A IMAGEM NO FUNDO DOS OLHOS - Conto Clássico Fantástico - Maurice Renard
A IMAGEM NO FUNDO DOS OLHOS
Maurice Renard
(1875 – 1939)
O que lhes vou narrar aconteceu ao mais
célebre dos oculistas franceses quando não era ainda o professor Fagus, mas, simplesmente,
o doutor Fagus. Certo dia, ele teve que tratar de Frederico Arcier, homem rico
e poderoso, cognominado na França “o rei do papel”.
Arcier escrevera-lhe, como eu ou o
leitor, para obter uma entrevista.
E a hora da consulta chegou.
Antes de abrir a porta que comunicava o
seu gabinete com a sala de espera, Fagus não pôde evitar um movimento de orgulho
ao pensar no considerável personagem que aguardava a sua decisão. Sentia-se
muito altivo por ter trabalhado tanto, e ser tão útil aos seus semelhantes que uma
espécie de monarca recorria agora às suas luzes.
O milionário entrou. Era um perfeito gentleman,
de trinta a quarenta anos.
Fagus notou-lhe o ar fatigado, a
coloração de cera branca, as dolorosas rugas. Recordou-se, imediatamente, de que
o poder industrial de Arcier era uma herança e que “o rei do papel” herdara a
sua coroa do velho Arcier, de Arcier, o parvenu, que a conquistara com o
suor do seu rosto. Fred nada tinha de lutador. Porém, naturalmente, a atenção
do ocultista concentrou-se nos olhos do recém-chegado. Eles estavam tão
fixamente abertos que faziam pensar nos olhos de uma ave noturna ou — o que é
mais horrível — em dois olhos de vidro. Habitava neles um horror perpétuo. Tudo
quanto Arcier olhava parecia amedrontá-lo. No entanto, o homem de ciência nada
tinha de terrível; compreendera que um ser muito miserável estava diante dele, e
toda a sua bela alma estava estampada em seu semblante.
Sem preâmbulo, numa voz em que se
misturavam a angústia, a vergonha e o amargo desejo de uma misteriosa libertação,
Arcier explicou-se. Foi, a princípio, em um grito surdo esta confissão e esta súplica:
— Só tenho esperanças no senhor.
Salve-me!
Braços pendentes, mãos abertas, parecia
sacrificar-se.
—Eis aí — continuou ele, fazendo esforço e
como se confessasse uma falta abjeta. —Tenho nos olhos, no fundo dos olhos, uma
imagem indelével... Uma imagem como a que fica impressa na retina quando
fixamos a vista ao Sol.
— Escotoma —disse Fagus.
— É isto. Uma imagem semelhante à que
se acha nos olhos dos assassinados, nos olhos dos que morreram de morte
violenta, e cuja retina conservou a última visão...
Fagus não pestanejava.
— O senhor não ri? — admirou-se o milionário. —
Não zomba de mim?
— Não, disse Fagus.
— Ah! — replicou Arcier, cujos traços
distenderam-se. —Se o senhor soubesse quantos incrédulos encontrei entre os
oculistas a que me dirigi! Nenhum compreendeu. Nenhum acreditou em mim. E nada,
nada viram nos meus olhos! Uns mofaram! Outros, enviaram-me aos
neurologistas... Desgraçados! Escute, doutor: examine-me bem, e diga-me a
verdade, pelo que tem de mais caro. Porque não posso continuar a viver com esta
imagem no fundo dos olhos. Estou condenado a vê-la por toda a parte e sempre.
Ela se interpõe horrorosamente contra mim e o mundo. Vejo-a com os olhos
abertos, com os olhos fechados, mesmo á noite. Só o sono a faz desaparecer. Mas
ai! O sono! Compro-o a custo de sacrifícios; e muitas vezes revejo em sonho a
coisa infernal.
—Há quanto tempo tem esta mancha nos
olhos? — Perguntou Fagus, tranquilamente.
— Oh, não é uma mancha! É uma imagem,
uma cena instantânea. Não falta nada ali: cenário, personagens, cores, sombras,
relevo, detalhes monstruosos... E quando quero olhar, não importa o que, não
importa quem, é sempre a imagem que está “no ponto", não o objeto ou o ser
que eu queria ver, e que me aparecem indecisos, através da odiosa
fantasmagoria...
— Há quanto tempo? — Insistiu Fagus.
