O ESPECTRO SEM CABEÇA - Narrativa Clássica de Terror - Catherine Crowe
O ESPECTRO SEM
CABEÇA
(1803 – 1876)
Tradução de Paulo Soriano
Recebi
a seguinte narrativa de um senhor — um profissional residente em Londres — que
vivenciou estes curiosos acontecimentos:
“Fui
criado por um avô e quatro tias, que tinham o dom de ver fantasmas e, portanto,
acreditavam em aparições sobrenaturais.
O
meu avô havia sido marinheiro e fizera parte da tripulação que navegou ao redor
do mundo com Lord Anson[1].
Lembro-me que, quando tinha cerca de oito anos, fui acordado pelos gritos de
uma daquelas senhoras, com quem estava dormindo. Os gritos atraíram toda a família, que se
reuniu ao seu redor, para indagar-lhe a causa daquele transtorno. Ela disse que
havia visto Nancy ao lado da cama, para a qual se esgueirava. Mal descemos as
escadas pela manhã, chegou-nos a notícia de que aquela senhora havia morrido
precisamente no instante em que minha tia disse que a vira. Nancy era a esposa
de seu irmão.
Outra
tia minha, que era casada e tinha uma família numerosa, predisse a morte de meu
avô, numa época que não tínhamos motivos para suspeitar de que tal aconteceria.
Ele também apareceu ao lado de sua cama; na ocasião, ele estava vivo e saudável,
mas morreu quinze dias depois.
Seria
tedioso, contudo, enumerar a metade de fatos semelhantes de que me lembro; assim,
procederei à narrativa do que aconteceu comigo.
Fui,
alguns anos depois, convidado a passar um dia e uma noite na casa de um amigo
em Hertfordshire, a quem conhecia intimamente. Seu nome era B—, e ele havia
trabalhado anteriormente como seleiro na rua Oxford, onde fez uma bela fortuna,
e agora se aposentara para desfrutar de seu otium cum dignitate[2]
na bela e rural aldeia de Sarratt.
Num
domingo sombrio de novembro, montei meu cavalo para a viagem. Como o tempo
prenunciava a chuva, eu certamente teria escolhido algum outro meio de
transporte, se não estivesse desejoso de deixar o animal no pátio de feno do
Sr. E—
para o inverno.
Antes
de alcançar o bosque de St. John, as nuvens ameaçadoras romperam-se e, quando cheguei a
Watford, estava completamente encharcado. No entanto, prossegui a viagem e
cheguei a Sarratt antes que meu amigo e sua esposa tivessem voltado da igreja. Assim que retornaram, forneceram-me roupas secas
e fui informado de que iríamos jantar na casa do Sr. D—, um vizinho muito simpático.
Senti alguma hesitação
em me apresentar com tal traje, pois eu estava vestido com um terno completo do
Sr. B—,
que era um homem robusto, de seis pés de altura, enquanto eu pertenço à classe
dos pequenos e franzinos. Minhas objeções, contudo, foram rejeitadas. Fomos, e minha aparência contribuiu muito
para a alegria da festa. Às
dez horas, nos despedimos e eu voltei para casa o Sr. e a Sra. B—. Logo depois,
conduziram-me a um quarto muito confortável.
Fatigado
com o meu dia de cavalgada, mergulhei prontamente na cama e logo adormeci.
Creio, contudo, que não dormi por muito tempo antes de ser despertado pelo
violento latido de cães. Descobri que o barulho havia perturbado tanto os
outros quanto a mim, pois ouvi o Sr. B—, que estava alojado no
cômodo ao lado, abrir a janela e mandar que se calassem. Os cães obedeceram à
sua ordem e, assim que o silêncio se restabeleceu, adormeci novamente. Todavia,
fui novamente acordado por uma pressão extraordinária exercida sobre meus pés.
Declaro que, então, eu estava perfeitamente desperto. A luz que se elevava da
chaminé brilhava intensamente sobre os pés da cama, e vi a figura de um homem
bem-vestido a abaixar-se, apoiando-se na roupa de cama enquanto se inclinava.
Ele vestia um casaco azul, com brilhantes botões dourados, mas não vi, sobre os
seus ombros, cabeça alguma. O cortinado da moldura do leito, que estava
parcialmente lançado para trás, pendia o suficiente para ocultar aquela parte
de seu corpo.
