VINGANÇA- Conto Clássico de Horror - Humberto de Campos
VINGANÇA
Humberto
de Campos
(1886 – 1934)
Quando
o caboclo Amâncio tomou por arrendamento as últimas quatro estradas de
seringueiras do major Nataniel, Francisco das Chagas, cearense chegado há três
anos do Canindé, já se achava estabelecido nas quatro outras que lhe ficavam
vizinhas, e que faziam parte, todas, do seringal "Bom Sucesso". As
madeiras que ele ia sangrar haviam descansado dois cortes e deviam dar bastante
leite naquele verão. Essa vantagem ia custar-lhe, todavia, duplo trabalho
inicial, com a limpa dos vãos obstruídos pela vegetação, e com a construção de
outra barraca, por haver tombado, já, transformando-se em um monte de palha podre,
aquela em que vivera o seu antecessor. Levantá-la-ia, entretanto, no mesmo
lugar, para aproveitar o porto e os pés de cará, tornados selvagens pelo
abandono. Dois dias de foice, desbastando os arbustos novos, poupar-lhe-iam
quatro semanas de machado.
Ao
fim de uma quinzena, quando as chuvas deixaram de fustigar a floresta, e o rio
começou a baixar, estava o Amâncio na sua barraca de bossu e paxiúba[1],
cujas paredes e cobertura de palha nova a transformavam, quando batida de sol,
em uma caixa de ouro, arrepiada de arabescos bizarros. Amarrada à frondosa e
torta gameleira do porto, a "montaria" dançava ao sabor da correnteza
e do vento, afrouxando e esticando a corda. E na barraca, ou no terreiro, a
Mariana, cantarolando ininteligivelmente o dia todo, e a encher com a sedução
bárbara do sexo aquele verde palmo do Deserto.
A
mudança, do seringal "Maranguape" para o "Bom Sucesso", a
que se abalançara o Amâncio, fora involuntariamente causada pela rapariga.
Legitimamente casada, por um padre em desobriga, com o velho índio Martinho,
ficara, quando este morreu, em mãos do mulato Isidoro, que assumira perante o
coronel Dondon, proprietário das estradas que o índio ocupava, a
responsabilidade da dívida do defunto. Quando o mulato foi assassinado pelo
preto Leôncio, o coronel Dondon recolheu a rapariga ao barracão, como garantia
da conta do finado. E como ele, Amâncio, possuía saldo na casa, ficou com a
Mariana, e, para evitar a continuação das relações estabelecidas entre ela e o
coronel, encerrou as suas transações com este, e mudou de patrão, levando a
cabocla.
Mariana
não era, positivamente, nem bonita, nem moça. Índia de raça pura, era gorda, e
baixa, com a mesma largura nos ombros e nos quadris, e devia andar pelos
quarenta anos. O rosto redondo, sombreado e gorduroso, apresentava uma testa
estreita, coroada de cabelos lisos e luzidios, que lhe desciam até à cintura.
Tinha nariz chato, e olhos pequenos e negros, ligeiramente convergentes. A boca,
de tamanho regular e lábios finos, deixava em exposição, quando ria, as
gengivas arroxeadas, em cuja orla corria uma fieira de dentes pontiagudos,
cortados em bico de serra. Vestia, quase sempre, por gosto hereditário, saia e
casaco de chita vermelha, os quais, anunciando-a de longe, davam a impressão de
um guará de penas rubras, pousando na proa das "montarias" ou
pescando à beira do rio. Não tinha beleza nem graça. Mas era mulher, naquelas
regiões em que há uma para dois mil homens, e, só por isso era desejada, e, por
ser desejada, vivia contente, exprimindo o seu contentamento em melopeias,
cujas palavras só ela entendia.
Achava-se
o Amâncio instalado, já havia uma semana, na sua barraca nova, quando, uma
tarde, o Chagas passou pelo seu porto, remando sozinho. A Mariana estava à
margem do rio, de cócoras, lavando roupa, e, como de costume, cantarolando para
si mesma. A saia, arregaçada até os joelhos, deixava à mostra as pernas morenas
e grossas, iguais e sólidas como dois toros de madeira cortados no mesmo
tronco. Ao defrontar o porto, levou o cearense a mão ao chapéu de carnaúba, em
sinal de respeito. A cabocla respondeu ao cumprimento, e continuou a esfregar a
roupa, mas sem olhar para o sabão. O jacumã do seringueiro roncou forte,
rasgando a água. E quando a "montaria" do Chagas desapareceu na curva
do rio, em que as margens eram dois muros de vegetação compacta, Mariana ainda
esfregava o mesmo punho de camisa. Os seus olhos tortos acompanhavam o remador
como dois novelos de linha preta cujas pontas se achassem amarradas à popa da
embarcação, a qual, na sua marcha, os fosse pouco a pouco desenrolando.
