A AMANTE DEFUNTA - Conto Clássico de Terror - Flégon de Trales
A
AMANTE DEFUNTA
Flégon
de Trales
Flégon de Trales (séc. II d.C.), escritor e historiador grego romanizado,
foi um liberto do imperador Adriano (76 - 138 d.C.) e ás da paradoxologia,
gênero da literatura grega, do período helenístico, que relata fenômenos e
acontecimentos anormais ou inexplicáveis do mundo natural ou humano, abordando
temas como fantasmas, monstros, fenômenos atmosféricos estranhos e outras
excentricidades e aberrações. “A Amante Defunta” integra “O Livro das
Maravilhas” que, embora nos tenha chegado incompleto, ainda assim é a mais
famosa obra do gênero. A narrativa que apresentamos — precursora das modernas
histórias de mortos-vivos — retrata a lúgubre e trágica aventura de uma mulher
que, saída de sua tumba, deita-se noites seguidas com o homem a quem amara em
vida, até que, descoberta, reassume a sua condição de cadáver.
A mórbida história de Flégon inspirou o grande poeta alemão Johann
Wolfgang Goethe (1749 — 1832) no célebre poema “A Noiva de Corinto” (“Die Braut
von Korinth”, 1797). Sua influência também é sentida, em maior ou menor
intensidade, em clássicos como “Berenice” e “Ligeia”, de Edgar Allan Pöe, “A
Aventura do Estudante Alemão” (“Adventure of a German Student”), de Washington
Irving, e “A Mulher da Gargantilha de Veludo” (“La Femme au Collier de
Velours”), de Alexandre Dumas.
Nota importante: O início da narrativa de Flégon se
perdeu. Mas é possível reconstituir o enredo a partir do breve relato de Proclo
Lício (412 — 485 d.C.). Segundo o filósofo neoplatônico grego, durante o
reinado de Filipe da Macedônia, Philinnion, filha de Demóstratos e Kharito,
morrera recém-casada. O seu marido chamava-se Krateros. Mas, no sexto mês após
a sua morte, a jovem mlher ressurgiu do túmulo e, por várias noites
consecutivas, secretamente se encontrou com um jovem, Machates, a quem
realmente amara em vida. O fragmento que nos chegou inicia-se com uma visita de
uma aia ao quarto em que Machates, hóspede na casa, dormia e o surpreende em
companhia da jovem há meio ano falecida.
A
ama aproximou-se da porta do quarto de hóspedes e, com a lamparina acesa, viu a
jovem — que morrera e fora sepultada — sentada junto a Machates.
Em
razão da natureza extraordinária daquela visão, ela não permaneceu ali por
muito tempo, senão correu para os pais da moça, gritando:
— Kharito! Demóstratos!”
Então a ama lhes disse que se levantassem e
corressem com ela para ver a sua filha, pois esta, por alguma determinação
divina, aparecera viva, e estava no quarto de hóspede com Machates.
Quando
Kharito escutou o estranho relato, o seu espírito, a princípio cheio de
estupor, se desvaneceu em razão da magnitude da notícia e do estado de
perturbação da ama, mas, pouco depois, a memória de sua filha a inundou, e ela
se pôs a chorar. Contudo, por fim, acusou a velha ama de loucura e disse-lhe
para deixar a sua presença imediatamente.
A
ama, porém, respondeu corajosamente, e em tom de censura, que estava em
perfeito juízo, ao contrário de sua senhora, que relutava em ver a própria
filha. Com certa hesitação, Karitho acorreu ao quarto de hóspede, em parte
compelida pela ama, em parte querendo inteirar-se do que realmente estaria
acontecendo.
Porquanto
transcorrera muito tempo, eis que fazia duas horas que recebera a notícia,
Kharito chegou muito tarde à porta do quarto, pois o casal já estava deitado.
Assim, pois, lançando a vista ao interior do aposento, a mãe julgou reconhecer
as roupas e os traços fisionômicos da filha morta, mas, como não podia, de
qualquer forma, comprovar a verdade, julgou conveniente nada mais fazer naquela
noite. Esperava que, pela manhã, pudesse surpreender a moça quando esta se
levantasse ou, se se demorasse, interrogar detalhadamente Machates sobre o
acontecido. Pensava que este não haveria de mentir-lhe sobre um assunto tão
importante. Assim, afastou-se em silêncio.
Todavia,
quando amanheceu, não se sabe se por vontade divina ou por puro acaso, a jovem
partiu às escondidas. Quando Kharito chegou, irritada com aquela escapadela,
pediu a Machates, abraçada a seus joelhos, que lhe contasse tudo o que sabia,
desde o início, e que nada omitisse.
O
jovem, temeroso e confuso a princípio, revelou, hesitante, o nome da moça:
Philinnion. E contou à senhora como as visitas começaram e como era grande o
seu desejo por ela. Esta lhe dissera que vinha vê-lo sem o conhecimento de seus
pais. Desejoso de demonstrar a veracidade do fato, abriu uma arca e dela tirou
o anel de ouro que dela havia recebido e o peitoral que ela havia deixado na
noite anterior.
Quando
Kharito viu tão contundentes provas, soltou um grito, após rasgar as próprias
vestes e o manto, e arrojar da cabeça o véu. Depois, caiu ao chão, atirando-se
às provas e experimentando novamente a sua dor. Quando o hóspede viu o que
estava acontecendo, e notou que todos estavam de luto e se lamentavam, como se
estivessem prestes a deitar a jovem em sua sepultura, mostrou-se confuso. Mas
os exortou a que pusessem fim àquelas manifestações, prometendo-lhes que, se
ela voltasse a aparecer, mostrá-la-ia a todos. Kharito, convencida, aceitou a
promessa, e, rogando-lhe que mantivesse a palavra, retirou-se.
