CARTA DE UM LOUCO - Conto Clássico Fantástico - Guy de Maupassant
CARTA
DE UM LOUCO
Guy
de Maupassant
(1850
– 1893)
Tradução
de Paulo Soriano
Meu
caro doutor, coloco-me em suas mãos. Faça o que quiser comigo.
Vou
lhe narrar, bem francamente, o meu estranho estado de espírito, e o senhor
poderá avaliar se não seria melhor que eu fosse tratado, durante algum tempo, numa
casa de repouso, em vez de abandonar-me às garras das alucinações e dos
sofrimentos que me atormentam.
Aqui
está a longa e precisa história da singular enfermidade de minha alma.
Eu
vivia, como todo mundo, contemplando a vida com os olhos abertos e cegos de
todo homem, sem me surpreender e sem compreender o que via. Vivia como vivem os
animais, como todos vivemos, realizando todas as funções da existência,
examinando e acreditando ver, acreditando saber, acreditando conhecer o que me
cercava, quando, certo dia, percebi que tudo é falso.
Foi
uma frase de Montesquieu que, de repente, iluminou meu pensamento. Ei-la “Um
órgão a mais ou a menos em nossa máquina nos teria dado uma outra
inteligência... Numa palavra, todas as leis — estabelecidas sobre o fato de que
nossa máquina é de uma certa maneira — seriam
diferentes se nossa máquina não fosse tal como ela é.”
Tenho
refletido sobre isto há meses, meses e meses, e, paulatinamente, penetrou em
minha mente uma estranha claridade, e esta claridade gerou uma penumbra em meu
espírito.
Com
efeito, nossos órgãos são os únicos intermediários entre o mundo exterior e
nós. Ou seja, o ser interior, que constitui o eu, mantém o contato com o
ser exterior, que constitui o mundo, por meio de algumas redes neurais.
Todavia,
além do fato de que este ser exterior se nos escapa por suas proporções, sua
duração, suas propriedades incontáveis e impenetráveis, suas origens, seu
futuro ou seus fins, suas formas distantes e suas manifestações infinitas, os nossos
órgãos sensoriais, quanto às parcelas que dele podemos conhecer, fornecem-nos
apenas informações tão incertas quanto
escassas.
Incertas,
porque são apenas as propriedades de nossos órgãos que determinam, para nós, as
propriedades aparentes da matéria.
Escassas,
porque, como os nossos sentidos são apenas cinco, o campo de suas investigações
e a natureza de suas revelações são muito restritos.
Explico-me:
o olho nos mostra as dimensões, formas e cores. Mas ele nos engana nestes três
pontos.
O
olho só pode nos revelar objetos e seres de dimensão média em proporção ao
tamanho humano. Isto nos leva a aplicar a palavra grande a certas coisas e a
palavra pequena a outras, só porque sua debilidade não permite saber o que é
muito vasto ou muito pequeno para ele. Daí resulta que ele não percebe nem vê
quase nada, que quase todo o universo se lhe permanece oculto, a estrela que
habita o espaço e o animálculo que habita a gota d'água.
Se
ele tivesse cem milhões de vezes sua potência normal, se visse no ar que
respiramos todas as espécies de seres invisíveis, assim como os habitantes dos
planetas vizinhos, ainda existiria um número infinito de animais ainda menores
e mundos tão distantes que ele jamais alcançaria.
Portanto,
todas as nossas ideias de proporções são falsas, pois não há limite possível
para a grandeza ou a pequenez.
Nossa
apreciação das dimensões e formas não tem valor absoluto, sendo determinada
apenas pela potência de um órgão e pela comparação constante conosco mesmos.
Acrescentemos
que o olho não consegue ver, ademais, a transparência. O vidro perfeito o
engana. Ele o confunde com o ar, que tampouco vemos.
Passemos
à cor.
A
cor existe porque o nosso olho é constituído de tal maneira que transmite ao
cérebro, sob a forma de cor, as várias maneiras pelas quais os corpos absorvem
e decompõem, conforme a sua constituição química, os raios luminosos que os
atingem.
Todas
as proporções dessa absorção e decomposição constituem os matizes.
Portanto,
este órgão impõe ao espírito sua maneira de ver, ou melhor, a sua forma
arbitrária de constatar as dimensões e de avaliar as relações entre luz e
matéria.
Examinemos
o ouvido.
Mais
do que os olhos, somos os joguetes e vítimas desse órgão fantasioso.