— Há treze meses. Há treze meses que essa
imagem de danação me vela o universo e possui meus olhos... Para curar-me,
seria necessário apagá-los. Ai! É uma rude confissão a que lhe faço! Apagá-los,
não é? E estive prestes a terminar com eles, quando me falaram no senhor. Então,
condescendi.
— Extingui-los? — disse gravemente Fagus.
— E se isso não bastasse?
O outro baixou os olhos, depois
levantou-os acanhadamente para o médico:
— Não posso viver com esta imagem no fundo
dos olhos.
Logo continuou, com terror:
—
É
preciso que eu tenha no senhor uma
confiança de que eu próprio me admiro para dizer-lhe isso.
— Peço-lhe a sua inteira confiança,
replicou-lhe Fagus. — Ela é indispensável. Diga-me: de que natureza é a
imagem?
Arcier desviou o assunto.
—É — disse ele —, como o senhor bem
supõe, a viva reprodução de uma coisa que me apareceu imprevistamente, um espetáculo
que me surpreendeu violentamente e que eu divisei no tempo de um relâmpago, no
tempo que me foi preciso para afastar uma cortina e desmaiar de horror, uma
visão mais insustentável para mim que o brilho do sol, e mais terrível que a aparição
de um punhal levantado ou de um revólver engatilhado.
*
Enquanto ele assim falava, retardando com
todo o seu poder a narrativa pedida, Fagus considerava-o.
Arcier estava de frente para a janela. Desta
vez, ele parecia fixar "voluntariamente" a imagem, submetê-la ao seu
olhar e deleitar-se com ela amargamente. Sua palidez aumentara, os traços
endurecidos acusavam sobremaneira as rugas; via-se, por momentos,
crisparem-se-lhe os músculos das faces, alargando a parte inferior do rosto,
muito estreita em relação à superior. Rosto de sensual, de impulsivo, de um
afetivo. Mas Fagus prendia-se aos olhos. Suas pupilas não cessavam de contrair-se
e dilatar-se. A íris era parda, bem pigmentada. O branco da esclerótica dava para
amarelo, e vasos vermelhos a ensanguentavam.
Esses olhos, estranhamente duros e
secos, os cílios longos e cerrados os teriam suavizado com uma bela sombra, se
as pálpebras rígidas e não pestanejando nunca, não parecessem presas por invisíveis
pegadores. Sobre eles as sobrancelhas negras, desenhadas com força, uniam-se,
fazendo um só traço enrugado rio centro. Rosto de nervoso e de ciumento.
No entanto, o rei do papel se
interrompera.
Um clarão equívoco quebrantava-lhe as pupilas.
— Mas — disse ele — para que descrever-lhe
a imagem? Se o senhor for mais sábio do que os outros, irá vê-las sozinho.
Senão, para que informá-lo?
— Seja —respondeu Fagus. — Vou, pois, examiná-lo
por minha vez. Mas advirto-o de que a imagem, se eu a vir, aparecerá minúscula
e invertida. Nada distinguirei, sem dúvida! E, depois, estou contrariado com a
sua desconfiança.
— Perdoe-me — implorou o pobre milionário.
— Se o senhor soubesse...
— Faça o favor de entrar, disse
simplesmente Fagus.
Penetraram na câmara escura.
— O senhor não mede nem a acuidade nem
o campo visual? — perguntou o consultante.
Fagus reprimiu um sorriso.
—Não. É inútil... Vejo que tem o hábito... E não farei
mesmo o exame lateral. O oftalmoscópio, imediatamente.
*
A câmara escura estava iluminada por uma
lâmpada elétrica encapuzada por um refletor. Arcier sentou-se, dando as costas para
a lâmpada. Fagus elevara o oftalmoscópio à altura da sua vista. A lente côncava
concentrava nos olhos de Arcier os raios da lâmpada. Pelo orifício que a atravessava
no centro, Fagus examinava aquele olho inundado de luz.
Houve um silencio em que a sombra e a
claridade dominavam todas as coisas.
A lâmpada mudou várias vezes de lugar. O
operador examinava os dois olhos alternadamente. Sua fisionomia permanecia impenetrável.
Ouvia o coração de Alcier bater rapidamente.
Entretanto, sem se apressar, apanhou uma
lente e dobrou o oftalmoscópio.
Alcier perguntou:
— Não vê nada?
Nenhuma resposta. O exame continuava.
Afinal, o doutor levantou-se e se pôs a
passear.
Depois, sentou-se a uma mesa, com as mãos
na testa:
— Nada?
