O FIM DO MUNDO - Conto Clássico Fantástico - Joaquim Manuel de Macedo
O
FIM DO MUNDO
Joaquim
Manuel de Macedo
(1820
– 1882)
I
Estava
reservada ao Martinho a triste obrigação de escrever a lúgubre história do
cataclisma por que passou a cidade do Rio de Janeiro, e por que muito
provavelmente há de ter passado o mundo inteiro no fatal dia 13 de junho.
Eu
sou o novo Noé que sobreviveu ao novo diluvio! Eu sou ao mesmo tempo o Moisés
do século das luzes, que deve referir o infausto caso do fim do mundo no ano de
1857.
Não
fui daqueles estouvados incrédulos que zombaram da profecia do cônego de
Liége; tive sempre a maior veneração pelos cônegos, e não havia de ser em uma
questão de cometa que o Martinho duvidasse da palavra de um cônego.
Também
não me contei no número dos terroristas e dos aterrados, que, esperando pelo
fim do mundo no dia 13 de junho, não pensaram em escapar ao dilúvio, e resolveram-se
a morrer imóveis e caladinhos como carneiros.
A
ideia de acabar como capão, peru, ou leitoa em dia de banquete me revoltava
deveras.
—Quê!
— disse eu a mim mesmo, conversando com os meus botões. — Quê! O Martinho, que
tinha direito a considerar-se imortalizado pela fama, há de assim sem mais nem
menos perder a sua imortalidade, reduzido a torresmo pelo fogo da cauda de um
cometa!
Dizem
que a diligencia é mãe da boa ventura: a indústria humana pode vencer quase o
impossível: pus-me a refletir, a imaginar, a combinar; gastei nisso mais tempo
do que qualquer dos meus colegas em estudar a sua parte num drama novo, e por
fim de contas dei um pulo, bati palmas, exclamei como Archimedes. Eureka!
Eureka era
o meio que eu tinha descoberto para livrar-me das rabanadas do cometa e
sobreviver ao cataclisma.
II
O
meu primeiro pensamento foi organizar uma companhia que tivesse por fim fazer
construir uma estrada de ferro para o mundo da Lua; mas abandonei esse projeto,
porque com a notícia da nova empresa, poderia o Banco do Brasil lembrar-se de
elevar ainda mais a taxa de juros, e tínhamos o diabo na praça, ainda antes de
aparecer o cometa.
Meditei
depois sobre a construção de uma segunda torre de Babel, pela qual pudesse eu
subir aos planetas e esconder-me no seio de Vênus, ou pelo menos em uma das
azas do caduceu de Mercúrio: não me faltavam materiais para a obra; porque a
torre de Babel é torre de confusão, e eu podia consequentemente arranjar muito
bons arquitetos no corpo legislativo; mas tive também de rejeitar esta ideia,
considerando que, publicada ela, encontraria eu logo algum outro pretendente
competidor, e dava-se então um caso de duplicata, em que não é de regra que o
bom direito seja atendido.
Tornei
a pensar, a refletir, a combinar, e dei enfim o meu salto de alegria, e mesmo
de casaca e de gravata ao pescoço (porque isto sucedeu exatamente à hora de
ensaio no teatro de S. Pedro de Alcântara, portanto sem estar em menores, ou nuzinho
em pelo, como Arquimedes, soltei o meu brado entusiástico: Eureka!
Guardei
muito em segredo o meu projeto, e esperei ansioso pelo dia 13 de Junho, e para
que não me faltassem recursos pecuniários para a minha longa viagem, fiz o meu
benefício no teatro de S. Pedro na noite de 9 de Junho isto é, 4 dias antes do
cometa.
E
fiquei esperando.
III
A
noite de 12 de Junho foi clara e formosa, como o rosto das amadas de todos os
poetas passados, presentes e futuros.
Em
redor das fogueiras de Santo Antônio os rapazes namoravam, os velhos falavam em
conciliação, as moças tiravam sortes, e as velhas comiam batatas, apesar de
serem as batatas a alimentação mais diabólica e ruidosamente indigesta que se
conhece.
Os
sinos deram o sinal da meia-noite.
Começava
desde esse momento o dia 13 de junho: era o dia do cometa.
Eu
estava com todos os órgãos dos meus sentidos, menos o olfato, exclusivamente ocupados
a esperar o bicho caudato.