A
princípio, pensei que fosse meu anfitrião, e, como, de costume, eu havia
deixado as minhas roupas no chão, caídas aos pés da cama, imaginei que ele
tivesse vindo para apanhá-las, algo que me pareceu surpreendente. Quando,
porém, eu me ergui na cama, e estava prestes a indagar sobre a ocasião de sua
visita, a figura passou adiante. Lembrei-me, então, que havia trancado a porta;
e, um tanto intrigado, pulei da cama, mas não vi ninguém. Ao examinar o quarto,
verifiquei que os únicos acessos àquele cômodo eram a porta pela qual eu havia
entrado e uma outra. Ambas, contudo, estavam trancadas por dentro. Espantado e
intrigado, voltei a deitar-me e fiquei algum tempo ruminando sobre aquela
extraordinária circunstância, quando me ocorreu que eu não havia, ainda, olhado
debaixo da cama. Então, saí novamente do leito, esperando encontrar sob ele o meu
visitante, quem quer que fosse ele. Fiquei desapontado. Então, depois de olhar
para o relógio e verificar que eram duas horas e dez minutos, voltei à cama, na
esperança de descansar um pouco. Mas, infelizmente, naquela noite, o meu sono já
fora banido.
Depois
de virar de um lado para o outro, e fazer esforços vãos para adormecer, desisti.
Fiquei deitado até que os relógios marcassem as sete horas, deixando meu
cérebro perplexo em torno da questão de quem poderia ter sido meu visitante da
meia-noite; indagava-me, ademais, sobre como ele pudera entrar e sair daquele
quarto.
Por
volta das oito horas, encontrei meu anfitrião e sua esposa à mesa do café da
manhã. Em resposta às hospitaleiras perguntas sobre como eu havia passado a
noite, mencionei, primeiro, que tinha sido acordado pelo latido de alguns cães,
e que eu tinha ouvido o Sr. B— abrir a janela e ordenar-lhes silêncio. Disse-me
ele que dois cães vagabundos haviam entrado no quintal e incomodado as pessoas
de casa.
Mencionei,
então, aos meu anfitriões, o meu visitante da meia-noite, esperando que eles me
explicassem a circunstância ou, então, rissem de mim, dizendo que eu devia
estar sonhando. Mas, para minha surpresa, eles ouviram a minha história com
grande atenção. Relataram-me, então, a tradição à qual aquele espectro — pois
assim o consideravam — estava relacionado.
Aquilo
acontecia porque, há muitos anos, um cavalheiro, vestido como eu o descrevera,
fora vítima de homicídio naquele aposento.
O crime fora praticado em circunstâncias terríveis, já que a cabeça do
homem fora decepada.
Quando
notaram que eu não me dispunha a aceitar aquela explicação para o mistério —
pois, apesar das idiossincrasias de minha família, sempre fui completamente
descrente em aparições sobrenaturais —, eles me imploraram que prolongasse
minha visita por um ou dois dias. Pretendiam, neste tempo, me apresentar ao
reitor da paróquia, que, a partir de circunstâncias de semelhante natureza,
poderia me fornecer provas que não deixariam dúvidas quanto à possibilidade de ocorrência
do fenômeno que presenciei. Mas eu já tinha me comprometido a jantar em Watford,
no caminho de volta, e confesso, além disso, que, depois do que ouvira, não me
senti disposto a render, ao estranho visitante, uma oportunidade de visitar-me
novamente. Por isto, recusei a hospitalidade oferecida e despedi-me.
Algum
tempo depois, eu estava jantando na rua C—, na companhia de
algumas senhoras residentes no mesmo condado, quando, casualmente, aludindo à minha visita a
Sarratt, acrescentei que havia vivido ali uma aventura deveras extraordinária, para a qual eu nunca
lograra uma explicação. Imediatamente, uma das senhoras me disse que esperava
que eu não tivesse recebido a visita do cavalheiro sem cabeça, de casaco azul e
botões dourados, que — dizia-se — era visto por muita gente naquela casa.
Tal
é a conclusão deste extraordinário acontecimento, do qual participei. E posso
apenas assegurar-lhes que relatei os fatos tais como ocorreram, e que nunca
tinha ouvido, em minha vida, uma só palavra acerca da história até que o Sr. B— relatou-me a tradição acima mencionada. Ainda
assim, como não acredito em aparições sobrenaturais, sou forçado a supor que
todo o caso não foi senão produto da minha imaginação.
Devo
acrescentar que o Sr. B— mencionou algumas estranhas circunstâncias relacionadas a outra
casa no condado, habitada por um certo Sr. M—, que foram
corroboradas pelas senhoras acima aludidas. Ambas as partes concordaram que,
pelos ruídos inexplicáveis que foram ouvidos
ali, aquele cavalheiro teve a maior dificuldade em persuadir quaisquer serviçais
a permanecer com ele.
A.
W. M.
Rua C—, 5 de setembro de
1846.”
Este
é um daqueles curiosos exemplos de ceticismo determinado que justificam
plenamente a previsão do patriarca.
[1]
George Anson, 1º Barão Anson, foi um navegador inglês que realizou uma viagem
de circum-navegação entre 1740 e 1744.
[2]
Descanso com dignidade.
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