O ÚLTIMO DIÁLOGO - Conto Clássico Cruel - Henri Berthoud


O ÚLTIMO DIÁLOGO

Henri Berthoud

(1804 – 1891)

 

Vestido com hábitos religiosos, deitado sobre a cinza, e com as mãos cruzadas sobre o peito, esperava o imperador Teodoro Láscaris o momento de exalar o último suspiro.

Reconciliado com Deus, preparado para esse instante solene, e desgostoso sobretudo das grandezas humanas, de bom grado houvera estendido os braços à morte se não o atormentasse a lembrança de que deixava na orfandade seu filho João, que contava apenas nove anos de idade, e que talvez sucumbiria sob a pesada e espinhosa coroa de Niceia.

O imperador chorava.

Chorava porque carecia de uma mão forte e fiel para sustentar essa coroa na cabeça de João, e o desventurado pai só via inimigos em torno de si.

Jorge Acopólito não devia estar ainda esquecido de que, por ordem do imperador, fora açoitado como um escravo.

Muzalon vira-se expulso do Conselho a pontapés.

Miguel Paleólogo… Oh, se ele pudesse esquecer-se de uma noite funesta… Talvez se esqueça, pois foi essa a única vez em que o imperador se mostrou cruel com ele: Miguel seria generoso.

— Chamai Miguel Paleólogo! Apressai-vos!

Um dos guardas se retirou. Logo voltou, precedido por Miguel Paleólogo.

A noite havia assomado: uma só lamparina iluminava o pavilhão do imperador; agitada, sem cessar, pelo vento, ela fazia cintilar inquietos lampejos. Duas mulheres e um padre, ajoelhados junto ao leito, faziam companhia ao moribundo. Vendo Teodoro aparecer a gigantesca figura de Miguel, ordenou-lhes que se fossem, e ficaram dois homens face a face, por algum tempo silenciosos.

O imperador foi o primeiro que falou.

— Miguel — perguntou ele —, tu me odeias?

— Sim, eu te odeio.

— Apesar disto, eu te mandei chamar para, no meu leito de morte, reclamar de ti um imenso benefício.

— É porque nenhuma outra pessoa o faria em teu favor.

— Miguel, tu sabes que eu sempre te amei.

Um sorriso de amargura e de ironia contraiu os lábios do Paleólogo.

— Oh, Miguel! Não jugues com demasiada severidade a minha conduta para contigo! Se um dia tu reinares (Deus te livre de semelhante desgraça!), saberás o quanto mereço ser desculpado por ter-te mandado encarcerar, pois todos me diziam: “Ele ambiciona a tua coroa e conspira conta ti; é jovem, eloquente e amado pelos soldados...”. — Mas deixa-me concluir, porque os instantes me são preciosos. Escuta-me: estou morrendo e deixo um filho, uma pobre criança desamparada. Nomeio-te seu tutor conjuntamente com Muzalon. Aceitas este título?

— Aceito.

— E tu juras, sobre o meu leito de morte, e diante de Deus que nos ouve, que serás para o meu filho um pai terno e dedicado?

— Ouve: amanhã, depois de teu funeral, mandarei assassinar Muzalon e sua família para constituir-me no único tutor de teu filho. Oito dias depois, mandarei o teu filho para uma prisão à beira mar. Um ano depois, mandarei que lhe furem os olhos com ferro em brasa.

O imperador, reunindo as poucas forças que lhe restavam, arrastou-se para fora da cama e lançou-se aos pés do Paleólogo.

—Tem compaixão dessa criança. Vinga-te em mim. Fere-me com a tua espada. Mas tem dele compaixão.

— Ferir-te com a minha espada? Para quê, se morrerás daqui a uma hora?

— Oh, tem piedade! Eu te imploro!

— Teodoro Láscaris, Deus é justo. O cárcere em que o teu filho será sepultado é o mesmo em que me fizeste jazer por três anos. O ferro em brasa, que há de furar os olhos de teu filho, é o mesmo de que te serviste para açular os gatos selvagens que devoraram a minha irmã, metida, por ordem tua, dentro de um saco cheio desses animais.

— Mas ele é uma criança inocente!

— Ela era uma mulher inocente.

— Que crime ele cometeu?

— Que crime cometeu a minha irmã? Não querer dar a sua filha em casamento a teu favorito Muzalon. Tu partiste de dor o coração de minha mãe. Teu coração de pai também se partirá de dor! Tu mataste uma mulher. Então, um menino será morto. É a pena do talião: é a justiça.

— Pois bem — exclamou Láscaris — eu sou ainda o imperador. Ó guardas!

Guardas!

Miguel pôs o pé sobre o pescoço de Teodoro e sufocou-lhe os gritos.

— Silêncio, cadáver! Não sabes que um imperador moribundo não reina? Mas, para que lhe tolher os gritos? — acrescentou Miguel, tirando o pé. — Ninguém acudirá. Ninguém virá em teu socorro. E, se alguém viesse, a um gesto meu cuspiria em tua cara.

Depois, sentou-se ao lado do leito do imperador.

 Uma hora se passou sem que se ouvisse outro som além do estertor do moribundo.

De repente, cessou a agonia e um movimento convulsivo agitou o hábito de frade que cobria Teodoro.

Miguel inclinou-se sobre o cadáver e tirou-lhe do seio o decreto do imperador que nomeava tutor de seu filho Miguel Paleólogo e Muzalon.

— Soldados — exclamou ele —, o imperador já não existe, e deveis obedecer-me, poque sou regente do império de Niceia. Eis as últimas vontades do imperador.

— Viva Miguel Paleólogo! — gritou uma miríade de voz.

No dia seguinte, durante o enterro do imperador, massacraram Muzalon.

E um ano depois, numa fortaleza à beira mar, furaram os olhos da pobre criança, que nem ao menos podia resistir aos seus algozes.

 

Versão em português de Paulo Soriano, compilada e adaptada a partir de traduções de autores anônimos do séc. XIX, publicadas originariamente em “O Chronista”(RJ), edição de 2 de novembro de 1836 e “A Revelação” (SC), edições de 30 de julho e 6 de agosto de 1853.

Sobre o autor:  Samuel-Henri Berthoud (1804 – 1891), escritor e jornalista francês, notabilizou-se não apenas por seus contos e crônicas (Chroniques et traditions surnaturelles de la Flandre) mas, também, pelos seus populares artigos de divulgação científica voltados aos jovens leitores. “O Último Diálogo”, publicado originalmente na revista “Musée des Familles”, edição de janeiro de 1935, conquanto inspirado em fatos reais, não reflete a realidade histórica. Inobstante isto, é certo que Miguel Paleólogo encarcerou e cegou João IV Láscaris, o imperador criança de Niceia, após usurpar-lhe o trono: cego, o jovem monarca, definitivamente inabilitado para o cargo, jamais poderia reivindicar-lhe a coroa.




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