A AFOGADA - Conto Clássico de Terror - Nikolai Gogol

 


A AFOGADA

Nikolai Gogol

(1809 – 1852)

 

Como um débil ancião, o lago envolvia, com seus braços frios, o céu escuro e distante, cobrindo com beijos gelados as estrelas que ardiam tenuemente em meio ao tépido oceano do ar noturno, como se pressentisse a brilhante rainha da noite.

Junto à floresta, dormitava, sobre a montanha, com os postigos fechados, uma velha casa de madeira; seu telhado estava coberto de musgo e hera selvagem. Macieiras encrespadas cresciam diante de suas janelas; a floresta, abraçando-a com sua sombra, projetava-lhe uma escuridão selvagem, e o pequeno bosque de nogueiras deitava-se a seus pés, descendo para o lago.

— Lembro-me, como se em sonhos — disse Ganna, sem tirar os olhos de Levko —, que há muito, muito tempo, quando eu ainda era muito pequena e vivia na casa de minha mãe, contaram-me algo terrível sobre aquela casa. Você, Levko, certamente sabe a história. Conte-a para mim!

— Deixe disso, minha linda. Gente tola conta tanta coisa absurda... Ouvir essas histórias a deixaria inquieta. Você teria medo e não conseguiria dormir tranquilamente.

— Conte-me, conte-me, querido rapaz de sobrancelhas negras! — disse ela, estreitando seu rosto na face de Levko e o abraçando. Não... É claro que você não me ama. Tem outra garota. Não ficarei com medo.  Dormirei tranquilamente à noite. Mas, se não me conta, não dormirei. Vou me atormentar em pensamentos. Conte-me, Levko!

— Pelo visto, as pessoas bem dizem que nas garotas há um demônio que instiga a curiosidade.

“Bem... Escute... Há muito tempo, um capitão dos cossacos vivia nessa casa. Ele tinha uma filha. Uma linda garota, branca como a neve. Como a sua carinha. Porque a esposa do capitão havia morrido há muito tempo, ele resolveu casar-se novamente.

“‘— Paizinho, o senhor continuará a me querer quando tomar para si uma nova esposa? — perguntou a filha.

“’— Sim, minha filha... E, ainda mais forte do que antes, vou apertá-la contra o meu coração. Sim, minha filha... Vou presenteá-la com mais brilhantes, colares e brincos.

“O capitão cossaco trouxe sua jovem esposa para a nova casa. Ela era branca, de faces rosadas, mas olhou de uma maneira tão terrível para a sua enteada, que esta lançou um grito ao vê-la, e a severa madrasta não lhe dirigiu uma palavra o dia todo.

“Chegou a noite. O capitão dos cossacos recolheu-se à alcova com a sua jovem esposa; a garota trancou-se em seu quartinho.  Sentia uma grande amargura e se pôs a chorar. Nisso, ela viu, aproximando-se, uma assustadora gata negra, cujo pelo ardia e as férreas garras arranhavam o chão.

Presa de terror, a garota saltou sobre o banquinho e a gata a seguiu. Saltou outra vez ao catre, mas a gata, de repente, jogou-se ao seu pescoço e começou a estrangulá-la. Com um grito, ela a empurrou para longe, jogando-a ao chão, mas a terrível gata voltou a avançar furtivamente.  Uma grande angústia se apoderou da garota.

“A espada de seu pai estava pendurada na parede. Ela a pegou e desferiu um golpe no animal.  Uma das patas, com suas garras de ferro, saltou fora, e o gata, com um grito, desapareceu num canto escuro.

“Durante todo o dia, a jovem esposa não saiu de seu quarto. No terceiro dia, contudo, ela apareceu com uma mão enfaixada. A pobre garota, então, descobriu que a sua madrasta era uma bruxa, e que lhe havia cortado a mão.

“No quarto dia, o capitão dos cossacos ordenou que a filha trouxesse água e escovasse o bezerro, como se fosse uma simples camponesa. Proibiu-a, ainda, de aparecer nos aposentos dos seus amos. Foi muito difícil para a pobre moça suportar tudo isso, mas... o que fazer? Ela cumpriu a vontade de seu pai.

“No quinto dia, o capitão dos cossacos pôs a filha fora de casa, descalça e sem, sequer, lhe dar um pedaço de pão para o caminho. Só então, a jovem começou a soluçar, cobrindo o seu rosto branco com as mãos.

“’— O senhor fez perecer a filha de seu sangue, meu pai! A bruxa fez perecer a sua alma pecadora! Que Deus lhe perdoe. E, quanto a mim — pobre moça miserável! —, pelo visto, o senhor ordena a não continuar neste mundo’”.

— Mas... olhe ali! — disse Levko, voltando-se para Ganna.  — Veja. Ali, depois da casa, há um alto penhasco. Dali a menina se jogou na água, e desde então desapareceu do mundo.

— E a bruxa? — Ganna perguntou, com um ar assustado, olhando para ele com os olhos cheios de lágrimas.

— A bruxa! As mulheres idosas contam que, a partir de então, a cada noite de luar, as mulheres afogadas saem ao jardim do capitão dos cossacos para se aquecerem sob os raios da Lua, e que a filha dele as lidera, seguindo na frente.

“Certa noite, a jovem afogada viu sua madrasta junto ao lago. Correu para ela e, com um grito, a arrastou para o lago, mas a bruxa encontrou um meio de safar-se. Transformou-se, debaixo d'água, em uma das afogadas, e, com este recurso, livrou-se de ser espancada com verdes juncos pelas demais.  Você que acredite nessas tolices!




“As velhas contam, ainda, que a filha do capitão dos cossacos reúne as mulheres afogadas todas as noites e olha as suas faces uma a uma, tentando reconhecer qual delas é a madrasta; mas, até agora, ela não foi capaz de descobri-la. E, se cai um ser humano em suas mãos, ela, imediatamente, o força a adivinhar qual das afogadas é a bruxa. Caso contrário, ela ameaça afogá-lo. Eis aqui, querida, o que dizem as velhas. O atual senhor da terra quer construir na casa uma adega e, para tanto, mandou trazer um viticultor.  Mas....  Ouço alguma coisa... São nossos amigos, que pararam de cantar.  Adeus, Ganna. Durma bem e não pense nesses contos tolos”.

Dizendo isto, Levko a abraçou com mais força, beijou-a e foi embora.


Versão em português (tradução indireta) de Paulo Soriano.


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