Dois
corpos em colisão produzem certa vibração na atmosfera. Tal movimento faz
estremecer uma pequenina membrana de nosso ouvido que, imediatamente, convola
em ruído aquilo que, na realidade, é apenas uma vibração.
A
natureza é muda. Mas o tímpano tem a propriedade milagrosa de nos transmitir na
forma de sons, e sons diferentes conforme o número de vibrações, todas as
oscilações das ondas invisíveis do espaço.
Essa
metamorfose realizada pelo nervo auditivo, na curta jornada do ouvido ao
cérebro, nos permitiu criar uma estranha arte, a música, a mais poética e
precisa das artes, vaga como um sonho e exata como a álgebra.
O
que dizer quanto ao olfato e a gustação? Conheceríamos os perfumes e os sabores
dos alimentos sem as propriedades bizarras de nosso nariz e de nosso paladar?
No
entanto, a humanidade poderia existir sem a audição, sem o paladar, sem o olfato,
ou seja, sem qualquer noção de ruído, gosto e cheiro.
Assim,
se tivéssemos alguns órgãos a menos, ignoraríamos coisas maravilhosas e
singulares; a seu turno, se tivéssemos outros a mais, descobriríamos ao nosso
redor uma infinidade de outras coisas de cuja existência jamais suspeitaríamos,
em razão da carência de meios para percebê-las.
Portanto,
nós nos equivocamos quando julgamos o Conhecido, ao passo em que somos circundados
pelo Desconhecido inexplorado.
Portanto,
tudo é incerto e apreciável de maneiras diferentes.
Tudo
é falso, tudo é possível, tudo é duvidoso.
Formulamos
essa certeza usando o velho ditado: “A verdade neste lado dos Pirineus; o erro no
outro lado”.
E
dizemos: “a verdade em nosso órgão; o erro fora dele”.
Dois
mais dois não devem ser quatro fora de nossa atmosfera.
Verdade
sobre a Terra; o erro além dela. Disso concluo que os mistérios entrevistos na
eletricidade, no sono hipnótico, na transmissão da vontade, na sugestão, em todos
os fenômenos magnéticos só permanecem ocultos porque a natureza não nos
forneceu o órgão ou os órgãos necessários para compreendê-los.
Depois
de me convencer de que tudo o que meus sentidos me revelam existe apenas para
mim tal como eu o percebo, e de que seria
totalmente diferente para outro ser organizado de uma forma distinta, após ter
concluído que uma humanidade plasmada de forma diferente teria sobre o mundo, sobre
a vida, sobre tudo, ideias absolutamente opostas à nossa, porque a concordância
de crenças resulta apenas da semelhança dos órgãos humanos, e as divergências
de opinião só surgem de pequenas diferenças no funcionamento de nossas redes
nervosas, fiz um esforço sobre-humano de pensamento para suspeitar do
impenetrável que me rodeia.
Terei
ficado louco?
Disse
a mim mesmo: “estou envolto em coisas desconhecidas”. Imaginei o homem desprovido
de audição conjecturando sobre a existência do som como nós conjecturamos a de tantos
mistérios ocultos, constatando a realidade de fenômenos acústicos dos quais não
poderia determinar a natureza ou a origem. E eu tive medo de tudo ao meu redor,
medo do ar, medo da noite. Já que não podemos conhecer quase nada, porquanto
tudo é ilimitado, o que resta? Não é o vazio? O que há no vazio aparente?
E
esse terror confuso do sobrenatural, que tem assombrado o homem desde o
nascimento do mundo, é legítimo, pois o sobrenatural nada mais é do que aquilo
que se nos permanece velado!
Então
eu compreendi o pavor. Parecia-me que roçava, constantemente, a descoberta de
um segredo do Universo.
Tentei
aguçar os meus órgãos, excitá-los, fazê-los perceber, por instantes, o
invisível.
Disse
a mim mesmo: “Tudo é um ser. O grito que perpassa o ar é um ser comparável ao
animal, porque nasce, produz um movimento, e se transforma novamente para
morrer. Pois bem: o espírito pusilânime,
que acredita em seres incorpóreos, não está, então, equivocado. Quem são eles?
Quantos
homens os presentem, estremecem à sua abordagem, tremem ao seu misterioso contato?
