ATAQUE A MÃO ARMADA - Arthur Conan Doyle - Conto Clássico de Crime e Mistério



ATAQUE A MÃO ARMADA

Arthur Conan Doyle

 

Disse a verdade, somente a verdade, quando me prenderam, mas ninguém quis acreditar. Tornei a dizê-la, não sei quantas vezes, durante o processo, repetindo, com absoluto respeito à verdade, tudo quanto se passara, sem alterar um gesto ou uma palavra  minha, um gesto ou uma palavra de lady Mannering... E de que adiantou? Nada. Os jornais me acusaram de ter feito declarações "voluntariamente incoerentes, inadmissíveis nos detalhes, sem ao menor a sombra de uma prova". Mas eu juro que disse o que sei, vi e ouvi sobre esse assassinato, do qual sou tão inocente quanto qualquer dos jurados que me julgaram.

Agora, só me resta o recurso desta petição ao rei, e eu a faço, pedindo a Deus, unicamente, que ela seja lida. Depois, façam  a investigação que lhes pedi. Informem-se sobre o caráter de lady Mannering,  verifiquem se ela conserva o nome com o qual tive a desgraça de conhecê-la. Confiem essa investigação a um homem imparcial e não tardarão a saber o bastante para convencê-los. Lembrem-se de que o crime só aproveitou a essa pessoa. Eu lhes ofereço o fio condutor. Sigam-no e verão onde ele os levará.

Notem bem. Não protesto contra a acusação de roubo; nada reclamo contra a verdade. Eu pratiquei — confesso — um roubo, um assalto, mas um assassinato, não. Se não houver outro remédio, cumprirei minha pena de prisão perpétua, mas, ainda que viva cem anos, hei de protestar, até o último dia de minha vida, contra essa acusação.

Vou explicar — desta vez, por escrito — tudo quanto se passou.

Eu tinha passado todo o verão em Bristol, em busca de trabalho. Um dia, fui informado de que poderia encontrá-lo em Portsmouth, porque sou um bom mecânico. Pus-me a caminho, a pé, pelas estradas do Sul da Inglaterra, fazendo biscates aqui e ali, para meu sustento. Juro-lhes que fiz o possível para só ganhar dinheiro honestamente, porque acabava de cumprir uma pena de um ano, por furto, e não tinha o menor desejo de voltar para um presídio. Mas só Deus sabe como é difícil a um homem obter trabalho compensador quando se tem na carteira de identidade a nota de que já esteve preso como gatuno! O mais que eu conseguia era não morrer de fome. Por fim, depois de ter passado dez dias trabalhando como lenhador, por um salário de fome, cheguei aos arredores de Salisbury, com dois xelins num bolso, e a paciência esgotada. Procurado um lugar para dormir, entrei em uma hospedaria modestíssima e tratei um leito para uma noite. Alegando já ter jantado, pedi apenas uma botija de cerveja e me sentei na sala principal do albergue para fumar um cachimbo, antes de me deitar.

Como eu era o único hóspede, nessa noite, o dono da casa, que era conversador, veio se sentar à minha frente e começou a desfiar tudo quanto sabia sobre os arredores e seus habitantes. E eu o ouvi sem grande interesse, até o momento em que ele falou nos tesouros de Mannering Hall.

Perguntei:

— É aquela grande construção, à direita da estrada, antes de chegar à aldeia? Uma casa cercada por um grande parque?

— Não há outra com essas proporções, na região. É toda branca, com umas colunas na fachada.

Eu a tinha observado ao passar e chegara a dizer a mim mesmo que não devia ser difícil entrar em uma casa assim. Tratara logo de afastar essa ideia de meu cérebro e, agora, vinha aquele homem me tentar com a enumeração de suas riquezas e a descrição de seu proprietário.

— Imagine — dizia ele — que eu ainda era moço e ele já tinha a cabeça grisalha... Pois assim mesmo, graças à sua fortuna, casou-se com uma moça bonita... Uma espécie de beldade.

 

— Ah, os ricos podem tudo! — observei maquinalmente.

O hospedeiro suspirou, reacendeu o cachimbo e disse, com uma espécie de suspiro:

 — Dizem uns que era uma mera atriz principiante; outros dizem que era uma simples datilografa... Coitada! Provavelmente, sujeitou-se a casar com um velho, pensando que ele ia lhe dar uma vida de grande luxo, em Londres, exibi-la na melhor sociedade, levá-la a festas, teatros... Pois, sim!... Mal se casou, lord Mannering veio se meter aqui e a infeliz vive neste buraco, sem ver ninguém e passando até privações, porque o velho é de uma avareza sórdida. Ainda ontem, Stephens, o mordomo da casa, me disse que a pobre lady é privada até de gulodices baratas,  que comprava em Londres.