Nessa
tarde, até à noite, Mariana não cantarolou mais. No dia seguinte, porém, ao
entardecer, passou a cantar alto, sentiu-se mais contente do que dantes.
Soturno e desconfiado, o Amâncio, em quem não haviam desaparecido ainda a
agudeza e perspicácia do selvagem primitivo, não custou a adivinhar o que se
passava nas horas em que se achava ausente. Rara era a tarde em que não
descobria, na ribanceira do porto, marca de uma proa de "montaria". E
rara, também, a em que não encontrava a chaleira quente, com os vestígios de
que, pouco antes da sua chegada, se tinha feito café. E se os olhos não lhe
dissessem essas coisas, a alma lhe teria dito outras equivalentes, pois que, ao
chegar à barraca, não encontrava mais as mesmas carícias gulosas, os mesmos
abraços vibrantes de animalidade. Antes de descobrir os passos do Chagas na
areia molhada do seu porto, ou a terra frouxa do seu terreiro, já o caboclo os
havia adivinhado no coração de Mariana. O coração das mulheres que amam em
segredo e pecado é como os troncos que têm abelhas: basta que alguém lhes
chegue o ouvido para escutar a zoada lá dentro.
Dias
depois dessa descoberta, o Amâncio começou a aproximar-se, com boas maneiras,
do Francisco das Chagas. Ao encontrá-lo no rio, parava de remar, detinha a
marcha da "montaria" e, cofiando no queixo a barbicha escura e rala,
punha-se a conversar sobre o tempo, sobre o rendimento das seringueiras, ou
sobre a queda crescente do preço da borracha no barracão, dando sinais
inequívocos de que lhe era agradável a sua camaradagem. Convidado por mais de
uma vez, o cearense começou a frequentar a barraca do Amâncio, com a presença
deste, que se mostrava sempre comunicativo e obsequioso, servindo-lhe, conforme
a demora, uma xícara de café ou um gole de aguardente. Até que, um dia, ficou
combinada entre os dois aquela "espera" aos veados no igarapé dos
Mutuns.
—
Você vem mesmo, homem de Deus? — indagou o caboclo, como quem duvida.
—
Venho, "seu" compadre; eu já não disse? Só se Deus Noss'enhor e São
Francisco das Chagas do Canindé não quiserem.
E
tocou no chapéu, num sinal de devoção.
Ao entardecer do dia
aprazado, armado cada um com o seu rifle e levando a tiracolo a corda com que
deviam trazer a caça graúda, meteram-se ambos na "montaria" do Chagas
e penetraram, meia légua rio acima, no estreito caminho d’água, remando com
lentidão. A floresta começava a mergulhar na noite, e parecia em êxtase para
esse mistério. A quietação era absoluta. Ouvia-se o estalar dos ramos secos, a
queda dos açaís maduros no espelho d’água, e o ruído dos jacumãs, ferindo a
superfície lisa do igarapé. Há uma hora de transição, na selva, em que os
animais do dia já se recolheram e em que os da noite ainda não estão acordados.
Hora de trégua; hora de armistício dos seres e das coisas selvagens. E era essa
hora que soava no relógio imenso da Natureza quando o Chagas e o Amâncio
encalharam a "montaria" numa sapopemba[2], e
percorreram os cem metros que os separavam da árvore em cuja fronde se deviam
esconder, à espera dos veados que aí vinham comer as frutas miúdas caídas
durante o dia. Só um pouco mais tarde, com o aparecimento da primeira estrela,
os sapos romperam com a sua orquestra, enchendo a noite de milhões de vozes
confusas, como se todos os troncos, todos os galhos, todas as raízes, todas as
folhas, se transformassem de súbito em bárbaros instrumentos musicais.
Vencendo
a vegetação rasteira e luxuriante das terras baixas e quase alagadas, chegaram
os caçadores a um lugar mais alto, onde um bacurizeiro erguia a fronde elegante
no meio de outras árvores de porte menor, cujo fruto era particularmente
procurado pelos veados da região. Subiram, o Amâncio primeiro, o Chagas em
seguida. Escolheram, para refúgio, um galho alto e sólido, aberto em forquilha
e afogado em folhagem densa de outra árvore que invadia, com as suas ramagens,
a sombra do bacurizeiro. E a escuridão envolveu tudo, aumentando os rumores
circunstantes.
Escachados
no galho escolhido, os dois caçadores trocavam apenas uma ou outra palavra.
