UM TEMPLO ASSOMBRADO NA PROVÍNCIA DE INABA - Conto Clássico de Terror - Richard Gordon Smith
UM TEMPLO
ASSOMBRADO NA PROVÍNCIA DE INABA
Richard Gordon Smith
(1858 – 1918)
Tradução de Paulo Soriano
Por
volta do ano de 1680, havia um antigo templo, erguido numa montanha deserta,
coberta de pinheiros, nas proximidades da vila de Kisaichi, província de Inaba.
Situava-se o templo numa ravina rochosa. As árvores eram tão altas e grossas
que retinham toda a luz do dia, mesmo quando o sol estava a pino. Até onde ia a
memória dos anciãos da aldeia, o templo era assombrado por um shito dama[1]
e pelo fantasma-esqueleto — assim
pensavam — de algum antigo morador sacerdotal. Muitos sacerdotes tentaram viver
no templo e dele fazer o seu lar, mas morreram todos. Ninguém podia passar uma
noite ali e sair vivo.
Finalmente,
no inverno de 1701, chegou à Aldeia de Kisaichi um sacerdote que estava em
peregrinação. Chamava-se Jorgen e era natural da província de Kai.
Viera
Jorgen conhecer o templo assombrado. Era um estudioso de coisas de tal natureza.
Embora acreditasse na forma shito dama
de retorno espiritual à terra, não acreditava em fantasmas. Na verdade, ele
estava mesmo ansioso para ver um shito
dama e, além disso, desejava ter um templo próprio. Pensou que achara,
nesse deserto templo montanhês — associado a histórias de que o medo e a morte
impediam as pessoas de visitá-lo, ou os monges de habitá-lo —, para dizer em
linguagem vulgar, “uma coisa boa mesmo”.
Assim, tomou o caminho da aldeia e, ao cair duma noite fria de dezembro,
rumou à estalagem para comer o seu arroz e escutar tudo o que podia sobre o
templo.
Jogen
não era covarde: ao contrário era um homem corajoso, e fazia as suas perguntas
o mais calmamente o possível.
—
Senhor — disse o estalajadeiro —, vossa reverência não devia pensar em visitar
o templo. Isto significaria a sua morte. Muitos bons sacerdotes tentaram passar
lá a noite, mas todos eles foram encontrados mortos na manhã seguinte, ou
morreram pouco depois do amanhecer, sem recuperar a consciência. Senhor, não
adianta tentar desafiar um espírito tão maligno quanto o do templo. Rogo-lhe,
senhor, que desista desta ideia. Por mais que seja a nossa vontade ter cá um
templo, não queremos mais mortes. E, muitas vezes, cogitamos em queimar esse
velho e assombrado templo para construir um novo.
Jogen,
todavia, permaneceu firme em sua determinação de encontrar e presenciar a
aparição.
—
Gentil cavalheiro — respondeu ele —, seus conselhos visam à minha preservação.
Mas é a minha ambição ver um shito dama
e, se as orações puderem apaziguá-lo, reabrir o tempo. E ler as lendas escritas
em seus livros antigos, que devem estar escondidos, e constituir-me em seu
principal sacerdote.
O
estalajadeiro, vendo que era impossível dissuadir o sacerdote, desistiu da
tentativa. Prometeu-lhe, então, que o seu filho iria acompanhá-lo, como guia,
pela manhã, carregando provisões suficientes para um dia.
A
manhã seguinte fez um sol brilhante e Jogen acordou cedo, aprontando-se. Kosa,
o filho de vinte e um anos do estalajadeiro, embalou, para a viagem, as roupas
de cama do sacerdote e o arroz cozido, este suficiente para durar quase dois
dias inteiros. Ficou decidido que Kosa, depois de deixar o sacerdote no templo,
deveria retornar à aldeia. Tanto ele quanto os demais aldeões se recusavam a
pernoitar naquele estranho lugar. Mas Kosa e o pai concordaram em procurar
Jogen no dia seguinte, ou, como diziam alguns, “descê-lo, e dar-lhe um funeral
digno e um sepultamento decente”.
Jorgen
mergulhou completamente neste gracejo e, pouco depois, saiu da aldeia, com Kosa
carregando os seus pertences e guiando-o pelos caminhos.