Sempre mudo, Fagus remexeu em um cofre,
de onde tirou uma lâmpada elétrica e substituiu a lâmpada incolor por uma vermelha.
— Ah! Isso é novo! — disse Arcier.
Recomeçou o exame a lente.
— Estou vendo — disse Fagus.
Respondeu-lhe um grito de alegria
abafado.
Porém, ele prosseguiu:
—Vejo a imagem, em negativo. Um escotoma
afeta a sua púrpura retiniana. A luz —
uma luz intensa — decompôs a macula lutea, o ponto sensível da sua
retina, absolutamente como uma chapa fotográfica. Quero dizer: de uma maneira
persistente. Porque, para que haja visão, é necessário que haja decomposição da
púrpura. Somente no caso de uma visão comum, a púrpura se regenera
instantaneamente; ao passo em que, no caso de um escotoma, fica decomposta
algumas vezes por pouco tempo, algumas vezes...
— Algumas vezes para sempre. Sei! Mas
diga: vê a imagem? Claramente?... Ah! Bendita seja esta luz vermelha! E abençoado
seja o senhor!
— Extremamente curioso — murmurava Fagus.
— Os seus olhos funcionaram exatamente como um binóculo estereoscópico. É uma
perfeita imagem fotográfica... Vejo a curva de uma cortina levantada para um espaço
brilhantemente iluminado. Vejo...
*
Não terminou.
O rei do papel escondia o rosto nas
mãos.
— Basta! Suplico-lhe. Não! Não! Cale-se!
A claridade vermelha emprestava-lhe uma
lividez de cera.
Ele disse, ainda, em voz rouca:
—
"Ela" e "ele", o
senhor e eu, somos os únicos a conhecer esta abjeção... Compreende agora que
essa imagem precisa desaparecer, embora deva eu desaparecer com ela...
Fagus empurrou-o para fora da câmara escura.
Depois, falou:
— Diga-me primeiro o que se passou logo
após...
— Ela fugiu — respondeu Arcier,
desviando-se.
— Quero dizer: o que se passou com o senhor,
logo depois da aparição.
—Ai! — disse o desgraçado num suspiro de
alívio. — Eu caí como uma massa. Encontraram-me sem sentidos. Quando voltei a mim,
no dia seguinte, a imagem estava lá. Ela ainda está...
— Depois?
— Procurei ocupar-me com os meus negócios,
tomar a direção das minhas usinas... Mas a imagem, a imagem! Minha vista
permanecia impregnada dessa infâmia! O mais horrendo instante do meu passado
continuava presente para mim... Quis distrair-me. Lancei-me nas festas mais
loucamente que nunca. Pratiquei os mais duros esportes... Porém, eu estava já gasto
para tudo isto... E eis-me aqui. E estou só no mundo, com esta imagem no fundo
dos olhos... Há treze meses ela não mudou. Está sempre do mesmo modo nítida. É
de crer que, adiantando-me, vou poder tocá-la, segurá-la, bater-lhe!...
Arcier estendia as mãos vibrantes. Seus
olhos secos refletiam uma dor aguda.
— Peça-me tudo que quiser! — replicou ele.
— Mas faça o impossível para apagar isto!
Fagus disse, como se não tivesse ouvido:´
— Vamos ensaiar um tratamento. E tenho
muita esperança.
— É verdade?
Arcier apertou os braços do doutor, que
se desprendeu, mansamente.
— Creio que o senhor encontrará a cura — disse
ele. — Mas será preciso vir ao hospital onde dirijo o serviço de oftalmologia. Tenho
lá uma instalação, um dispositivo idealizado por mim, que já me tem dado excelentes
resultados, e que prepararei para o senhor, de uma maneira muito especial. Se
quiser, começaremos amanhã.
— Ah, o mais cedo possível!
— Venha às dez horas. Reservarei ao
senhor quarenta minutos pela manhã e à noite.
— Durante quanto tempo?
— Ah! Isto...
O rosto de Arcier coloria-se de um
desusado calor. Assim que ele partiu, Fagus seguiu para o hospital. No dia
seguinte, um pouco antes das dez horas, uma limusine de um luxo sombrio e sóbrio
parava em frente ao edifício. Dela desceu o rei do papel.
Depois de alguns minutos de espera no
cubículo do porteiro, um interno de blusa branca veio procurá-lo.
— O doutor Fagus está às suas ordens —
disse ele. — Faça o favor de seguir-me.
