MEU VIZINHO JACQUES - Conto Clássico Fúnebre - Émile Zola
MEU
VIZINHO JACQUES
Émile
Zola
(1840
– 1902)
I
Naquela
época, eu morava na rua Gracieuse, no sótão dos meus vinte anos. A rua
Gracieuse é um beco íngreme, que desce a
colina Saint-Victor, por detrás do Jardin des Plantes.
Subi
dois andares — as casas são baixas nesta região — ajudando-me com uma corda
para não resvalar nos degraus desgastados, e assim cheguei ao meu casebre na
mais completa escuridão. O quarto, grande e frio, tinha a nudez e a clara
palidez de um sepulcro. No entanto, eu tinha momentos luminosos em meio
àquela sombra, dias em que meu coração raiava.
Então,
chegaram-me os risos de uma criança, vindos do sótão vizinho, onde uma família
inteira morava: o pai, a mãe e uma criança de sete a oito anos.
O
pai tinha um aspecto anguloso, com a cabeça plantada entre dois ombros
pontudos. Seu rosto ossudo era lívido, com grandes olhos negros sob as
sobrancelhas grossas. O homem, em meio àquela expressão sombria, mantinha um sorriso tímido.
Parecia uma grande criança de cinquenta anos que se perturbava, ruborizava-se como uma menininha. Buscava a sombra e
caminhava ao longo das paredes com a humildade de um prisioneiro indultado.
Algumas
saudações que trocamos nos fizeram amigos. Eu gostava daquela estranha
fisionomia, repleta de uma inquieta bonomia. Aos poucos, chegamos a trocar apertos
de mão.
II
Ao
final de seis meses, eu ainda não sabia a
profissão que provia a subsistência de meu vizinho Jacques e de sua
família. Ele pouco falava. De fato, por pura curiosidade, questionei a
mulher duas ou três vezes. Obtive, contudo, apenas respostas evasivas, entrecortadas
de constrangimento.
Um
dia — havia chovido no dia anterior e meu coração doía —, enquanto eu descia o
bulevar d'Enfer, vi um desses párias da classe trabalhadora de Paris vindo em
minha direção. Era um homem vestido e enchapelado de preto, com gravata branca,
que levava debaixo do braço o caixãozinho de uma criança recém-nascida.
Caminhava
com a cabeça baixa, carregando seu fardo leve com uma indiferença sonhadora, e
enxotando, com o pé, as pedras para fora do caminho. A manhã estava branca. Eu amava aquela efêmera
tristeza. Ao som de meus passos, o homem ergueu a cabeça, depois a virou
rapidamente, mas era tarde demais: eu o havia reconhecido. Meu vizinho
Jacques era um papa-defunto[1].
Eu
o vi afastar-se, envergonhado da própria vergonha. Lamentei não ter tomado
outro caminho. Cabisbaixo, ele seguia em frente, sem dúvida dizendo a si mesmo
que acabara de perder o aperto de mão que trocávamos todas as noites.
III
No
dia seguinte, encontrei-o na escada. Ele se encostou timidamente na parede,
fazendo-se pequeno — pequenininho —, e pegando humildemente as dobras de sua camisa para que o
pano não tocasse a minha roupa. Ele
estava ali, com a fronte inclinada, e vi a sua pobre cabeça encanecida tremendo
de emoção.
Parei,
olhando-o no rosto. Estendi-lhe a mão.
Ele
ergueu a cabeça, hesitou e, por sua vez, fitou-me no rosto. Vi os seus grandes
olhos agitarem-se e o seu rosto lívido tingir-se de vermelho. Então,
pegando abruptamente o meu braço, acompanhou-me até o meu sótão, onde finalmente recuperou a
voz:
—
Você é um jovem corajoso —disse-me ele. — Seu aperto de mão me faz
esquecer muitos olhares desagradáveis.
E
ele se sentou e se confessou comigo. Disse-me que, antes de exercer o ofício, sentia,
como qualquer pessoa, certo mal-estar ao deparar-se com um papa-defunto. Mas,
desde então, em suas longas horas de caminhada, em meio ao silêncio dos cortejos
fúnebres, refletia sobre essas coisas, e ficava espantado com a repulsa e o
medo que despertava nas pessoas ao passar por elas.