Nós os sentimos perto de nós, ao nosso redor, mas não podemos distingui-los,
porque não temos o olho que os veria, ou melhor, o órgão desconhecido que
poderia descortiná-los.
Assim,
pois, mais do que ninguém, eu os sentia, sentia esses transeuntes sobrenaturais.
Seres ou mistérios? Por acaso eu sei? Eu não poderia dizer o que eles são, mas
sempre poderia assinalar a sua presença. E eu vi — vi um ser invisível —, tanto
o quanto é possível ver esses seres.
Eu
passava noites inteiras imóvel, sentado à minha mesa, com a cabeça entre as
mãos, pensando nisto, pensando neles. Muitas vezes, acreditei que uma mão
intangível, ou melhor, um corpo elusivo, roçava-me levemente o cabelo. Não me
tocava, por não ser de essência carnal, senão de essência imponderável, incognoscível.
No
entanto, uma noite, ouvi o assoalho ranger atrás de mim. Rangeu de uma maneira singular.
Estremeci. Voltei-me. Nada vi. E não voltei a pensar naquilo.
Mas,
no dia seguinte, à mesma hora, o mesmo barulho se repetiu. Senti tanto medo que
me levantei, certo, completamente certo, de que não estava sozinho em meu
quarto. No entanto, nada se via. O ar
estava límpido — transparente — por toda parte. Minhas duas lamparinas
iluminavam todos os cantos.
O
rangido não recomeçou e, aos poucos, eu me acalmei. No entanto, permanecia irrequieto
e me voltava muitas vezes.
No
outro dia, tranquei-me cedo, imaginando um expediente que me permitisse ver o
visitante Invisível.
E
eu o vi. Quase morri de terror.
Eu
havia acendido a lareira e todas as velas do lustre. A sala estava iluminada
como se para uma festa. Duas lamparinas brilhavam sobre a minha mesa.
À
minha frente estava a minha cama, uma velha cama de carvalho com colunas. À
direita, a lareira. À esquerda, a porta, que eu havia trancado. Atrás de mim,
um grande armário com espelho. Mirei-me nele. Eu tinha os olhos estranhos e as
pupilas muito dilatadas.
Então
me sentei, como todos os dias.
O
barulho ocorrera, na véspera e na antevéspera, às nove horas e vinte e dois
minutos. Esperei. Quando chegou o momento preciso, experimentei uma sensação
indescritível, como se um fluido — um fluido irresistível — houvesse penetrado
em mim por todas as partes do meu corpo, mergulhando a minha alma num terror
atroz. E o estalo soou, bem próximo a mim.
Levantei-me,
virando-me tão rapidamente que quase caí. Enxergava-se o ambiente como em plena
luz do dia, mas eu não me via no espelho! A lâmina estava vazia, clara, cheia
de luz. E, embora eu estivesse diante dela, o meu reflexo não estava lá. Fitei aquela
superfície com olhos aterrorizados. Não me atrevi a avançar. Senti que, entre
nós, ele, o Invisível, se interpusera, ocultando-me diante do espelho.
Oh,
como senti medo! E foi então que comecei a me enxergar numa bruma ao fundo do
espelho; numa bruma, como se me enxergasse através de uma cortina de água; e
parecia-me que essa água deslizava da esquerda para a direita, lentamente,
tornando a minha imagem mais precisa a cada segundo. Era como o final de um
eclipse. O que estava me ocultando não tinha contornos, senão uma espécie de
transparência opaca, que ia clareando gradualmente.
E,
finalmente, pude distinguir-me claramente, como faço todos os dias, ao me olhar.
Então,
eu o tinha visto!
Contudo,
não o vi novamente.
Mas
eu o aguardo sem cessar, e sinto que minha cabeça se perde nessa espera.
Fico
horas, noites, dias, semanas, diante do meu espelho, nesta espera! Mas ele não vem
mais.
Ele
percebeu que eu o tinha visto. Mas sinto que sempre o esperarei, até a morte;
que o esperarei sem descanso, diante desse espelho, como um caçador à espreita.
E,
nesse espelho, começo a ver imagens loucas, monstros, cadáveres hediondos, toda
espécie de animais terríveis, seres atrozes, todas estas visões inverossímeis
que devem assombrar o espírito dos ensandecidos.
Esta
é minha confissão, meu caro doutor. Diga-me: o que devo fazer?
Título original: Lettre
d'un fou. Conto publicado originariamente no diário Gil Blas em 17
de fevereiro de 1885.
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