Não
esperei muito.
IV
A
peça de artilharia e as bandeirolas do veterano Gabizo anunciaram incêndio.
Eram
cinco minutos depois da meia-noite.
O
Sr. conselheiro Melo oficiou a toda pressa ao Sr. ministro da guerra,
participando-lhe que avistara a pontinha da cauda do cometa.
Meia
hora depois, o Sr. Dr. Capanema foi acordado na Estrela pela campainha do telégrafo
elétrico, e recebeu e transmitiu para Petrópolis a tremenda notícia.
A
1 hora da noite o Jornal do Commercio publicou e espalhou
um suplemento dando conta ao público da funesta aparição.
O
Sr. José Maria dos Reis fez pregar anúncios nas esquinas das ruas, declarando
que alugava telescópios a todos os curiosos.
A
população começou a sobressaltar-se; as ruas encheram-se de gente, as senhoras,
como de costume, principiaram a gritar e a fazer matinada.
O
ministério, o conselho de estado, os senadores e deputados reuniram, e
celebraram sessão secreta no imperial observatório astronômico, cujo diretor
pediu que o dispensassem da presidência da grande assembleia, porque estava
todo ocupado em admirar o formoso e imenso dragão aéreo.
Estes
astrônomos parecem poetas!
No
meio de toda esta confusão, pus eu os pés na rua, e disse: «
—Martinho!
É chegada a hora da ação; faz o teu dever.
E
fiz.
V
Aluguei
um telescópio ao Sr. Reis, e observei o cometa; era um bicho enorme, e vinha-se
mostrando do lado do norte, e dirigindo-se para o sul.
Bem,
pensei eu; assim como o capoeira quebra o corpo tratando de livrar-se de uma
facada, assim eu escaparei da cauda do cometa, fugindo em direção oposta àquela
que ele segue.
E
tratei logo de realizar o meu projeto.
VI
Não
havia tempo a perder.
Começava-se
a perceber o cometa sem o socorro de instrumentos óticos.
Por
ordem da polícia, que despertara rabujenta, apagaram-se todas as fogueiras, e apesar
disso já se sentia calor como no mês de janeiro.
Deitei
a correr.
Entre
as companhias de seguros não achei uma de seguros aéreos; contentei-me, pois,
com a de seguros marítimos e terrestres, e segurei-me deveras: por este lado
estava arranjado.
Principiei
a minha obra, que devia ser nada menos do que uma escada que me levasse à
pequena distancia da Lua, contando daí por diante fazer o resto da viagem em
uma bem arranjada máquina de balões de crinolina, que com antecedência preparara.
Qualquer
outro no meu caso talvez procurasse construir a sua escada de cima do
Corcovado, da Gávea, ou do mais elevado ponto da serra dos Órgãos; mas eu,
que tinha calculado tudo, comecei a construção da minha de cima de montanhas
muito mais importantes e das quais talvez ninguém se lembrasse.
Peguei
no Monte-pio, e carregando com ele sobre os ombros, encarapitei-o
sobre o Monte de Socorro; já tinha, portanto, duas montanhas uma sobre
outra, e daí foi que comecei a arranjar a minha escada.
Tomei
como base o primeiro degrau da escada o Banco do Brasil; com a alta
de juros, só esse banco valia por mil degraus; em cima do Banco do Brasil coloquei
o Banco chamado Rural e Hipotecário, e trepei pelas hipotecas como
um macaco pelos ramos e raminhos da mais alta árvore ; sobre o Banco
Rural pus o Banco Mauá, sobre este o Banco Agrícola,
sobre o Agrícola o Banco Industrial e Agrícola,
sobre o Industrial e Agrícola o Banco do Rio de
Janeiro, e em cima de todos eles acomodei a Caixa Hipotecária,
que também me prestou um alto e excelente degrau. Banco sobre banco, já eu
tinha uma escada enorme: é verdade que os três últimos bancos ainda precisavam
de alguma obra para entrar em serviço ativo; mas a necessidade era urgente, e
eu aceitaria mesmo um banco de pé quebrado.
Se
não fosse o medo do cometa, creio que dado muito boas risadas com os
furores, raivas e desespero do aristocrático Banco do Brasil, ao
ver-se por baixo de tanto banquinho democrático; eu o ouvi bradar dez vezes sem
tomar folego:
— Vou
levantar os juros! Vou levantar os juros! Mas, sem lhe dar resposta, fui
cuidando em salvar-me do cometa.
