LILITH - Conto Clássico de Terror - Marcel Schwob
LILITH
Marcel
Schwob
(1867
– 1905)
Tradução
de Paulo Soriano
Not
a drop of her blood was human,
But
she was made like a soft sweet woman.[1]
Dante-Gabriel
Rossetti.
Creio
que ele a amou tanto quanto se pode amar uma mulher neste mundo; mas sua
história foi mais triste que nenhuma. Ele havia estudado durante muito tempo
Dante e Petrarca: as formas de Beatriz e Laura flutuavam diante de seus olhos,
e os divinos versos, nos quais resplandece o nome de Francisca de Rímini,
cantavam em seus ouvidos.
No
primeiro ardor de sua juventude, havia amado apaixonadamente as virgens
atormentadas de Correggio, cujos corpos, voluptuosamente enamorados do céu, têm
olhos desejosos de bocas que palpitam e clamam dolorosamente pelo amor. Mais
tarde, admirou o pálido esplendor humano das figuras de Rafael, o seu sorriso
tranquilo e o seu contentamento virginal. Mas quando foi ele mesmo, tomou por
mestre, assim como Dante, Brunetto Latini, e viveu em seu século, no qual os
rostos rígidos têm a extraordinária beatitude dos paraísos misteriosos.
E,
entre as mulheres, conheceu primeiro Jenny, que era nervosa e apaixonada, e
cujos olhos eram adoravelmente circundados por sombras, banhados por uma
lânguida umidade e marcados por um olhar profundo. Ele era um amante triste e
sonhador. Buscava a expressão da voluptuosidade com uma amargura entusiasmada.
E quando Jenny, fatigada, caía no sono, sob os raios da manhã, ele espalhava
guinéus brilhantes entre os seus cabelos ensolarados. Depois, contemplando suas
pálpebras fechadas e seus longos cílios descansados, e sua fronte ingênua, que
parecia ignorar o passado, perguntava-se, amargamente, recostado ao
travesseiro, se ela preferia o ouro amarelo ao seu amor, e quais seriam os
sonhos desilusionantes que perpassavam sob as paredes transparentes de sua
carne.
Depois,
imaginou as mulheres dos tempos supersticiosos, que enfeitiçavam seus amantes
depois de terem sido por eles abandonadas. Escolheu Hélène, que mexia em um
caldeirão de bronze a imagem de cera de seu pérfido prometido: ele a amou, enquanto
ela traspassava o seu coração com uma delgada agulha de aço. Deixou-a por
Rose-Mary, cuja mãe, que era uma maga, lhe dera um globo cristalino de berilo,
como penhor de sua pureza. Os espíritos do berilo zelavam por ela e a
acalentavam com seus cantos. Mas quando ela se perdeu, o globo fez-se cor de
opala, e ela, em seu furor, o destruiu com uma espada. Os espíritos do berilo
fugiram, chorando, da pedra quebrada, e a alma de Rose-Mary voou com eles.
Então,
amou Lilith, a primeira mulher de Adão, que não foi criada a partir do
homem. Ela não foi, como Eva, feita de terra vermelha, mas de matéria não
humana. Fizera-se semelhante à serpente, e foi ela quem induziu a serpente a
tentar os demais. Pareceu-lhe que ela era mais verdadeiramente mulher — a primeira
—, de sorte que foi a jovem do Norte a quem ele finalmente amou nesta vida, e
com quem se casou, e lhe deu o nome de Lilith.
Mas
era puro capricho de artista; ela parecia-se com as figuras pré-rafaelitas que
ele fazia reviver em suas telas. Tinha os olhos da cor do céu, e seus longos
cabelos eram resplandecentes como os de Berenice que, depois de ofertados aos
deuses, ora se encontram dispersos no firmamento. Sua voz tinha o som suave das
coisas que estão prestes a se quebrar; seus movimentos eram delicados como o
roçar de plumas; e assumia tantas vezes a aparência de algo de outro mundo, que
não este orbe inferior, que ele a olhava como se ela fosse uma aparição.
Para
ela, ele escreveu sonetos sublimes, que contavam a história de seu amor, e os
chamou de A casa da vida. Ele os havia copiado em um volume feito
com páginas de pergaminho. A obra parecia um missal pacientemente ilustrado com
iluminuras.
Lilith
não viveu muito, pois não havia nascido para esta terra. E como os dois sabiam
que Lilith estava morrendo, ela o consolou como pôde.
—
Meu amor — disse-lhe ela —, dos portões dourados do céu, eu me inclinarei à tua
presença. Terei comigo três lírios nas mãos e sete estrelas nos cabelos.
Ver-te-ei do poente divino, que se estende sobre o éter. Tu virás até mim, e
juntos iremos aos poços insondáveis de luz. E rogaremos a Deus para vivermos
juntos eternamente, da mesma forma que nos amamos por um instante neste mundo.
Ele
a viu morrendo enquanto pronunciava estas palavras, e imediatamente escreveu um
poema magnífico, a joia mais bela com a qual jamais se adornou uma morta.
Imaginou que ela o tinha abandonado há dez anos. E a via inclinada sobre os
portões dourados do céu, até que eles amornassem à pressão de seu seio, até que
os lírios adormecessem em seus braços. Ela sussurrava as mesmas palavras.