Eu
tinha então vinte anos e seria capaz de beijar um carrasco. Lancei-me a fazer considerações
filosóficas, querendo demonstrar ao meu vizinho Jacques o quão sagrado era o
seu trabalho. Mas ele encolheu os ombros pontudos, esfregou as mãos em
silêncio, e retomou a sua voz lenta e tímida:
—
Veja, senhor. Os comentários da vizinhança e os olhares de reprovação dos
transeuntes pouco me preocupam, desde
que minha mulher e minha filha tenham pão à mesa. Só uma coisa me inquieta:
não durmo à noite quando penso nisso. Somos, minha mulher e eu, pessoas velhas
que já não mais sentem vergonha. Mas
com garotinhas é diferente. Minha pobre Marthe sentirá vergonha de mim mais
tarde. Quando tinha cinco anos, ela viu um dos meus colegas e chorou
tanto, com tanto medo, que ainda não ousei pôr o casaco preto em sua presença. Eu
o ponho e o tiro na escada.
Senti
pena do meu vizinho Jacques. Disse-lhe que podia doravante guardar o seu
uniforme no meu quarto e vir colocá-lo à vontade, ao abrigo do frio. Ele
tomou mil precauções para transportar ao meu quarto as suas sinistras
vestimentas. Daquele dia em diante, eu o via regularmente de manhã e à
noite. Aprontava-se num canto do meu sótão.
IV
Eu
tinha um velho baú cuja madeira estava esfarelando, tomada pelas traças. Meu
vizinho Jacques fez dele seu guarda-roupa. Forrava-lhe o fundo com jornais e sobre eles dobrava
delicadamente as suas roupas pretas.
Às
vezes, à noite, quando um pesadelo me despertava num sobressalto, eu olhava
consternado para o velho baú, que se estendia contra a parede como um caixão de
defunto. Pensava ver o chapéu, o casaco preto e a gravata branca saindo de
seu interior.
O
chapéu rodava em torno de minha cama, zumbindo e dando pequenos pulos nervosos; a capa,
crescida, agitava suas abas como grandes asas negras, voando pela sala, ampla e
silenciosa; a gravata branca ampliava-se, esticava-se mais ainda e se
punha a rastejar suavemente em minha direção, com a cabeça erguida e a cauda
abanando.
Eu
abria meus olhos desmesuradamente e via o velho e escuro baú parado em seu
canto.
V
Naquela
época eu vivia em sonhos; sonhos de amor, também sonhos de tristeza. Eu me comprazia de
meus pesadelos. Amava meu vizinho Jacques, porque ele vivia com os mortos
e me trazia os acres odores dos cemitérios. Ele me fazia confidências. E
comecei a escrever as primeiras páginas
das Memórias de um Papa-defunto.
À
noite, meu vizinho Jacques, antes de se despir, sentava-se no velho baú para me
contar sobre seu dia de trabalho. Ele gostava de falar sobre os seus
mortos. Às vezes era uma menina — a pobre criança, que morreu de
tuberculose e que pesava pouco; às vezes era um velho — um velho cujo
caixão lhe machucara os braços; outras, era um funcionário público importante,
que devia carregar o seu ouro nos bolsos. E eu tinha detalhes íntimos
sobre cada morte. Eu sabia o peso dos defuntos, o ruído que faziam nos
ataúdes, a maneira como tinham que ser baixados nos degraus da escada.
Certas
noites, o meu vizinho Jacques chegava em casa mais falante e comunicativo. Encostava-se
nas paredes, com o casaco pendurado no ombro e o chapéu jogado para trás. Havia
conhecido uns herdeiros generosos que lhe pagavam "umas doses de bebida e um
pedaço de queijo de consolo”. E ele acabava por enternecer-se. Jurava-me
que me desceria à sepultura, quando chegasse a minha hora, com uma mão suave.
Portanto,
vivi mais de um ano em pleno obituário.
Certa
manhã, o meu vizinho Jacques não apareceu. Oito dias depois, estava
morto.
Quando
dois de seus colegas de ofício removeram o seu corpo, eu estava à minha
porta. Eu os ouvi pilheriando, enquanto baixavam o caixão, que gemia
silenciosamente a cada batida.
Um
deles, um pouco gordo, disse ao outro, muito
magro:
—
O papa-defunto foi “papado”.
[1]
Em francês, croque-mort: funcionário de agências funerárias responsáveis
por colocar o defunto no caixão e transportá-lo ao cemitério.
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