Em
um abrir e fechar d'olhos, entrei pelos dormitórios dos profetas, ou acendedores
de gás, ajuntei todas as suas escadinhas, e mercê delas fui subindo pelos ares
acima.
O
medo emprestava-me asas, e eu voava como um passarinho: quando cheguei à última
escadinha, lembrei-me de olhar para baixo.
Olhei,
e nada vi... Um mundo imenso, mas um mundo com um enorme rabo estava entre mim
e a terra.
Era
o cometa!
Esse
monstro horrível tem um ponto de contato com os vaga-lumes, que são uns pobres
bichinhos da terra; tanto ele como estes trazem fogo na extremidade posterior
do corpo; mas os vaga-lumes são suros, e o cometa desenrola uma cauda tão
comprida como o orçamento da despesa geral do império quando lhe adicionam os aditivos.
VII
Respirei.
Compreendi
que tinha escapado são e salvo do fatal cometa: o fogo de sua cauda devia estar
abrasando a terra, que lhe ficava por baixo; mas a mim, que estava de cima,
apenas me causava uma sensação de calor um pouco forte.
Estive
pensando durante alguns minutos no que me cumpria fazer, e vendo que já não
corria perigo de morrer queimado, assentei que era conveniente esperar, e não
expor-me a viajar para Vênus ou Mercúrio nos meus balões de crinolina, que às
vezes pregam suas peças a quem os trazem.
Enquanto
estive pensando, o cometa continuou a sua derrota, e foi-se!
Mas
eu achava-me tão alto que não pude descobrir a terra, nem mesmo com o auxílio
de um binoculo que tinha trazido comigo.
VIII
Com
a retirada do cometa, o calor cessou e foi substituído por um frio horrível.
Constipei-me;
comecei a espirrar, e senti a mais dolorosa impressão, vendo que não havia ali
uma alma caridosa que me dissesse dominus tecum!...
O
isolamento é terrível; aqueles que repetem que antes só do que mal
acompanhado nunca se viram como eu isolado e a quatro braças da Lua.
Porque
eu olhei para cima e vi quase assentada sobre o meu nariz a Lua, que por sinal
estava cheia e tinha uma cara de bolacha de marinheiro.
O
frio redobrava: a neve do Francioni é brasa ardente em comparação da neve que
chovia sobre mim ali ao pé da Lua.
De
repente cairam-me as unhas: não me incomodei muito com isso; porque nunca tive ideia
de vir a ser tesoureiro; mas aterrei-me pensando que me podia cair também o
queixo, e um homem de queixo caído não se pode tolerar, nem mesmo quando é
namorado.
Puxei
o relógio; era meio-dia, exatamente a hora dos ensaios do teatro de S. Pedro de
Alcântara. A força do hábito destruiu todas as minhas hesitações; não pude
resistir, parecia-me que me estavam multando por faltar ao ensaio, e atirei-me
pelas escadinhas abaixo.
Cometi
a incivilidade de não me despedir da Lua.
Desci
como um raio. É de regra que se desce sempre mais depressa do que se sob ;
até os ministros de estado conhecem a verdade deste princípio de física, eles
que de ordinário poucas verdades conhecem.
IX
Cheguei
à Terra às duas horas menos um quarto, e quase que me esbarrei no chão, porque
encontrei todos os bancos rotos; apenas se conservara inteiro o Branco do
Brasil: é que os monumentos levantados pela sabedoria atravessam os séculos e
resistem aos mais formidáveis cataclismas.
Fiquei,
portanto, sabendo que o mais seguro degrau de escada por onde se pôde subir é o
Banco do Brasil.
Olhei
para todos os lados, e vi a cidade do Rio de Janeiro reduzida a um ermo. Todas
as suas casas estavam intactas, e apenas haviam perdido as vidraças, que o
calor excessivo tinha derretido; não havia mudança alguma, nem se ouvia ruído
algum, mas não se sentia vida.
O
cometa era sem dúvida partidista exclusivo do progresso material, porque
destruiu todos os homens e todos os animais, respeitando, porém, e deixando ileso
tudo quanto era puramente material, tudo quanto tinha existência sem ter vida.
O
cometa era materialista vermelho.
