QUANDO DEUS NOS ABANDONA - Conto de Terror - Paulo Soriano
QUANDO
DEUS NOS ABANDONA
Paulo
Soriano
As
vigorosas batidas que vinham da porta da cabana deixaram o coração de Thérèse
em sobressalto. “Quando Deus nos abandona”, pensou Thérèse, “Lebourreau nos
assoma.”
—
Quem bate? — perguntou Thérèse, embora bem soubesse que Lebourreau, com a
lanterna em punho, lançava a sua sombra maligna sobre os umbrais da pobre
choupana.
Thérèse
apertou ambos os filhos contra os seios, sentindo-lhes a respiração quente e
irregular, típica dos moribundos devastados pela peste. E, arrastando-se como
podia, recolheu-se ao ângulo mais remoto da parede. “Quando Deus nos abandona”,
pensou Thérèse, “Lebourreau nos ilude.” O vento, que se esgueirava pelas
frestas do adobe, trouxe consigo a voz calma e melódica do velho mago:
—
Deixe-me entrar. Trago-lhe boas-novas!
De
Lebourreau dizia-se, em toda Valônia, que era um bruxo astuto e poderoso.
Ouvira da mãe que aquele ente medonho habitava cemitérios desolados, onde há
séculos praticava sortilégios. Amiúde comentava-se que, nas noites de
plenilúnio, o mago reunia-se com as bruxas e, de corpos nus, realizavam o sabá.
“Quando Deus nos abandona”, dizia-lhe a mãe, “ele vem e nos ludibria!”
Há
dois dias o pequeno Jean-Pierre corria livre pelos campos, gozando a imensidão
das planícies e a luminosidade intensa do verão. Mas viera a peste, tão súbita
quanto cruel, e, com o seu beijo nefando, cobrira o corpo do garoto de pústulas
negras e aquosas, cujo odor desagradável entranhava-se no ar como se arauto da
morte certa. E Cosette, com suas mãozinhas febris, não arredava dos seios
maternos. Mas a menina decompunha-se ainda viva. Do corpo pequeno e desconforme
fluíam emanações mefíticas, tão nauseantes que somente a mãe podia suportar.
Como era avançado o estado de degeneração da criancinha! A enfermidade avançava
célere naquele corpinho disforme. Cosette, silenciosamente, agonizava.
—
Pobre Cosette — disse a mãe, beijando-lhe o rostinho cravejado de pústulas e de
grosseiras ulcerações.
O
vento trazia a voz melódica do velho bruxo:
—
Deixe-me entrar. Ainda há esperanças. Trago-lhe uma esperança que o seu Deus
esqueceu-se de lhe ofertar.
Jean-Pierre
também morreria. Assim como aqueles cruzados que retornaram de Jerusalém. Mais
algumas horas e todas as ulcerações eclodiriam num ruído surdo, salpicando, à
pressão incontrolável da febre sempre crescente, o líquido asqueroso na
atmosfera impregnada de humores deletérios. O corpo, lacerado por ilhas de
carne viva, precipitar-se-ia para uma tonalidade roxo-escura e, então, viria a
inexorável decomposição da pele, da carne e das entranhas. E Cosette, agora,
sangrava por todos os orifícios. Também — e principalmente — pela abertura do
olho que lhe faltava. O outro era morto e oboval, projetado para fora como o de
um camaleão.
Cosette
nascera cega, corcunda e coxa. Pobre Cosette, condenada pelo Senhor a deambular
desgraciosamente pelas planícies pedregosas da Valônia, fazendo de sua muleta
uma bengala, e, de ambas, a sua sina, enquanto, curvada ao peso da corcova,
estendia as mãos implorando migalhas dos viajantes. Não! Melhor assim. Melhor
que o bom Deus ceifasse, desde já, um futuro tão hediondo!
—
Entre — respondeu, finalmente, Thérèse.
A
porta da choupana se abriu. O vento gemeu e rodopiou nas úmidas paredes de
adobe. O mago entrou. Trazia numa das mãos uma lanterna que lhe iluminava a
sobrepeliz carmim e o capuz escarlate. O luzeiro iluminou-lhe as faces
cavernosas. Thérèse tremeu de pavor. O mago continuou, com sua voz mansa, que
lhe escapava das ranhuras de uma fileira de dentes amolados:
—
Tenho uma proposta.
—
Leve-me. Mas cure os meus filhos.
—
Não, não a quero. Quero Cosette. Quero a pequena.
—
O que ganharei em troca?
—
Jean-Pierre viverá.
Thérèse
ponderou. Entregou a pequena.
—
Decisão sábia — redarguiu o homem com gravidade. E acrescentou, piscando
maliciosamente um olho de coruja:
—
De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?
Após
uma pausa — uma longa e meditativa pausa —, o bruxo concluiu, prazerosamente,
com as garras em riste para Cosette:
—
Hoje sinto uma grande fome. Arranjar-me-ei bem com ela.
O
mago mergulhou a criança nas rubras abas de sua sobrepeliz e saiu. Atrás de si
ficou o farfalhar monótono de uma capa escarlate, sibilante ao vento que se
decompunha em silêncio e se fazia silêncio, enquanto a solidão, coroada pelo
desespero, ficava irremediavelmente para trás. Então, nesta mesma solidão, que
era a imensidão de um casebre, um arrependimento cruciante reverberou na alma
de Thérèse.
