A MARCA DO LOBISOMEM - Narrativa Clássica de Terror - Montague Summers
A
MARCA DO LOBISOMEM
Montague Summers
(1880 – 1948)
Tradução de Paulo Soriano
Oswald
Frederick Crawfurd, cônsul britânico no Porto, relata uma história de
lobisomens que lhe foi contada por um fazendeiro, em cujo casarão recebeu a
generosa hospitalidade portuguesa[1].
Um
jovem agricultor trabalhava numa fazenda, perto de Cabração, entre as montanhas
de Estrica, um dos distritos mais silvestres de Portugal, cujo dono havia
desposado recentemente uma jovem dama. Quando se aproximava a hora de o seu
primogênito vir ao mundo, tornou-se necessário contratar uma mulher para auxiliar
a esposa nas muitas tarefas domésticas. Assim, o jovem ajudante foi mandado
para a cidade mais próxima, Ponte de Lima, com a ordem de contratar a primeira
jovem e robusta serviçal que encontrasse.
Durante
o seu percurso, ele viu, sentada à beira do caminho, uma provável serviçal
envolta em um manto castanho, com a qual entabulou uma conversa.
Apresentando-se como Joana, disse que era natural de Tarouca, nas montanhas da
Beira, e estava à procura de uma boa ocupação como empregada doméstica no
distrito. O intento da moça parecia vir exatamente em cumprimento da missão atribuída
ao jovem companheiro. Tendo isto em conta, ele sugeriu à jovem que se
apresentasse ao seu patrão. Ela o fez,
e, embora o fazendeiro notasse algo de estranho no olhar da jovem, a moça tomou
o lugar da patroa por um tempo, cuidando da cozinha e do trabalho doméstico,
porquanto,
além de robusta, parecia muito disposta a ajudar.
No
devido tempo, a criança nasceu. Era um belo e saudável garoto, muito apreciado
e prodigamente admirado por todos os vizinhos, salvo por uma senhora idosa —
uma sábia mulher —, que percebeu algo de estranho assim que viu o
recém-nascido. Quando perguntada sobe a causa daquele estranhamento, disse
claramente que a criança estava enfeitiçada. Todos riram daquilo, mas a senhora
idosa asseverou que a criança trazia a marca do diabo. Entre as omoplatas do
bebê havia, realmente, uma pequena lua crescente — ou meia-lua —, que parecia
ter sido de alguma forma tatuada ali e parecia indelével. A alegria transformou-se
em consternação, mas a sábia senhora confortou os admirados pais com gentileza,
aconselhando-os a vigiarem cuidadosamente a criança no berço, durante o período
da lua nova, já que — disse ela — não havia motivo para preocupação em nenhuma
outra época do ano. Assim foi feito, e
passaram-se dois ou três meses sem que nada de mal houvesse acontecido.
Observou-se,
casualmente, que, desde o primeiro contato, a empregada Joana exibia a maior
animosidade para com a velha senhora, e, sempre que esta visitava a casa, a
nova empregada conservava-se o tempo
inteiro no lado de fora, ou, então, apressava-se em sentar-se, taciturna, no
escuro, com seu grande manto castanho puxado por cima do rosto. Mas não diziam
nada, já que a moça era extremamente temperamental, e, quando em fúria, os seus
olhos, que eram singularmente estreitos e oblíquos, literalmente brilhavam em fogo,
enquanto a jovem rosnava palavras raivosas. Mas a moça sempre exibia um
comportamento respeitoso para com os patões, e, em muito pouco tempo, tornou-se
íntima confidente de sua senhora.
Certa
manhã, a dama lhe confiou o segredo que, para a sua imensa surpresa, a velha mulher
lhe revelara. A moça respondeu:
—
Ai de mim, senhora! Na verdade, é algo de que eu já sabia há muito tempo, mas
que temia contar-lhe. As crianças com essa marca se transformam em lobisomens.
—
Há algo que possamos fazer para evitá-lo? — perguntou, ansiosamente, a senhora.
—
Sim, há algo que pode ser feito. Devemos cobrir a marca com o sangue de um
pombo branco, despir a criança e colocá-la sobre um cobertor macio na encosta
da colina, assim que a lua nova se erguer no céu, depois da meia-noite. Então,
a lua atrairá a marca através do sangue, assim como ela atrai as ondas do mar,
e o encanto estará quebrado.