Aqui
e ali eu encontrava homens e mulheres estendidos nas calçadas, de cócoras ou em
pé nas esquinas, ou sentados às portas das casas; mas todos petrificados.
Tive
medo dessa horrível solidão; gritei, e ninguém me respondeu; um suor frio
correu-me de todo o corpo. Desatei a correr de olhos fechados até o teatro de
S. Pedro de Alcântara.
O
teatro estava aberto: entrei: no saguão avistei o bilheteiro sentado na sua
casinhola privilegiada, tendo as mãos cheias de bilhetes de plateia. Tinha
morrido como um herói no seu posto de honra.
Três
cambistas estendidos na porta do botequim deixavam ver cada um a seu lado uma
garrafa vazia: novos heróis que haviam passado à eternidade com intrepidez britânica.
Entrei
na plateia, e vi no tablado a companhia petrificada ao ensaiar a cena do
combate das Minas de Polônia. Tive dó de ver o Manoel Soares, morto
e reduzido a estátua, representando em minha falta o papel que eu fazia:
coitado! Morreu em meu lugar! Deus lhe fale n’alma.
O
ponto estava com o dedo indicador apontando na peça a nota vai-se e
com efeito foi-se!
É
o que se chama morrer a proposito.
X
Saí
desconsolado e aflito do teatro; mas, apesar da minha aflição, senti que tinha
uma fome de todos os diabos. Entrei na Fama do café com leite: o
Braguinha morrera com a pena na mão, improvisando versos à gloria do seu
botequim: é uma alma que foi parar ao Parnaso, e a esta hora está se banhando
na Hipocrene para se vingar dos ardores por que passou; os fregueses do
Braguinha achavam-se em redor das mesas, e um dos caixeiros expirara deitando
manteiga derretida em um pão Napoleão: comi-lhe o pão, que achei um pouco duro,
bebi café com leite que ainda fervia, e não tendo a quem pagar o almoço, e não
querendo ficar em dívida, rezei um padre-nosso pelo amo e caixeiro já defuntos,
e saí precipitadamente.
XI
Doeu-me
o coração ao entrar na Petalógica, que, como se via, tinha acabado em sessão
magna. O Paula Brito estava encostado a uma mesa, com os olhos fitos em um
numero da Marmota, em que zombara do cometa; o bacharel Gonçalves
morrera com um enorme abano na mão; o meu colega José Romualdo jogando
estoicamente uma partida de xadrez com o barão de Tautphoeus, que se achava a
ponto de dar xeque-mate no adversário; e o Viegas dando conta das últimas notícias
do cometa. Chorei pelos meus consócios, e fugi.
XII
Achei
me, sem saber como, no paço da câmara municipal; os heroicos vereadores morreram
em sessão aberta, e em discussão calorosa, e exatamente no momento em que o Sr.
Lobo pronunciava um discurso ad hoc.
Vi
um papel nas mãos do presidente da câmara e tive a curiosidade de o ler: era um
ofício em que os fiscais declaravam que desde as dez horas do dia tinha secado
toda a lama que havia nas ruas da cidade, e pediam por isso aumento de
ordenado. Felizmente, não houve tempo de despachar a petição.
XIII
O
cometa encontrara na câmara vitalícia os anciãos da pátria na mesma posição em
que os gauleses acharão os senadores romanos. Um veterano liberal tinha o braço
estendido para um conservador vermelho, e lhe oferecia a mão em sinal de paz e
conciliação; o conservador, depois de algumas cerimônias que ainda se lhe notavam
no expressão fisionômica, estendera também o seu braço... os dedos daquelas
duas mãos patrióticas estavam quase a tocar-se, quando o rabo do cometa passou
entre eles, e ficarão ambos os anciãos petrificados e com a conciliação no ar,
entre o polegar de um e o indicador do outro, como se fora uma pitada de tabaco
mútua! Sobre a perna de um outro senador, encontrei um bilhetinho, convidando-o
para uma reunião conservadora, com a declaração de que haveria nela sorvetes
por causa do calor.
XIV
Fatigou-me
esse passeio lúgubre em que andava, e tive vontade de colher algumas notícias a
respeito do cometa e dos seus estragos. Dirigi-me ao Jornal do Commercio.
Penetrei
na sala da redacção, e a primeira figura que se apresentou a meus olhos foi a
do Dr. Macedo morto, conservando, porém, derramada no semblante, a satisfação
que sentira ao ver que estava livre de escrever a Semana do
domingo, que era o dia seguinte.