— E é rico, esse miserável?

— Riquíssimo. Só o que ele tem em casa vale uma fortuna, sem contar navios, propriedades na Irlanda, e na Escócia, títulos de renda.

Esses pormenores não me interessavam. Agora, eu estava ansioso por saber o que haveria em Mannering Hall, algo fácil de carregar e com valor real, que não desse muito trabalho para passar adiante.

Apólices, papéis... Para longe! Ouro, joias, que se podem derreter... Fale-se nisso. Pois sabem em que me falou aquele homem? Na coleção de medalhas que lord Mannering levava não sei quantos anos organizando e era seu maior orgulho.

— Passa por ser a mais valiosa do mundo — continuou o albergueiro. — Chegam a dizer que se as pusesse todas em um saco, o homem mais forte de Salisbury não será capaz de levantá-las.

Não estou inventando uma história. Estou contando o que se passou. É possível imaginar maior tentação? Eu estava, ali, deitado em uma casa inconfortável, sem recursos, sem saber o que seria o dia de amanhã. Tinha me esforçado para ser honesto; os homens honestos tinham-me voltado as costas. A pretexto de que eu furtara uma vez, negavam-me trabalho; negavam-me todos os meios para voltar a uma vida decente. E, de repente, aparecia diante de mim, por assim dizer, ao alcance de minha mão, uma casa cheia de janelas e de medalhas de ouro, tão fáceis de vender... Resisti apenas um momento e deitei-me fazendo um juramento solene a mim mesmo: se tivesse êxito, eu renunciaria para sempre ao crime.

Desci da cama sem rumor, vesti-me e saí pela janela, certo de que voltaria antes do amanhecer, sem que ninguém tivesse dado por minha ausência.

O muro era alto; tinha mais de três metros... Mas eu sou ágil. Do outro lado, o parque mal tratado não apresentava obstáculos. Havia, junto do aparatoso portão, um pavilhão de guarda, mas parecia desabitado. O luar, embora fraco, era suficiente para me deixar ver a casa, muito branca, sob a abóbada das árvores centenárias.

Fiquei um momento imóvel, de joelhos, em uma espécie de vala, procurando com o olhar o ponto de acesso mais fácil e seguro. Em pouco, dei minha preferência a uma janela de canto, do lado esquerdo, porque era a mais obscurecida pela sombra das árvores e, portanto, a menos visível das outras janelas. Aproximei-me devagar. Um cão latiu e agitou a corrente a que estava preso.

Suspirei resignado. Quanto tempo seria preciso esperar para que ele se acostumasse à minha presença e se aquietasse? Há cães que ficam latindo uma hora, hora e meia. Este, porém, se aquietou logo, como se alguém o houvesse tranquilizado. Mais tarde, vim a saber que assim fora, porém, naquela noite, eu estava tão cego pela ambição das medalhas de ouro que não estranhei as facilidades que encontrava.

O fecho da janela era infantil. Com um pedaço de arame, que trouxera e a lâmina de minha faca de bolso, não precisei de grande esforço para abri-la.

Afastei os dois batentes, cautelosamente, com receio de algum rangido indiscreto, e pousei silenciosamente os pés sobre o soalho, já no interior do edifício. Imediatamente, uma voz abafada, mas bastante nítida, murmurou, junto de mim:

—Boa noite. Seja bem-vindo.



Já tenho passado por muitos sustos em minha vida, mas nenhum comparável a este. Voltei a cabeça, trêmulo, enregelado e vi, de pé, junto da janela que eu abrira e, semioculto por ela, o vulto de uma mulher... Quando meus olhos se acostumaram àquela meia luz, vi que era mulher jovem e bonita. Seu rosto muito pálido tinha uma regularidade de estátua, emoldurado por cabelos escuros e ondeados. Estava vestida com um robe que lhe ia até os pés e parecia tão comovida como eu, mas eu sentia principalmente medo: um verdadeiro pavor fazia me tremerem os joelhos.

Não lhe dei as costas e  não fugi porque nem para isso tive forças. Meu pavor era tão visível que a misteriosa mulher sorriu, antes de dizer:

— Não tenha medo. Eu o vi da janela de meu quarto, quando ainda estava galgando o muro. Então desci e ouvi-o forçar a janela. Eu a teria aberto, se me tivesse dado tempo.

Dizendo estas palavras, fechava a janela e puxava-me por um braço. Era demais. Desvencilhei-me com um movimento brusco e, voltando para ela a ponta da faca, que conservara na mão direita, repelia-a brutalmente com a esquerda, dizendo, com voz ameaçadora:

— Não estou gostando disso! Tem todo o aspecto de uma armadilha.