*
Ele guiou então o milionário pelos
meandros do imenso estabelecimento, velho hospício quase abandonado, depois
reconstruído segundo os princípios de higiene moderna. No caminho, desculpava-se
o interno da vetustez do lugar: pátios sinistros, antigas galerias, corredores
tristes.
A indigência pintava-se nos muros
caiados.
Nas portas, alinhavam-se inscrições glaciais:
termos patológicos, tabelas de serviço, nomes de médicos. Atravessavam enfermeiras.
Era hora da visita. O cheiro dos antissépticos enchia a atmosfera. Cruzavam enfermeiras
e freiras que iam à sua lida quotidiana. Arcier experimentava ali a sensação
dos ricos, que são sempre desagradavelmente surpreendidos quando a ocasião lhes
apresenta o lado coletivo na vida dos pobres. Ser doente à dúzia, tratado em
grosa, morrer em série! Arcier estremecia.
— E pena que estejamos tão mal alojados
— dizia o interno. — Estão uns sobre outros. O gabinete do doutor Fagus é
inacreditavelmente apertado. O senhor vai ver a nova instalação, como é pequena
e pouco cômoda! Separada do resto, além disto! É tempo de mudar-nos!... Chegamos.
Acabavam de entrar numa longa sala
inteiramente branca, onde se alinhavam pequenos leitos de um e de outro lado,
formando uma aleia, no fim da qual lia-se sobre uma porta, em gordas letras
vermelhas, pintadas de fresco: "Oftalmologia", e, por baixo: “Doutor
Fagus".
O interno bateu, e disse em voz alta:
— É o Sr. Arcier, doutor.
Daí a pouco a porta se abriu e Fagus, aparecendo,
entregou ao interno uma mulher, cujos olhos estavam ocultos por uma atadura.
— Às suas ordens, senhor — disse o
doutor.
Arcier viu-se então em uma câmara
escura. Porém, esta diferia de todas as outras. Nesse cubo de um negro profundo,
acreditava-se estar no interior de um aparelho fotográfico gigantesco: no meio da
parede oposta à porta, uma espécie de reduto cilíndrico mergulhava na sombra como
que para algum objetivo colossal.
A pedido de Fagus, o milionário colocou
óculos verdes e sentou-se no centro da "cabine", em frente ao
orifício do grande tubo. Fez-se a escuridão. Arcier, intrigado, cheio de
esperança, esperava um ruído que lá, do fundo do tubo, revelasse... o quê?
Fez-se ouvir, efetivamente, um ruído. E o que apareceu imediatamente foi um
disco de brancura absoluta. Arcier, olhando por cima dos óculos, viu que na realidade
esse disco era vermelho e de um vivo esplendor. Pensou: “os complementares”, e perguntou:
— Que luz é esta?
— É segredo por algum tempo ainda — respondeu
Fagus. — Saiba somente que não são os raios visíveis que operarão... Continue a
olhar pelos óculos.
Dez minutos depois, Fagus substituiu os
óculos verdes por óculos azuis. O disco tornou-se então de um amarelo intenso. Mais
tarde, os óculos foram vermelhos e o disco verde. E azul quando eles eram amarelos.
E sempre, quaisquer que fossem as cores, Arcier viu o mesmo sol cândido onde se
inscrevia a imagem impiedosa.
A primeira sessão acabou ao fim de três
quartos de hora. Era este todo o tratamento a que Arcier devia submeter-se duas
vezes por dia.
Ele voltou, portanto, à tarde.
Conduziram-no ainda à porta da câmara negra. Porém, uma irmã inteiramente
vestida de branco disse-lhe com uma angélica doçura:
— Não pode entrar agora, meu senhor. O doutor
Fagus está ocupado com um outro cliente. E preciso esperar. O senhor pode ficar
aqui. Não tenha receio, os nossos doentes não são contagiosos. São crianças escrofulosas.
Quer uma cadeira?
Fred Arcier era desses reis a quem se não
faz esperar. Um pouco aborrecido, aceitou a cadeira; e a freira deixou-o, com uma
graciosa cortesia.
O milionário seguiu-a com o olhar. Ela ia
de um a outro leito. Esses leitos não se moviam, e a tranquilidade da sala
tornava-se emocionante quando se pensava que havia ali vinte criancinhas.
Arcier tivera sempre horror às crianças por causa da sua turbulência. Ele não
compreendia essa tranquilidade. Dormiriam?