A
fim de salvar o filho da sina de lobisomem, o fazendeiro e sua esposa, após uma
conversa, decidiram seguir aquele conselho. Alguns dias depois, houve lua nova.
Os pais participaram o que haviam planejado a alguns criados e, destes
acompanhados, puseram o bebê, que dormia envolvido num cobertor, na encosta de
uma colina próxima à casa, enquanto a tênue foice prateada da lua ainda
permanecia abaixo do horizonte daquela noite de verão. Feito isso, eles voltaram
para casa, pois nenhum olho humano deveria contemplar o mágico feitiço em ação.
O
fazendeiro, é verdade, externou a preocupação com a possibilidade de haver
lobos por perto, mas os seus homens o tranquilizaram, pois, há muitos anos,
nenhum vestígio de lobos era visto em toda a vizinhança, por muitas léguas ao
redor. Mesmo assim, ele tomou o seu velho bacamarte e o encheu de pregos
enferrujados, à falta de outra munição. Mal havia carregado a arma quando se ouviu
um choro lastimoso vindo do lugar onde haviam deixado a criança. Tendo todos
saído, às pressas, de casa, viram, à luz da lua nova, no topo da colina, um enorme
lobo castanho, lúgubre e esguio, parado sobre o corpo do bebê. As presas mornas
do animal gotejavam sangue e os seus olhos estreitos cintilavam com o fogo do
inferno.
Enquanto
a besta se afastava silenciosamente, o pai, enlouquecido, atirou. Pouco antes
de refugiar-se na floresta, a fera, atingida, soltou um prolongado uivo e caiu,
rolando na colina.
Um
dos empregados, que empunhava um porrete robusto, correu para abater a fera,
mas só conseguiu desferir-lhe um forte golpe na pata dianteira, enquanto o
animal uivava e se recolhia, claudicante, na escuridão.
A
criança estava morta. Tinha a garganta horrivelmente mutilada e o cobertor
encharcado de sangue.
Quando,
vergados pelo pesar, levaram o minúsculo cadáver para casa, deram-se conta de que
Joana não estava entre eles. Na verdade,
já fazia algum tempo que ela não era vista. Então, a horrível verdade perpassou
todos os presentes: a jovem mulher era uma bruxa amaldiçoada, uma prostituta de
Satanás que, tomando a forma de um lobo, matara a criança, imbuída de um
propósito sombrio.
Ao
raiar do dia, os homens seguiram a trilha do lobo ferido na floresta. A cerca
de dez passos do local para onde o animal se arrastara, estava Joana, deitada
no chão e coberta de sangue. Ela imediatamente declarou que se escondera atrás
das árvores para vigiar a criança, temerosa de que algum mal lhe ocorresse;
então, ouviu o lastimoso choro da criancinha e correu em sua direção, enquanto
a lua nascia. Viu, então, o lobo saltar furtivamente. Ao som da arma, ele se
virou e fugiu, enquanto ela recebia toda a descarga, caindo ferida.
Estas,
é claro, eram mentiras insufladas pelo Diabo. A moça não conseguia explicar por
que o seu braço direito estava ferido, e quase quebrado, no lugar em que o
rapaz desferira o golpe com o porrete. Além disso, ele não vira — como jurou
depois — os próprios olhos de Joana brilhando na face lobo, quando o animal, em
fúria, voltava-se para ele?
Por
caridade, mandaram chamar o padre, mas ela morreu antes que o clérigo pudesse
chegar ao local, e a enterraram ali mesmo. Antes que a terra fosse lançada
sobre o seu cadáver, a sábia mulher, que viera vê-la, apontou para a marca do lobisomem,
plenamente visível, no peito da garota. Ela era, evidentemente, um dos
lobisomens de Satanás, uma bruxa ativa há muito tempo.
A
velha senhora acrescentou que, se já houvesse visto antes os olhos da garota, saberia,
imediatamente, o que realmente era aquela pérfida mulher, pois todos os
lobisomem adquirem os olhos estreitos e oblíquos dos lobos, além de sua
fisionomia selvagem.
Ela
explicou, ainda, que, se um lobisomem consegue matar e beber o sangue quente de
um recém-nascido, o encanto se quebra prontamente, e ele deixa de ser um
licantropo.
O
padre, que até então não havia sido informado sobre a origem da nova criada, declarou
o quão ingênuo fora o fazendeiro, principalmente por se envolver com uma mulher
de Tarouca, lugar conhecido como um imundo ninho de bruxas e feiticeiros.
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