Veio
a noite, e era a hora em que Philinnion costumeiramente corria ao encontro de
Machates. A família mantinha-se expectante, aguardando a sua chegada. Ela
entrou no horário habitual e sentou-se na cama. Machates fingiu que nada havia
de extraordinário, uma vez que desejava investigar toda aquela incrível
situação. Mas não acreditava absolutamente que recebia em seu leito uma morta,
pois a moça chegara com tanto cuidado à hora de sempre, e mesmo comera e bebera
com ele. Assim, ele simplesmente não podia acreditar no que os outros lhe
tinham dito. Preferia acreditar que ladrões de túmulo haviam escavado uma tumba
e vendido os vestidos e as joias ao verdadeiro pai da jovem. Portanto, como
desejava ver as coisas esclarecidas, enviou furtivamente seus criados para
chamarem Demóstratos e Kharito.
Eles
vieram rapidamente. Quando viram a jovem, ficaram, de início, mudos e
estupefatos diante de tão assombrosa visão. Mas, depois, gritaram e correram
para a filha. Então Philinnion lhes disse:
—
Mãe, Pai, quão injustamente vos mostreis receosos de que com o hóspede eu tenha
estado durante três dias, sem ser motivo de aflição para ninguém na casa
paterna. Por conseguinte, vós vos lamentareis desde o princípio por causa de
vossa excessiva curiosidade. De minha feita, regressarei ao lugar que me foi
designado, pois não cheguei aqui sem que esta fosse a vontade divina.
Mal
pronunciou estas palavras, Philinnion retornou ao estado cadavérico e estendeu
o seu corpo visível sobre o leito.
Seus
pais a abraçaram, e naquela casa houve enorme tumulto e lamentos em razão de
tão grande desgraça. A infelicidade era insuportável e a visão incrível. A
notícia do terrível espetáculo se difundiu por toda a cidade e chegou aos meus
ouvidos.
Assim,
pois, durante aquela noite, contive a multidão que se reunira em frente à casa,
tendo o cuidado de que não ocorressem distúrbios à propagação de tais rumores.
Às primeiras luzes, o teatro [1] se
encheu. Após a narrativa de tudo o que havia acontecido, tomou-se a decisão de
que nós nos dirigiríamos em primeiro lugar à tumba e a abriríamos para saber se
o cadáver ali permanecia ou encontraríamos o lugar vazio, pois não haviam
transcorrido seis meses desde a morte da jovem mulher. Assim que abrimos a câmara,
em que todos os parentes eram depositados ao morrer, sobre os leitos vimos os
cadáveres jacentes, e os ossos dos que haviam perecido muito tempo antes. Sobre
um dos leitos, aquele em que havia sido depositado o corpo de Philinnion, e lhe
havia servido de sepultura, apenas encontramos colocado sobre a laje um anel de
ferro, que pertencera ao hóspede, e a taça dourada que a jovem recebera de
Machates no primeiro encontro.
Surpresos
e cheios de estupor, apresentamo-nos a Demóstratos no quarto de hóspede para
contemplar a morta e constatar se ela era realmente
tangível. Quando vimos que ela jazia realmente morta no leito, reunimo-nos em
assembleia, pois os acontecimentos eram portentosos e inacreditáveis. Mas, como
se produziu um tumulto cheio de terror na assembleia, e quase ninguém era capaz
de explicar o acontecido, Hilo, em primeiro lugar, que era considerado entre
nós não somente o melhor adivinho, mas também um hábil augu [2], e,
ademais, tinha das coisas uma visão particularmente destacada, pondo-se em pé,
ordenou que enterrassem a jovem fora dos limites da cidade — pois já não era
conveniente que fosse enterrada dentro de seus lindes — e que fizéssemos um
sacrifício expiatório a Hermes [3]
infernal e às Eumênides [4] , e que depois todos se purificassem
completamente, e que lavassem com água lustral os objetos sagrados. E nos
prescreveu todos os rituais adequados aos deuses infernais. E a mim,
particularmente, recomendou que fizesse sacrifícios pelo rei, e, também, a
Hermes, a Zeus [5] , protetor da hospitalidade, e a Ares [6], e que levasse a
cabo todo o ritual conscienciosamente. Quando nos deu a conhecer estas coisas,
levamos a efeito o ordenado. E o hóspede Machates, a quem a aparição havia
visitado, caiu em profunda melancolia e se matou.
Se
achas que deves escrever ao rei [7] sobre estas coisas, diga-me por carta, para
que te envie também um dos que também examinaram o cadáver detalhadamente.
Saudações.
Tradução indireta de
Paulo Soriano.
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[1] Provavelmente, o teatro era o lugar onde os
cidadãos se reuniam, em assembleia, para discutir e votar matérias de interesse
geral.
[2] Sacerdote que, na antiguidade, praticava
oficialmente a adivinhação.
[3] Na mitologia helênica, Hermes, o mensageiro
dos Deuses, era também o guia das almas para o reino do mundo inferior (ou
Tártaro).
[4] As Eumênides, também chamadas Erínias,
eram a personificação da vingança e da retribuição. A elas — Tsífone, Megera e
Alecto — cabia punir os mortais.
[5] Líder supremo dos deuses do Olimpo.
[6] Deus da guerra.
[7] Filipe II da Macedônia (382 – 336 a.C.).
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