Cosette!
A pequena e indefesa Cosette! Não seria justo que a peste a levasse, com seu
corpinho repulsivo e disforme, para os campos sepulcrais? Não seria melhor
assim? Se é que esta era a vontade de Deus, haveria por que se rebelar? Cosette
já estava morrendo. Morrendo irremediavelmente. Mas entregar Cosette aos dentes
anavalhados daquela coisa imunda... Saciar a sede e a fome de tão abjeta
criatura com as vísceras e o sangue inocente de sua filha... “Quando Deus nos
abandona, Lebourreau vem para nos tentar e iludir...”
—
Meu Deus, o que eu fiz? — bradou Thérèse, na fria escuridão de seu antro.
Thérèse
arremessou contra a noite. Ganhou os campos e as planícies, clamando pela
filha. Atirou-se violentamente aos bosques, caminhando sobre as sendas que se
abriam ao fluxo luzidio do luar. E quando finalmente amanheceu e já retornava a
casa, corroída pela densidade de um remorso seco e cáustico, Thérèse
vislumbrou, ao longe, algo oscilar ao sabor da brisa matinal. Era um trapo. Era
o corpinho de sua filha. A garota fora empalada num galho que, inclinado,
deitava reverência ao chão. Traspassada pelo dedo arguto de um arbusto, Cosette
trazia a garganta dilacerada por dentes tumultuosos e exibia, mais abaixo, o
ventre rasgado por unhas longas e pontiagudas. Restos de entranhas, revolvidas
e despedaçadas, estavam derribados ao solo forrado de folhas mortas. Mas algo
de surpreendente acontecera! O corpinho de Cosette ganhara uma nova
conformação. Dois belos olhos azuis, que poderiam perfeitamente enxergar, agora
reluziam na face miúda e bela. A corcova desaparecera e a perna atrofiada
recompusera-se em substância e perfeição.
—
Lebourreau a consertou, antes de matá-la. Lebourreau ajeitou a minha menina só
para devorar-lhe o sangue e algo doce de suas entranhas. Pobre Cosette! —
Thérèse balbuciou, enquanto a pequena mão de Cosette, impelida talvez pelo vento
ou mesmo por uma força sobrenatural, tão obscura quanto extraordinariamente
absurda, buscava, pela última vez, o calor do seio materno. Thérèse gritou ao
sentir que a mãozinha do cadáver comprimia tenazmente o seu peito. Sentiu que
as pernas arqueavam. Que a mente refluía. Que a boca beijava o chão.
Quando voltou a si, depois de um longo
pesadelo — que, àquelas alturas, lhe sabia aos lábios como belos sonhos —,
seguido de um desfalecimento negro e espesso, já anoitecia.
Foram
os gritos de Jean-Pierre que trouxeram Thérèse de volta àconsciência. Sim,
Jean-Pierre clamava, não muito longe. Gritava pela mãe, Jean-Pierre. E como
gritava! E como eram saudáveis os seus pequenos pulmões, antes impregnados de
peste e purulência! Jean-Pierre estava vivo. Escapara milagrosamente à morte
certa. Lebourreau cumprira a sua promessa... “Quando Deus nos abandona,
Lebourreau...”
Pôs-se,
então, a mulher a correr. Percorreu as sendas com os olhos enevoados por
lágrimas tão densas que afundavam nas órbitas e se recusavam a cair. Por um
momento, esqueceu-se completamente de Cosette. Teria Jean-Pierre só para si.
Teria Jean-Pierre curado, livre da febre e das pústulas nauseantes. Vivo de
novo. Novamente vivo e saudável!
“...
Lebourreau... nos ajuda!”
Ao
chegar à clareira, viu que Jean Pierre equilibrava-se, como um bêbado, à porta
da choupana de adobe. O garoto escapara à peste. Mas...
O
garoto caiu.
Thérèse
parou. Um choque. Seus pelos se eriçaram como se atraídos por uma auréola
magnética. Uma auréola que os santos recusam e que os demônios impõem. E um
frio violento, vindo de suas trôpegas entranhas, sacudia-lhe o corpo e
enredava-lhe a alma infeliz, enquanto ouvia o garoto gritar.
“De
que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?” A voz do mago fulminou
a mente de Thérèse, que foi ao chão, com o corpo dominado por longos e
dolorosos espasmos.
—
Mãe! Mãe, estou cego! — bradava Jean-Pierre.
Thérèse,
antes de contorcer-se na lama, vira que o olho direito de Jean-Pierre já não
mais existia. E, com pavor, reparara que o olho esquerdo do pequerrucho, sujo e
embaçado, saltava-lhe da órbita qual um ovo grotesco.
—
Eu não posso andar! — urrava desesperadamente o menino, irremediavelmente coxo
e esmagado por uma corcova medonha, uma intumescência que lhe vergava o dorso
deformado e lhe estufava o peito à semelhança de um pombo monstruoso.
À
semelhança da pequena Cosette!
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Nota do editor: Este
conta integra o volume “Histórias Nefastas”. Encontre-o AQUI.
muito grande
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