ondula e derrama-se em cachos até a borda do pesado cafetã de veludo verde bordado de ouro. Seus traços perfeitos parecem cinzelados, como costumam parecer os de suas conterrâneas, as filhas da Geórgia. Sua pele clara reluz com um doce brilho nacarino. Suas mãos são tão delicadas e longas quanto as do ícone de marfim que se ergue de um nicho junto à cama. A czarina sabe tocar, sabe cantar, e ela mesma compõe os versos de seus melancólicos lamentos. Por que o czar a detesta? Ela não ousa perguntar. Talvez ele mesmo não o saiba. Sentimentos existem cuja origem a alma — onde eles reinam — desconhece.

Ouvem-se os latidos de cães, o relincho de cavalos, a algazarra de caçadores. O czar retorna. A czarina, tremendo, ensaia o sorriso, pinta as faces, prende ao peito uma rosa de Teerã, colhida da roseira de que ela mesma cuida, e sai ao encontro do marido, como deve fazer toda esposa fiel e amorosa. Enquanto despojam o czar de seus adereços  de caça e o vestem com roupas prolixamente bordadas, a czarina espera prender ao seu soberano o broche redondo de turquesas e granadas que segura a túnica. Quando se adianta, pronta para fazê-lo com um gesto amoroso, o czar a repele.

— Czarina, eu te detesto. Tua visão é amarga como absinto. Eu odeio teus olhos azulados e tuas lágrimas infantis, que não logras esconder. Eu odeio a rosa que te adorna, a fragrância que teus lábios exalam. Odeio tuas mãos de marfim, semelhantes às do ícone, e teus pés bem torneados, que vi nus. Apara esse cabelo comprido e encaracolado e, sem murmurar, desaparece nas trevas do convento.

— Em que delinqui? Tenho sido leal a ti. A ti tenho amado e obedecido como a mão obedece à vontade... Qual é a minha culpa?

— Nenhuma. Odeio-te. Nada mais posso dizer-te. Basta. Serás trancafiada numa cela de pedra com três janelas. Da primeira, verás uma igreja com cúpulas douradas; da segunda, um jardim cheio de flores; da terceira, um cemitério onde hás de jazer.

— Por compaixão! — geme a jovem, prosternada. — Deixa-me livre, czar ortodoxo, e mendigarei o meu sustento! Deixa-me ocupar o último posto entre as servas do palácio e jamais me lembrarei de que fui um dia a czarina.

— Quem foi um dia permanece sendo. Levarás à cela a tua excelsa coroa de pedraria, teu manto forrado de zibelina, teus colares relicários. Despacha-te daqui. Hoje te esperam no convento da Virgem Santíssima.

Para lá conduzem, na mesma noite, a Czarina. Enclausurada em sua cela, assim que acorda, suspeita que teve um sonho horrível, mas não pode duvidar. Ela reconhece as três janelas, das quais vê a igreja, o jardim e o cemitério com seus túmulos relvados e seus ciprestes sombrios. Balança a cabeça: sua soberba ramagem de cabelos desapareceu. Ela esconde o rosto nas mãos e chora, chora três dias e três noites, recusando o alimento.

No terceiro dia, exânime, ela bebe um jarro de kumis[1] e se resigna. Toda manhã, reza diante das cúpulas douradas; toda tarde, canta, acompanhando-se de sua bandurra, canções desoladas. Jamais olha pela janela que dá para o cemitério. Seu único consolo é olhar para o jardim florido. Mas o inverno se aproxima: o sopro de sua boca regelante despoja as árvores. A cinza estação apenas filtra a lívida claridade do Sol. Véus incertos flutuam no horizonte, como névoas de fumaça. Um polvilho pálido desce lentamente, arrefecendo ainda mais a fraca luz do dia. Pouco a pouco, o polvilho se transforma em grãozinhos de maná, depois em flocos finos, que evoluem a compactos e densos. A terra embranquece. Dir-se-ia que o ar também embranquece. Ao longe, um infinito branco funde a terra ao céu. Neve por toda parte, neve até sumir de vista: imobilidade e mutismo fúnebre, e a czarina, enclausurada, sob as suas peles de marta e arminho, estremece como se envolvida pelo silencioso véu da morte.



Meses e meses se passam: chega a primavera. A gleba negra fumega e ressuda ao Sol de abril. Diz-se que as cascas das árvores rangem e os brotos rebentam; que a estepe ri e que os pássaros alucinam. A czarina deixa que deslizem os ricos casacos de pele e assoma à janela. Não muito distante, pelo caminho tortuoso, vê passando os peregrinos que se dirigem a Jerusalém, mujiques que semeiam trigo e linho, monges, cossacos, babás carregando os pequerruchos nos ombros. E ela canta os seus lamentos, esperando que alguém a ouça e fixe um olhar misericordioso na janela. Ninguém a escuta, ninguém se volta para ela, exceto um velho vagabundo que, ao crepúsculo, passa próximo às paredes do jardim.

— Que tens, menina? Por que te trancaram? — pergunta o velho. — Cometeste, sem dúvida, um crime?

— Ai de mim! — responde a enclausurada. — Nada fiz de errado. Cristo o sabe. Estou aqui porque o czar me odeia. Salva-me, cristão ortodoxo.

— Se nosso pai, o czar, te odeia, é com razão e justiça.

— Sem razão, por mero capricho, ele me odeia.

— Fala com maior sensatez, menina. Não podemos compreender o czar ou Cristo — o czar do céu — e ambos estão sempre certos. Sofre e silencia...

E o velho se afasta lentamente, como se ainda pelejasse entre um impulso compassivo e a convicção de que somente lhe cabia — pobre mendigo errante — prostrar-se ao ouvir o nome do czar. A enclausurada grita-lhe, chama-o por nomes carinhosos. Uma corda que o velho lança à sua janela é a liberdade, a salvação. A tarde caía, a Lua nascia, luminosa e redonda, o vagabundo já se confundia com o cinza da estepe sombria, lá na lonjura. Então a czarina, assomando à terceira janela, da qual ela sempre havia fugido — a que se volta para o cemitério —, estendeu os braços, em transporte de amor, para os túmulos relvados e às profundezas sepulcrais que se adivinham sob o solo mil vezes revolvido, recheado de mortos. Lá está a liberdade...



[1] Leite de égua acidificado e fermentado.


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