Mas alguém, justamente, perturbou a calma.
Elevou-se um gemido. A irmã acorreu, rápida. Arcier aproximou-se curioso, e viu
então o que ele jamais vira: sofrer uma criança.
O pobre pequeno tinha um rosto muito abatido,
muito magro; abria uns olhos imensos, de uma profundidade imaginável, e o
sofrimento dava-lhe um ar tão grave, tão desesperado que, pesando o seu crânio,
parecia alojar a alma de um velho carregado de experiência e de tristeza.
— Mamãe! — gemia ele.
Oh, esses pequenos inteiramente sós! Doentes
e longe de suas mamães! A irmã, na verdade, fazia-se maternal como podia;
dizia-lhes bonitas coisas ternas; acariciava-os gentilmente; mas os seus
carinhos não deixavam de ser autoritários e, afinal, não era "mamãe",
não é mesmo?
— Então — dizia ela —, é ainda essa feia perna?
Isso vai passar, vamos!... Como você é choramingas, Virgem Maria!
Mas o pequeno, chorando grandes lágrimas,
não ouvia mais. Seu mal torturava-o e dava-lhe tais contrações que comoveriam o
coração mais duro.
— Oh, minha irmã!
Arcier observava essa dor com
estupefação, como um prodígio detestável. Ele ali estava, com as mãos juntas...
— Não é este o mais digno de lástima? O
meus doentinhos interessam-lhe, senhor?
A criança acalmara-se. Arcier seguiu a religiosa,
que continuava a sua ronda. Ela apresentou-lhe uma a uma as suas crianças. Todos,
sem nada fazer, sem nada dizer, abriam para um mesmo sonho os olhos muito
longos e muito pensativos. Alguns estavam irremediavelmente enfermos. Outros morreriam
em breve. Pareciam saber disto e sonhar com as venturas que não conheceriam.
Com o coração repleto de compaixão,
Arcier não ousava falar. Havia neles algo de divino que o intimidava. Que
dizer, a esses pequenos, que fosse bastante suave, bastante belo, bastante
grande?... Ah, ser rei de França, ao invés de ser “rei do papel”! Passar,
passar diante deles abençoando-os com o sinal da cruz! Dizer: “O rei te
abençoa, Deus irá curá-lo” e curá-los um pouco efetivamente, com uma palavra e
com um gesto...
Repercutiu um chamado:
— Senhor Arcier, estou às suas ordens!
Arcier reconheceu a voz de Fagus.
— Dê-me licença, minha irmã — disse
ele. — Até logo.
O disco de luz surgiu no fundo do tubo negro
como um astro de safira. Na sombra azulada, Fagus surpreendeu um brusco
movimento.
— Que há? — interrogou o ocultista.
Arcier só pôde falar no fim de um
instante. A imagem tinha empalidecido.
No dia seguinte, Arcier foi mais cedo.
Carregava um grande saco de viagem.
Chamando a irmã confidencialmente, ele abriu
o saco e a fez ver o que continha. A boa criatura ficou maravilhada.
— É muito belo, senhor! Como eles vão ficar
felizes!
Efetivamente, foram quase todos
felizes. Quando o milionário fez a volta da sala, cada um tinha recebido o seu
brinquedo: esta uma boneca falante, este um boneco de engonço, aquele um cavalo
coberto de pelo verdadeiro, aqueloutro livro de gravuras inteiramente douradas.
E Arcier não se cansava de contemplar a transfiguração que acabava de operar e
ouvia com embevecimento risos que trinavam.
*
Entretanto, umas crianças permaneciam indiferentes.
Algumas delas manejavam o seu lindo brinquedo como se não compreendessem que
ele era divertido. Outros davam a impressão de ser demasiado velhos para
brincar. Outros, enfim, pareciam já saídos deste mundo e apenas distinguiam formas
confusas.
Arcier foi à cabeceira de um deles. A
criança, severa, virava, revirava e apalpava entre os dedos frágeis uma
miniatura de moinho de vento. O pobre homem não sabia o que fazer para distraí-lo.
Estava abatido também por esse respeito que tanto sofrimento lhe impunha. Tinha
medo de não saber falar a essa criancinha tão fraca e tão venerável, e temia
magoá-la, por descaso...
Arcier fez um grande esforço de
memória, cobrou ânimo e disse:
— Era uma vez um moleiro...
A criança se pôs a considerá-lo
atentamente. O narrador prosseguiu:
— ...um moleiro que só tinha por
fortuna...