O
desfiladeiro em que se situava o templo era muito íngreme e selvagem. Grandes
rochedos, cobertos de musgos, espalhavam-se por toda parte. Quando Jogen e seu
companheiro alcançaram a metade do caminho, sentaram-se para comer e descansar.
Logo ouviram vozes de pessoas subindo. Eram o estalajadeiro e cerca de oito ou
nove anciãos da vila que chegavam.
—Nós
o seguimos — disse o estalajadeiro — para tentar, mais uma vez, dissuadi-lo de
correr em direção a uma morte certa. É verdade que desejamos que o templo seja
reaberto e que os fantasmas sejam aplacados. Mas não queremos isto à custa de
outra vida. Por favor, leve-nos em consideração!
—Não
posso mudar de ideia — respondeu o sacerdote. — Além disto, esta é uma chance
única em minha vida. Os anciãos de sua aldeia prometeram-me que, se eu puder
apaziguar o espírito e reabrir o templo, serei dele sumo-sacerdote, e,
doravante, o templo será venerado.
Mais
uma vez Jogen recusou-se a dar ouvidos aos conselhos e riu dos temores dos
aldeões. Erguendo aos ombros os fardos que haviam sido carregados por Kosa,
disse ao rapaz:
—Volte
com os demais. Agora eu posso encontrar o meu próprio caminho com bastante
facilidade. Ficarei feliz se você voltar amanhã com os carpinteiros, porque,
sem dúvida, o templo carece tristemente de grandes reparos, tanto por dentro
quanto por fora. Agora, amigos, até amanhã. Adeus. Não temam por mim. Eu nada
temo por mim mesmo.
Os
anciãos fizeram profundas reverências. Ficaram muito impressionados com a
bravura de Jogen. Esperavam que ele fosse poupado da morte para se tornar o seu
sacerdote. Jorgen, de sua feita, fez uma reverência e retomou a sua escalada.
Os demais observaram-no enquanto ele permanecia à vista; depois, voltaram para
a aldeia. Kosa agradeceu a boa sorte de não mais ter de acompanhar o sacerdote
até o templo e retornar sozinho à noite. Com duas ou três pessoas, ele se
sentia corajoso o suficiente; mas, estar sozinho na escuridão daquela floresta
deserta e próximo do templo assombrado... Não! Isto não estava nos seus planos.
Subindo,
Jogen de repente vislumbrou o templo, que parecia estar quase acima de sua
cabeça, tão íngremes que eram os flancos da montanha e o caminho. Cheio de
curiosidade, o sacerdote lançou-se à frente, apesar de sua pesada carga. E,
cerca de quinze minutos depois, chegou, ofegante, na plataforma do templo, ou
terraço, que, como o próprio templo, havia sido construído em pilhas e
andaimes.
Ao
primeiro olhar, Jorgen concluiu que o templo era grande. Mas a falta de
cuidados fez com que caísse em estado de grande dilapidação. Altas gramíneas
escalavam as suas bordas; fungos e trepadeiras abundavam nos pilares e nos suportes
úmidos e encharcados. Estes exibiam-se tão apodrecidos que o sacerdote
mencionou, em suas anotações, redigidas naquela mesma noite, que temia menos os
espíritos que o estado dos pilares que sustentavam o edifício.
Cautelosamente,
Jorgen penetrou no templo e contemplou uma notável imagem dourada de Buda, além
de imagens de vários outros santos. Também havia finos bronzes e vasos,
tambores cujo couro apodrecera, queimadores de incensos ou koros e outras coisas valiosas ou sagradas.
Atrás
do templo ficavam os aposentos dos religiosos. Antes da era do fantasma, o
templo deveria ter, evidentemente, cinco ou seis sacerdotes para assisti-lo e
atender às pessoas que lá compareciam para orar.
A
escuridão era opressiva e, porque a noite se aproximava, Jorgen pensou em
acender um lume. Desembrulhando um pacote, encheu uma lamparina com óleo e
achou varetas do templo para as velas que trouxera consigo. Tendo posto uma
delas em cada lado da imagem do Buda, orou fervorosamente por duas horas, e já
então se fazia muito escuro. Depois, levando a sua frugal refeição de arroz,
acomodou-se para observar e deitar ouvidos. Para ter uma visão simultânea das
áreas interna e externa do templo, escolheu a galeria. Escondido atrás de uma
velha coluna, ele esperava com um coração que não acreditava em fantasmas, mas,
como diziam as suas anotações, estava ansioso para ver um shito dama.