Ela me respondeu, com voz igualmente abafada e na qual havia um ardor febril:

— Não. Não penso em traí-lo. Ao contrário. Se pudesse ajudá-lo...

— Ajudar-me? — repeti, com espanto. — Mas a senhora não é ?...

Hesitei e ela mesma disse:

 —Sim. Sou lady Mannering, mas tenho razões para...

Lembrei-me da narração do hoteleiro e compreendi: lady Mannering odiava o marido a ponto de desejar vê-lo desesperado por um roubo. Queria feri-lo nos pontos mais sensíveis: o bolso e o orgulho. Suas coleções... Se as encontrasse saqueadas... Detive-me, fixando a lady.

Já tenho detestado algumas pessoas neste mundo, mas nunca havia compreendido o que é ter ódio, antes de haver contemplado o rosto de lady Mannering naquela noite.

Meu olhar exprimiu com demasiada clareza o que eu pensava porque ela de novo me segurou por um braço, murmurando:

— Compreendeu? Eu vivo ansiosa por auxiliar todos quantos quiserem fazer mal a esse homem. O senhor, provavelmente, veio atraído por suas medalhas... Não conseguiria deitar-lhes a mão, sem meu auxílio... São protegidas por vários aparelhos de segurança, que só ele e eu conhecemos... porque eu o tenho espionado.

Eu hesitava ainda.

— Venha — insistiu, com uma espécie de impaciência. — Afirmo-lhe que nada tem a temer. Os criados dormem do outro lado do edifício. Os objetos preciosos estão aqui perto.

Empurrou uma porta.... outra, mais outra e, detendo-se no limiar, acendeu um coto de vela, que trouxera escondido.

—Há tanta coisa aqui que vai ser preciso escolher — ciciou a meu ouvido. — Trouxe um pano, um saco... qualquer coisa?

— Não, senhora. Não me lembrei.

À luz do coto de vela, vi que estava em uma sala bastante longa, de teto baixo, com o assoalho coberto por tapetes de valor. Junto das paredes e alinhadas no meio da sala, havia dez ou doze vitrines. As paredes estavam ornadas com armas antigas. Lady Mannering foi até um divã, colocado junto da porta, apanhou uma almofada de seda espessa e disse-me:

— Corte um lado com a faca e terá um saco digno do que vai levar.

A meu ver, o saco era demasiadamente grande, difícil de ocultar debaixo do cinto... Mas eu não podia discutir com uma mulher, que estava, ela mesma, me ajudando a saquear sua própria casa. Havia momentos em que eu tinha a impressão de estar sonhando.

Entretanto, sem dar atenção às "vitrines" daquela sala, lady Mannering abrira a porta da seguinte, que era menor e onde as "vitrines" continham a famosa coleção. Sem dar por isso, adiantei-me, deslumbrado. Lady Mannering deteve-me:

— Não seja tolo. Medalhas... só poderá aproveitar o ouro, e ainda assim, com enorme desconto... Lá em cima — continuou ela, baixando ainda mais a voz — há coisa melhor. Dinheiro em moeda corrente. Esse homem tem a mania de guardar sempre consigo grande quantia em ouro... libras esterlinas...

— Onde as guarda?

— Em uma maleta, que esconde em diversos lugares, variando constantemente... Esta noite, está em seu próprio quarto, metida entre a cabeceira da cama e a parede... Venha.

— Não. Nada disso — protestei com energia. — Entrar no quarto, com o homem lá dentro?... Deus me livre!

— Que tem isso? — perguntou a lady, com um sorriso de mofa.

— Ora, que tem? E se ele acorda?

—Tem medo de um velho? Pensei que você fosse um homem.

Falava-me tom tal rispidez e havia em seu olhar furor tamanho que comecei a compreender o intuito infernal daquela criatura. E, trêmulo, com uma sensação de gelo no peito, balbuciei:

— Não... não. Já tenho roubado, muitas vezes, mas matar... Nunca. Não quero ficar com esse remorso.

Lady Mannering encostou-se à parede, com uma expressão em que havia furor, desprezo, impaciência.

— Quem falou em matar alguém? Então, não há mil meios de imobilizar um velho, sem matá-lo? Você, com todos esses escrúpulos, devia ter escolhido outra profissão. Mas seja feita sua vontade. Eu já lhe disse... O que desejo é gozar a fúria impotente de meu marido, quando descobrir que foi roubado. E.. espere! — exclamou ela, de repente, como se tivesse outra ideia. — Em parte, é melhor. Ele ficará mais desesperado, dando por falta de suas queridas medalhas do que de libras comuns. Vamos tirar essas preciosidades. Comece por essa "vitrine". Para o senhor, tanto valem estas, como outras quaisquer... Porém, estas são mais raras. Para ele, sua perda será mais sensível. Oh! Não é preciso forçar a fechadura. É bastante apertar esse botão de cobre, que aciona uma mola secreta.