Depois, escutava por longo tempo e sorria: “Assim será quando ele vier”. E ele
a via sorrir. Então ela estendia os braços ao longo dos portões, cobria a face
com as mãos e chorava. Ele ouvia os seus prantos.
Esta
foi a última poesia que ele escreveu no livro de Lilith. Selou-o para sempre
com colchetes de ouro e, quebrando a pena, jurou que havia sido poeta somente
para ela, e que Lilith levaria a sua glória ao túmulo. Os antigos reis bárbaros
eram enterrados com seus tesouros e seus escravos preferidos. Degolavam as
mulheres que amavam a céu aberto, e suas almas vinham beber do sangue vermelho.
O
poeta que amara Lilith lhe fazia a oferenda da vida de sua vida, do sangue de
seu sangue. Imolava a sua imortalidade terrestre e metia no ataúde a esperança
dos tempos futuros. Ergueu os brilhantes cabelos de Lilith e colocou o
manuscrito sob a sua cabeça. Por detrás da palidez de sua pele, ele via reluzir
o marroquim vermelho e os colchetes dourados que encerravam a obra de sua
existência.
Depois
fugiu para longe da tumba, para longe de tudo o que havia sido humano, levando
a imagem de Lilith no coração e os versos ressoando no cérebro. Viajou em busca
de novas paisagens que lhe não lhe recordassem a amada. Pois queria conservar
as lembranças por si mesmo, e não porque a visão de objetos indiferentes
fizesse-a aparecer diante dos seus olhos. Não uma Lilith humana, tal como ela
parecia ter sido numa forma efêmera, mas umas das eleitas, idealmente situada
mais além do céu, aquela com quem ele iria unir-se algum dia.
Mas
o ruído do mar recordava os prantos de Lilith, e ele ouvia a sua voz sob a profundeza
dos bosques. E a andorinha, ao virar a sua cabeça negra, lembrava-lhe o
gracioso movimento do pescoço de sua amada. E o disco da lua, decomposto nas
águas escuras das lagoas nas clareiras, lançava sobre ele milhares de olhares
dourados e arredios. De repente, uma corça, ao penetrar no mato, oprimiu-lhe o
coração com uma lembrança. As brumas, que envolvem a floresta sob o resplendor
azulado das estrelas, tomaram a forma humana e avançaram para ele, e as gotas
d’água da chuva sobre as folhas mortas pareciam o ágil ruído dos dedos amados.
Fechou
os olhos ante a natureza e, na sombra em que transitavam as imagens de luz
ensanguentada, viu Lilith tal qual como a havia amado — terrestre, não celeste;
humana, não divina —, com um olhar mutante de paixão, que era alternadamente o
olhar de Hélène, de Rose-Mary e de Jenny. E quando tentava imaginá-la
inclinada sobre os portões de ouro dos céus, entre a harmonia das sete esferas,
aquela aparição exprimia a saudade das coisas terrenas, a infelicidade por não
mais amar. Então desejou ter os olhos sem pálpebras dos seres infernais para
escapar de tão tristes alucinações.
Assim,
ansiou por recuperar de alguma forma aquela imagem divina. E, apesar da
promessa que a si mesmo fizera, tentou descrevê-la, mas a pena traiu os seus
esforços. Seus versos choravam sobre Lilith, sobre o pálido corpo de Lilith,
que a terra encerrava em seu seio. Então, lembrou-se — pois já eram passados
dois anos — de que havia escrito maravilhosos poemas, nos quais o seu ideal
resplandecia estranhamente. Estremeceu.
Quando
veio, a ideia o dominou completamente. Ele era sobretudo poeta. Correggio,
Rafael e os mestres pré-rafaelitas, Jenny, Hélène, Rose-Mary, Lilith foram
apenas motivos de entusiasmo literário. Lilith também? Talvez. Mas Lilith não
queria voltar a ele senão como uma terna e doce mulher terrena. Pensou em seus
versos e recordou de alguns fragmentos que lhe pareceram belos. E se
surpreendeu dizendo: “Havia ali bons poemas”. Voltou a sentir nos lábios a
amargura da glória perdida. O homem de letras nele renasceu e o fez implacável.
***
Certa
noite, ele se viu tremendo, perseguido por um cheiro tenaz que se lhe
incrustara à roupa, com a umidade da terra nas mãos, com o ruído de madeira
quebrada em seus ouvidos. E, diante dele, estava o livro, a obra de sua vida,
que ele acabara de arrancar à morte. Havia-o furtado de Lilith. E desfalecia ao
pensar nos cabelos desgarrados, nas suas mãos que procuravam em meio à podridão
de quem havia amado, naquele marroquim que cheirava à morta, naquelas páginas,
odiosamente úmidas, que deixavam escapar a glória com o cheiro da putrefação.
E
quando sentiu ressurgir o ideal por um instante, quando acreditou ver de novo o
sorriso de Lilith e beber de suas lágrimas ardentes, foi tomado pelo frenético
desejo de glória. Enviou à publicação o manuscrito, com o sangrento remorso de
um furto e de uma prostituição, e o doloroso sentimento de uma vaidade
satisfeita. E abriu ao público seu coração, mostrou toda a sua angústia,
arrastou diante dos olhos de todos o cadáver de Lilith e sua inútil imagem
entre as eleitas. E nesse tesouro tisnado por um sacrilégio, entres as
canaletas das frases, ressoava o rangido de um caixão.
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