OS IMPROVÁVEIS - Conto de Terror - Luiz Poleto
OS
IMPROVÁVEIS
Luiz
Poleto
1
Flávio
abriu os olhos quando os primeiros raios de sol do dia começaram a queimar seu
rosto. Era verão e naquela região o sol já nasce com o dobro da potência do
restante do ano. O calor trazia também as moscas-varejeiras, da fruta, do
estábulo, dos infernos, de todo lugar — que rodeavam e zuniam e pousavam no
sangue sobre seu corpo.
Sangue
que não era seu. Sentado e fazendo movimentos aleatórios como se conduzindo uma
orquestra fora de sincronia para espantar as moscas, ele sentiu o gosto
metálico em sua boca. O gosto outrora suave de carne era agora amargo e forte.
Cuspiu, esfregou o antebraço sobre a boca, e sentiu as lágrimas escorrendo. Era
época de lua cheia, o que significava que a temporada de caça estava aberta.
Uma
pontada aguda espalhou-se pelo lado direito do torso quando se levantou. Flávio
deu um gemido e intuitivamente levou a mão sobre o local que doía. As roupas
estavam em farrapos, como de costume, e desta vez um talho que se espalhava
desde debaixo do peito direito até se perder de vista nas costas.
Caçadores,
talvez? Flávio já não desfrutava da juventude de antes, e o tempo pune de forma
igual humanos e licantropos. A cabeça doía e ele sabia o que viria em seguida:
entre espasmos e escuridão, as imagens da noite anterior apareceriam em frações
de segundos por detrás de seus olhos.
2
A
lua iluminava o parque e a figura lupina espreitava por entre as sombras. O
faro aguçado o levou até o casal que se aventurava pelo local deserto. Tolos. Não
fossem virar comida, seriam assaltados. Mas os níveis de feromônios estavam tão
altos que talvez estivessem afetando o julgamento. Melhor assim. Com a idade,
perde-se o desejo pela adrenalina gerada pelas caçadas e prioriza-se a
efetividade delas; vence o menor esforço.
O
casal caminhava, e o lobo seguia por entre as árvores. O silêncio tomava a
noite. O lobo assumiu a posição para o bote e atirou-se sobre o casal. Garras
cortando o vento. O ar cortando por entre os dentes na boca aberta. Olhos
fixados nas presas. E um impacto forte. Não pelo contato com as vítimas; estas
gritavam, de susto e pavor, e corriam.
O
lupino já estava de pé quando olhou ao redor procurando o que — ou quem — o havia atingido. A sombra se projetava por
detrás dele e estendia-se até se perder de vista. Com um salto ligeiro,
virou-se para trás e afastou-se de seu algoz, encarando-o.
—
Koddlak —disse o lobo. — Pensei que nunca mais o veria por aqui.
—
Não me recordo de ter concedido permissão para que você caçasse no meu
território — respondeu o outro lobo. You-Koddlak, também amaldiçoado pela
licantropia, era mais alto e largo que a forma lupina de Flávio.
—
Seu território, se bem me lembro, é aquele cubo de gelo nos confins da Europa,
que foi para onde te mandei da última vez.
—
Já disse que tomei um certo gosto pela carne tropical. Menos refinado, é claro,
do que o padrão europeu. Mas não menos suculento. Desculpe, mas você precisa
partir. — Koddlak levantou a mão, apontando o dedo em riste. — Em definitivo,
desta vez. Considere-se avisado.
You-Koddlak
virou as costas para ir embora, mas o lobo sentiu o sangue ferver e atirou- se
sobre o seu oponente. Os uivos e rosnados rasgaram a noite assim como as garras
e dentes dilaceraram as carnes. A batalha continuou até que ambos os lupinos
estivessem exaustos. Koddlak aproveitou um descuido de seu adversário e correu
para entre as árvores, sumindo de vista.
3
Flávio
caminhou por entre as árvores e mato fora das ruas principais até chegar ao
casebre que mantinha nos arredores da favela local. O único aposento continha
um baú com um punhado de roupas que seriam usadas após cada transformação, acompanhado de uma caixa de papelão que
serviria de lixeira para as roupas em farrapos. Um criado-mudo isolado na
parede oposta continha água, uma garrafa de Jack Daniel's e um kit de
primeiros-socorros.