Abrira uma das "vitrines" e eu começava a recolher os discos luzentes, quando lady Mannering ergueu uma das mãos, com uma expressão de susto, murmurando:

— Silencio!

Imobilizei-me também e ouvi um rumor surdo, regular. Rumor de passos. Lady Mannering fechou rapidamente o móvel.

— Meu marido... — ciciou ela. — Não se assuste. Eu arranjarei tudo.

Empurrou-me para trás de um reposteiro e, iluminando-se com seu coto de vela, passou para a sala de onde viéramos. Embora escondido, eu podia vê-la, de pé, curvada para uma" "vitrine", com toda a aparência de uma pessoa que está absorta pela contemplação de coisas maravilhosas

Os passos se aproximaram e, empunhando um revólver, lord Mannering apareceu, na meia luz da vela. Só então, a lady ergueu a cabeça e teve a expressão de uma pessoa surpreendida.

— Que está fazendo aí? — perguntou ele, com voz severa. — Quando perderá essa mania de andar pela casa, alta noite, como um fantasma?

Era alto, seco, tinha o nariz adunco, o rosto flácido e seu olhar cintilava com uma fixidez irritante por traz de óculos de ouro muito finos. Lançou em torno de si um olhar circunspecto e continuou:

—Mas, certamente, não foi você quem tocou o sinal de alarme, na sala 2... Oh! A porta está aberta... Foi você quem a abriu?

Adiantou-se rápido. Nesse momento, com enorme susto, eu notei que deixara minha faca em cima da "vitrine" mais próxima. Lady Mannering também deu por isso e, com admirável sangue-frio, colocou a vela entre esse móvel e os olhos de seu marido.

Este curvara-se para outra "vitrine", verificando se o fecho estava perfeito. A lady deu mais um passo. Envolveu a mão direita com uma ponta da longa manga de seu robe, empunhou a faca e, antes que eu pudesse adivinhar seu intuito, cravou-a duas ou três vezes nas costas do marido.

Ele caiu, voltando instintivamente para se defender e ela de novo o feriu com energia furiosa.

Eu fiquei um momento petrificado pela surpresa, pelo horror. Depois, recobrando um pouco de minhas faculdades, só tive uma ideia: fugir, desaparecer.

Dei um salto desatinado. Esbarrei em uma das delicadas "vitrines", atirando-a ao assoalho. O ruído de cristais partidos e de objetos de metal, chocando-se uns  com os outros, ainda mais me assustou. Corri para a janela, que ficara encostada, saltei para o jardim e fui detido por um grito de uma estridência inverossímil, grito de histérica, de louca:

— Socorro!

Era lady Mannering quem gritava. Atônito, alucinado, precipitei-me para o muro... Mas estava cego pelo terror. Não encontrei o lugar onde a caliça gasta pela água da chuva deixara vários tijolos descobertos, facilitando minha escalada. Perdi um tempo precioso, correndo ao longo do muro e ouvindo os gritos ululantes, capazes de despertar um morto:

— Socorro! Assassino!

Foi preciso que os criados, despertados por aquele clamor, soltassem o cão para que eu ganhasse o ímpeto necessário e atingisse, num salto, a orla do muro.

Já alguns vizinhos começavam a aparecer na estrada: mas eu não tinha alternativa diante de mim. Deixei-me cair do muro, saltei a cerca da propriedade fronteira e atravessei um jardim, com a esperança de me perder no labirinto de quintais e hortas da aldeia. Tempo perdido. Havia já dois cães entre meus perseguidores. Não há desvio ou rodeio que engane esses animais. Quando eu tentava passar diante de uma quarta ou quinta casa, fui alcançado.




Aí está. Foi isso o que se passou, e o que eu mais admiro — mais do que o plano infernal com que essa mulher se livrou do marido e a rapidez, a habilidade com que realizou esse plano —, mais do que tudo, eu admiro seu talento de atriz, de cinismo com que me acusou, as atitudes de surpresa, e indignação com que ouviu meus protestos.

Essa moça, bonita, rica, com todo aspecto de uma vítima. Eu maltrapilho, fichado pela polícia como ladrão.

Fui eu o condenado.

 

Tradução de autor desconhecido. 

Ilustração: Sidney Paget.

Fontes: “Eu Sei Tudo”, edição de janeiro de 1940; “Excelsior”, edição de 15 de agosto de 1944. 



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