O
Emílio Adet passara desta para melhor vida no meio dos seus trabalhos, e
achava-se estendido entre nuvens de folhas de papel, que continham uns três ou
quatro discursos de deputados: o Emílio Adet teve um passamento parlamentar;
morreu coberto de bravos, apoiados e aplausos.
O
Castro estava sentado na sua mesa, e ainda conservava a pena entre os dedos; os
vidros dos seus óculos haviam-se derretido com o excesso do calor; mas seus
olhos estavam fitos na folha de papel em que escrevia. Eram as notícias ou
era o boletim do cometa que ele preparava para o Suplemento do Jornal.
Foi com lagrimas nos olhos que li o que se segue :
“6
horas da manhã.”
“O
cometa vem-se aproximando com rapidez incrível; o calor aumenta a cada minuto;
os sorvetes e as ventarolas estão por um preço fabuloso. ”
“8
horas.”
“Reuniram-se
as câmaras extraordinariamente; mas permitiu-se a todos os representantes e
espectadores das galerias estar em mangas de camisa.”
“9
horas.”
“A
polícia mandou espalhar pelas ruas da cidade todos os foles que encontrou nas
ferrarias e casas de fundição: os pedestres e acendedores de gás ocupam-se em
tocar foles. No tesouro público, deu-se ordem para que os empregados entrassem
de chapéu na cabeça e casaca abotoada: é uma medida que está em harmonia com a
anterior que tinha banido os chapéus.”
“10
horas.”
“Há
febre na praça: as ações de todas as companhias sobem espantosamente; há uma
alta geral; querem todos morrer, provando que são homens de ações.
“11
horas.”
“O
cometa está quase não quase sobre nós; na rua do Rosário vendem-se todos os
queijos assados; das bicas das esquinas e de todos os chafarizes, a água corre
fervendo. — Conciliaram-se definitivamente os partidos políticos. — As pessoas
magras ainda se movem e falam: o nosso amigo Pitada queixa-se muito do calor,
mas ainda se supõe com forças para resistir. Aquelas que, pelo contrário, são
gordas, já estão prostradas e quase moribunda ; o Sr. Câmara, que chegara
anteontem de Petrópolis, acaba de morrer. ”
“Meio-dia.”
“Hoc
opus hic labor est!... Chegou a hora suprema.”
XV
Tudo,
portanto, estava acabado! Eu era o único vivente que se achava na cidade muito
leal e heroica; oh! tive vontade de chorar desesperado, como Mário nas ruinas
de Cartago!
Via-me
prodigiosamente rico: tinha palácios, pertenciam-me o tesouro público, os
cofres de todos os usurários, possuía riquezas incalculáveis: era, porém, uma
espécie de Adão sem Eva, e ainda em cima um Adão que, em vez de habitar no Paraíso,
devia morar em um cemitério descomunal!
Arrependi-
me de haver fugido do cometa: mil vezes antes morrer assado do que sobreviver a
um tal cataclismo para ficar em isolamento e na mais completa impossibilidade
de ser o tronco de uma nova geração!
Ah,
Martinho! Martinho! Como poderás tu viver sem aquele amado e respeitável público
que te aplaudia no teatro, que te encorajava com seus bravos e suas palmas;
como?...
XVI
Fazendo
estas aflitivas reflexões cheguei à rua do Conde, e por curiosidade entrei na
casa da polícia. Triste espetáculo! O chefe de polícia morrera no ato de pagar
o subsídio mensal devido a uns dois publicistas independentes, que estavam
em pé também petrificados, com os braços estendidos e as mãos abertas para
receber os cum quibus. Se houvesse ainda alguém que pudesse olhar
para aquelas duas nobres figuras, e reparasse em seus lábios entreabertos,
adivinharia logo, como eu adivinhei, que os ilustrados publicistas tinham sido
torrificados no momento em que diziam: Venha a nós!
XVII
Deixei
a polícia, e para distrair-me quiz tomar o fresco no campo da Aclamação. O espírito
de classe obrigou-me a penetrar no barracão do Provisório.
Subi
ao salão e que cena havia de se oferecer a meus olhos?... Ah!... todas as
coristas da companhia lírica tinham morrido no meio do um ensaio! Desgraçadas!...