Por
cerca de duas horas, ele nada escutou. O vento, de tão fraco que era, suspirava
em torno do templo, através dos caules das altas árvores. Uma coruja crocitava de
vez em quando. Morcegos entravam e saíam. Um cheiro de fungo impregnava o ar.
De
repente, por volta da meia-noite, Jorgen ouviu, abaixo, um farfalhar nos
arbustos, como se alguém os empurrasse. Considerou que seria um cervo, ou talvez um
dos grandes macacos de cara vermelha afeitos à vizinhança dos templos altos e
desolados. Talvez até mesmo pudesse ser uma raposa ou um texugo.
O
sacerdote ficou em dúvida. Mas, no lugar de onde vinha o som das folhas
farfalhantes, ele viu a forma clara e distinta do muito conhecido shito dama. De início, este moveu-se de um lado para o
outro, de uma maneira oscilante e brusca, emitindo um sonido de zumbido
distante. Mas — horror dos horrores! —, o que era aquilo entre os arbustos?
O
religioso gelou. Ali estava o esqueleto luminescente de um homem, com as roupas
soltas de sacerdote, os olhos esbugalhados e a pele apergaminhada! No começo,
permaneceu imóvel; mas, à medida o shito
dama subia cada vez mais alto, por detrás movia-se o espectro, às vezes
visível, às vezes não.
Cada
vez mais alto vinha o shito dama, até
que, finalmente, o fantasma postou-se na base da grande imagem de Buda, de
frente para Jogen.
Gotas
frias de suor assomaram na testa do sacerdote. A medula parecia ter-se
congelado em seus ossos. Tremia de forma que mal conseguia ficar de pé. Mordendo
a língua para reprimir um grito, correu para a pequena sala em que havia
deixado a roupa de cama e, depois de trancar-se, pôs-se a espiar por uma fenda
entre as tábuas. Sim! Lá estava a figura
do espectro, ainda postado perto do Buda. Mas o shito dama havia desaparecido.
Nenhum
dos sentidos abandonara Jorgen. Todavia, o medo paralisava-lhe o corpo, e ele
se sentia incapaz de se mover, não importava o que acontecesse. E permaneceu
deitado, espiando através da fresta.
O
fantasma sentou-se, e limitava-se a volver a cabeça para a direita, às vezes
para a esquerda, outras tantas para cima.
Isto
continuou por uma hora. Então, o zumbido recomeçou e o shito dama ressurgiu, circulando e circulando em volta do espectro,
até que o fantasma desapareceu, aparentemente tendo-se transformado no shito dama. E, depois de circular em
volta das imagens sagradas três ou quatro vezes, sumiu repentinamente de vista.
Na
manhã seguinte, Kosa e cinco homens chegaram ao templo. Encontraram o sacerdote
vivo, mas paralisado. Não conseguia se mexer ou falar. Conduzido à aldeia,
morreu antes de chegar.
Muito
uso se fez das anotações do sacerdote. Ninguém mais se ofereceu para habitar no
templo. Dois anos depois, ele foi atingido por um raio, incendiou-se e ruiu. Quando
escavavam entre os escombros, à procura de bronzes e imagens metálicas de Buda,
os aldeões encontraram um esqueleto enterrado, a apenas trinta centímetros de
profundidade, perto dos arbustos onde Jorgen ouvira pela primeira vez os ruídos
farfalhantes.
Sem
dúvida, o fantasma e o shito dama
eram os de um religioso que sofreu uma morte violenta e não pôde descansar.
Os
ossos foram devidamente sepultados e as pessoas disseram que, desde então, o
fantasma não mais foi visto.
Tudo
o que resta do templo são os pedestais musguentos que compunham as suas
fundações.
[1] Manifestação da
alma de uma pessoa que abandona o corpo ocasião de sua morte. Segundo Richard
Gordon Smith, “é uma forma astral que um espírito pode assumir se quiser vagar
pela terra após a morte”. Apresenta-se como
uma bola de fogo que flutua à noite. Conforme esclarece o autor, esta é uma
história de um espírito insatisfeito que assombrou o templo e se exteriorizou,
também, como um fantasma. (N. do T.)
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