A
água foi consumida primeiro, seguida por metade do Jack. O restante foi
despejado sobre a ferida antes da agulha e linha fecharem o suvinir dado pelo
seu velho conhecido. Lobisomens, assim como seus parentes distantes, os lobos,
eram territorialistas, mas disputas territoriais eram praticamente
inexistentes, dada a raridade dos lupinos. Por piada do destino, talvez,
You-Koddlak — imigrando da Noruega —
tomou residência na região por conta da faculdade local. Mas Flávio nascera e
crescera ali. Jogou bola, soltou pipa, andou de bicicleta, foi mordido por um
lobisomem que estava de passagem, namorou, casou, e teve filhos. Aquele era o
seu território. Sua urina estava espalhada pelo local como prova. Mas
You-Koddlak era europeu e talvez não reconhecesse o direito de propriedade de
habitantes do terceiro mundo. Ou talvez fosse um bully. Não importava;
ele precisava sumir.
Flávio
se levantou e alcançou a maleta de ferramentas que ficava abaixo do
criado-mudo. A próxima etapa da rotina era o reparo da jaula que mantinha para
as noites de lua cheia, em uma frágil tentativa de impedir, ou ao menos
retardar, a sua saída pela noite. Mesmo depois de todos estes anos, o
sentimento de culpa pelas mortes inocentes ainda o incomodavam, mesmo que
apenas por alguns dias.
Mas
naquele dia a jaula estava intacta. Nenhuma barra retorcida. Nenhum parafuso
fora do lugar. Aquilo era um mau sinal. Significava que Flávio não estava na
casa quando aconteceu a transformação, o que poderia ser um problema. Se a
transformação aconteceu em algum lugar com muitas pessoas em volta, significa
que o número de vítimas seria maior do que o de costume. "Merda",
pensou, ou falou.
No
caminho de casa, as únicas cenas que apareciam com clareza eram do encontro com
Koddlak. Os momentos antes eram uma página em branco. Ao chegar em casa, abriu
a porta e foi recebido pelo hálito quente e úmido do verão, que realçava o
cheiro metálico de sangue e carne. O sangue se espalhava pelas paredes cinza e
teto branco em um estranho contraste. O coração batia acelerado e a respiração
estava ofegante porque Flávio conseguia
ver as cenas que antes estavam em branco; as cenas da transformação. Não
que a memória tivesse retornado; oh, não. Lembranças do processo de assumir a
forma lupina eram raras, muito raras. Flávio ligou os pontos; preencheu as
lacunas.
Foi
ali que ele virara lobo na noite anterior. No conforto de casa. O calor físico
e metafórico em contraste com o ódio e a fome. Amor e destruição compartilhando
os mesmos metros quadrados. A fragilidade e inocência sem defesa contra o
terror incontrolável. O caos controlando a escuridão.
Os
pulmões encolheram e o peito era pressionado por uma mão invisível. A ferida no
torso ainda estava lá, mas não doía tanto quanto a culpa. Era um risco, ele
sabia, e poderia acontecer a qualquer momento. Por isso o casebre em segredo e
todo o cuidado para estar longe da família nas noites de lua cheia. Mas certas
coisas não podiam ser controladas e para isso, existia um plano B.
No
seu armário, escondido longe das mãos e olhos indesejados, a caixa de metal
guardava o Colt de 1892 e uma única bala de prata, presente do lupino que o
transformou. "Vai chegar o dia", ele disse, "em que a maldição
vai se materializar". Flávio carregou a arma e mordeu o cano. Na época as
palavras não fizeram sentido, mas, naquele momento, ele entendeu o que era a
maldição. Virar lobo nunca foi o problema. Ele fechou os olhos e decorou o
restante das paredes com seus miolos.
Do
lado de fora, espiando pela janela, You-Koddlak ria. A jaula em que Flávio se
transformara na noite anterior estava a seu lado, totalmente danificada como de
costume. Sabia que Flávio era impulsivo e não ia pensar duas vezes se ao menos
suspeitasse ter feito algo contra sua família. "Eu disse que você ia
embora de uma forma ou de outra", pensou enquanto ia embora.
Escrito em 06 de
outubro de 2020
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