Haviam feito pausa final... eterna.
Aquelas
flores viçosas e belas ! Aquele formoso grupo de encantadoras fadas!... Aquelas
ninfas, ou divindades de beleza arrebatadora e de voz de rouxinol,
coitadinhas ! Estavam todas prostradas e sem vida; mas nem uma só delas se
esquecera de morrer em posição grave e composta.
E,
diante delas, em pé, como em êxtase, porém morto e bem morto, destacava-se a
figura do meu amigo Dionísio, de batuta na mão e com o mais terno e suave dos
olhares cravado no grupo encantador! Ah, Dionísio! Foste mais feliz do que
eu! Morreste abrasado por dois fogos: fogo do cometa e fogo de amor! Sempre é
uma consolação morrer assim.
Requiescat
in pace.
XVIII
Quando
eu acabava de proferir estas palavras em louvor e honra de meu amigo Dionísio,
de súbito e inesperadamente, escuto uma voz murmurar :
—
Quem fala aí em amor?...
Dei
um salto: era uma voz humana, o mais apreciável dos tesouros para mim; e mais
ainda, era uma voz feminina, era a Eva que eu, pobre Adão, ardentemente
desejava para bem da humanidade, que não se devia extinguir.
Oh!
Não se pode fazer ideia da minha surpresa, da minha alegria, do meu
arrebatamento !
Procurei
a boca por onde havia passado aquela voz, e vi inclinada sobre uma cadeira, em
um canto do salão, mas quase moribunda, uma jovem corista, e que corista!... A
senhora X. P. T. O., um demoninho tentador que se apaixonara por mim em 1846 em
certa noite em que me ouviu cantar a Ária do Boleeiro. Corri a ela,
abracei-a, suspirei, chorei, e até cantei-lhe um pedaço da aria predileta.
—
Ainda vive alguém?... — perguntou-me com
voz sumida a divindade.
—
Eu só, eu só — respondi-lhe ansioso. — Eu só, que serei o teu Adão, porque tu
vais ser a minha Eva.
A
corista deu um muxoxo, fez um momo, e fechou os olhos.
—
Vive ! Vive!... é necessário que vivas!...
—
Para quê?... —tornou-me ela.
—
Para não se acabar o mundo, minha filha para arranjarmos um artigo
aditivo à humanidade, que está em risco de se extinguir de todo. Olha, minha
corista, o destino do globo terráqueo está nas nossas mãos.
—
Ora!... Nem ao menos eu acharia com quem cantar um coro...
—
Cantaremos um dueto, menina !
—
Não... não... de que me serviria viver ?... Que poderia eu ser ainda?...
—
Minha mulher, pequena !
—
Tua mulher ?... Ora essa!... Se eu fosse agora tua mulher... Como tu és o
único homem no mundo, nem ao menos eu poderia pregar-te um momo !
E
inclinando a cabeça... exalou um suspiro, que me pareceu o último.
XIX
Abracei-me
desesperadamente com a corista: chamei-a pelo seu nome, ajuntando a este todos
os epítetos ternos, amorosos e poéticos, de que se usa nas comedias; beijei-a
dez, cem, mil vezes, beijei-a tanto, e tanto, que por fim de contas a corista
abre de novo os olhos, sorri... suspira... solta uma risadinha magana, e,
levantando-se de repente, escapa dos meus braços, e deita a correr pelo salão fora.
Estava
visto que eu devia correr atrás dela: reúno todas as minhas forças, dou um
arranco, e...
Acho-me
no chão gemendo com uma horrível dor nas costelas.
Reconheci
que acabava de sair do domínio de um sonho tão longo como penoso, que me fizera
cair da cama abaixo no momento em que ia correr atrás da corista.
E
apesar da dor que sinto nas costelas, dou graças a Deus; porque hoje é o dia 13
de junho, e não há de acabar-se o mundo.
Fonte: “Jornal do
Commercio” (RJ), edição de 13 de junho de 1857.
Descobri este conto por acaso após assistir o filme não olhe para cima na Netflix. a conciliação do tom tom jocoso com o dramático lembra muito ele ( com as devidas ressaltas é claro).
ResponderExcluirP.S- É muito bom conhecer o Macedo além da moreninha. Este é um autor que devia ser mais lido E lembrado nas escolas, seria um ótimo atrativo para os jovens.