— ... um moinho, um burro e um gato! — disse
por traz dele uma voz suave.
Arcier voltou-se e viu Fagui, que
sorria.
— Vamos, senhor — falou ele —, continue
o "Gato de Botas”! Quando terminar, venha procurar-me. Tenho tempo esta
manhã.
Nesse dia, a imagem empalideceu mais
ainda.
Passaram-se, assim, as semanas que
seguiram. Arcier dividia em duas partes a sua estada no hospital: uma
consagrada aos meninos doentes, outra ao seu tratamento.
Mas, em breve, a sua piedade
transformou-se em caridade, exercendo-se sobre um raio maior. Das crianças
estendeu-se a outros doentes, que ele quis visitar. E este homem, a quem o
abismo de suplícios acabava de revelar-se, empenhava-se de toda a sua alma em
socorrer tantas misérias.
Em resumo, ele tinha necessidade
manifestar por atos o reconhecimento de que transbordava. Porque, dia a dia, a
imagem maldita ia-se apagando. A luz do disco maravilhoso parecia consumi-la pouco
a pouco. Ela desmaiava e se ensombrava progressivamente.
Dentro em pouco, era apenas s uma
silhueta cinzenta cada vez mais diáfana e continuamente mais confusa. A hora em
que o último vestígio se apagaria, como vela, um resto de fotografia numa chapa
exposta ao sol, soaria. Em dados momentos — por exemplo, na iluminação comedida
da sala dos pequenos, quando Acier lhes contava "Pele de Burro" ou a
“Gata Borralheira” —, a imagem não era mais visível, e para revê-la era preciso
que o milionário pensasse nela.
Ah, esses contos maravilhosos eram por
vezes impotentes contra o sofrimento e o destino. Havia principalmente um
menino que desolava Arcier. A esse, ninguém podia tirar do seu mutismo pungente.
Nada, nem mesmo o suplício do curativo que dos vizinhos arrancava horríveis
gritos. E Arcier, que se teria deixado crucificar para salvá-lo, apenas sabia tomar-lhe
a mão e olhá-lo longamente, para provar-lhe bem que não estava só, e que havia
alguém ali para socorrê-lo, e que o amavam ternamente.
Ora, aconteceu que, uma tarde, quanto a
irmã renovava-lhe as compressas, o rei do papel, que lhe mantinha a mãozinha,
via aumentarem-se e turvarem-se ainda mais os olhos do inocente mártir. A irmã,
prática das cousas da morte, afastou-se imediatamente e benzeu-se. O homem, sobressaltado,
interrogava-a com o olhar. Ela rezava. Arcier, tendo compreendido, não se
movia, perdido na contemplação dos olhos embaciados. Um pesar infinito comprimia-lhe
a garganta. Sentiu uma espécie de dor nas têmporas. Seu queixo se pôs a tremer.
Sem abandonar a mão morta, ele apoiou a fronte no leito. Mas, como no dia do
"Gato de Botas”, ouviu-se uma voz. Pobre pequeno!
Fagus tocou-lhe no ombro.
Acier ergueu-se, com um dedo na boca,
mostrando ao médico as outras crianças. Tinha lágrimas nos olhos.
— Vem? — disse Fagus, indicando a
câmara negra.
Então — e quando Fagus conta a
história, afirma que nunca esquecerá isto, viva cem anos ou mais —, então viu
Acier, com os olhos ainda banhados em pranto, esforçar-se por olhar no vácuo,
como para procurar ali alguém que houvesse desaparecido por encanto. Enxugava
os olhos, esfregava-os, batia rapidamente as pálpebras para aclarar a vista.
Depois, voltava à fantástica inspeção. Acabou por voltar-se para Fagus. Ele
assemelhava-se, não se sabe como, a um personagem de vitrail, um
radiante miraculado.
Fagus estendeu-lhe a mão, sabendo o que
acabava de se produzir.
—Ai! — murmurou ele. — As lágrimas,
choradas ou não, está aí tudo! As lágrimas — objetou o milionário. — As
lágrimas e sua luz misteriosa!
A irmã puxava o lençol sobre o pequeno
cadáver.
—“Minha” luz, “Minha” luz.. — disse Fagus.
— É “A Luz”, simplesmente.
Tradução de autor desconhecido.
Fonte: “Leitura para Todos”, edição de novembro de 1922.
Comentários
Postar um comentário