Sentia-se, porém, que um e outro estendiam por longe os fios do próprio
pensamento, à semelhança de cigarras que lançassem o canto através do espaço,
levando-o a distâncias que desconhecem. E o pensamento do nordestino errava, às
vezes, tão distante dali, que ele nem se apercebia do movimento leve das mãos
do companheiro, o qual acabava de amarrar uma das pontas da sua corda ao galho
da árvore, e começava a experimentar, entre as folhas, um laço corredio e
seguro, que havia na outra extremidade.
Noite
alta, já, escutaram, os dois, o urro de uma onça, do lado oposto ao igarapé. E
logo duas brasas esverdeadas se acenderam na treva. Duas outras fulgiram, pouco
atrás. E a selva como que se calou apavorada, com a presença dos felinos
sanguinários e hostis. Aproveitando a atenção com que o companheiro perscrutava
a escuridão ameaçadora, o Amâncio aproximou-se dele e, docemente, passou-lhe
por um dos pés, apertando-o de leve, o laço que havia feito na corda. De
súbito, reunindo toda a sua força nos braços, o caboclo levou as mãos ambas aos
peitos do cearense, lançando-o fora do galho. Um berro de surpresa e de dor
alarmou a solidão, a corda esticou num estalo, o bacurizeiro estremeceu
sacudido, e um corpo ficou bailando no ar, no escuro, a pouco mais de dois
metros acima do solo. Ao grito apavorado e apavorante do homem, as onças
fugiram, espantadas, em saltos elásticos, entre o estrépito seco de galhos e
cipós rebentados na passagem.
—
Ai!... Ai!... Ai!... Amâncio... Pelo amor de Deus... me salve!... Ai!... ai!...
Amâncio, por que você fez isso?... Que é que eu lhe fiz, Amâncio .... Ai, meu
São Francisco do Canindé!...
Quieto,
o caboclo conservou-se calado. Os dois rifles, que se achavam entre a folhagem,
estavam nas suas mãos. Podia descer, e ir-se embora; a sua vingança ainda não
estava, entretanto, terminada. O Chagas soltou alguns gritos estrangulados,
pedindo socorro. Compreendendo, porém, a inutilidade desse esforço naquela
solidão em que o homem era a mais estranha das sombras, voltou a gemer,
espaçadamente. Estava de cabeça para baixo e, com o deslocamento da perna,
impossibilitado de alcançar a corda com as mãos, para salvar-se. E gemia há
mais de uma hora quando luziram, de novo, a treva, os olhos da onça. Chagas
gritou, para afugentá-la; mas a ameaça, em vez de amedrontar, incentivou o
felino, que marchou, agachando-se, na direção do bacurizeiro. Outras onças
urraram perto. Seis, oito, dez olhos verdes luziram na escuridão. De súbito, a
primeira onça deu um salto, alcançando com os dentes e com uma das patas o
corpo do seringueiro. Um grito de terror e de angústia espalhou-se pela mata.
Mas as feras não fugiram. Pelo contrário, acorreram em bando, como se tivessem
adivinhado, pela voz estrangulada da vítima, que ela estava sem defesa. E foi
horrível, então, o que Amâncio presenciou, ou, antes, percebeu, imóvel, do seu
esconderijo. As onças, em saltos enormes, disputavam os pedaços da carne do
Chagas. Numa dança de corpos que se chocavam no ar, e de urros de raiva,
estraçalhavam elas, no espaço, os membros do seringueiro. O galho em que se
achava o Amâncio era sacudido, abalado pelas feras, quando estas alcançavam a
corda, nos seus saltos rápidos e seguros, que se cruzavam na sombra.
Segurando-se para não cair, o caboclo ouvia a queda do sangue na terra, como de
um pote pequeno cuja água se derrama. Em certo momento, a corda parou de
esticar, e o galho de ser agitado pelos felinos. Arrastando membros inteiros
para as moitas próximas, as onças devoravam, rosnando, os pedaços que haviam
arrebatado umas às outras. O Amâncio ouvia, perfeitamente, o roer dos ossos. Ao
fim de algumas horas, os sapos deixaram de coaxar. As onças, satisfeitas,
afastaram-se, para beber e dormir. A selva aquietava-se, como se lhe passassem
a mão pelo imenso dorso verde, numa grande carícia voluptuosa. Uma claridade
tênue varou as folhas. Pipilou o primeiro pássaro. Outros responderam. Com os
dois rifles a tiracolo o Amâncio desceu do bacurizeiro. Ao chegar em baixo,
olhou a corda.
Da
extremidade desta, preso pelo tornozelo, pendia, sangrento e sujo, esfiapando
as cartilagens, o pé esquerdo do Chagas, cuja roupa, reduzida a farrapos
estraçalhados e sangrentos, jazia espalhada em torno, entre folhas machucadas e
empapadas de sangue, de mistura com fragmentos de carne e pedaços de ossos
roídos.
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