A MACABRA AVENTURA DE THIBAUD DE LA JACQUIÈRE - Conto Clássico de Terror - Charles Nodier

 


A MACABRA AVENTURA DE THIBAUD DE LA JACQUIÈRE

Charles Nodier

(1780 – 1844)

Tradução de Paulo Soriano

 

Um rico comerciante de Lyon, chamado Jacques de la Jacquière, tornou-se preboste da cidade em razão de sua probidade e dos muitos bens que adquirira sem mácula à sua reputação. Era caridoso com os pobres e bondoso para com toda a gente.

Thibaud de la Jacquière, seu único filho, tinha um caráter diferente. Conquanto belo, era um jovem malicioso, que aprendera a quebrar os vidros das janelas, a seduzir garotas e a insultar os homens de armas do rei, a quem servia de porta-estandarte. Não se falava de outras coisas senão das travessuras de Thibaud em Paris, Fontainebleau e outras cidades onde o rei vivia. 

Um dia, o próprio rei, Francisco I, escandalizado com o mau comportamento do jovem Thibaud, mandou-o de volta a Lyon, para corrigir-se na casa do pai. O bom preboste morava na esquina da Place Bellecour. Thibaud foi recebido com grande alegria na casa paterna. 

À sua chegada, ofereceu-se uma grande festa aos parentes e amigos da casa. Todos beberam à sua saúde e desejaram que ele se tornasse um sábio e bom cristão. Mas esses votos caritativos desagradaram ao jovem, que apanhou um copo de ouro da mesa, encheu-o de vinho e disse:

— Sagrada morte do grande demônio! Com este vinho, entrego-lhe o meu sangue e minha alma, se algum dia eu me tornar um homem melhor do que sou agora.

A essas palavras, eriçaram-se os cabelos de todos os convidados. Fizeram os convivas o sinal da cruz e mesmo alguns se retiraram da mesa. Thiboud também se retirou e foi arejar-se na Place Bellecour, onde encontrou dois de seus antigos companheiros, tipos maliciosos como ele. Thibaud os abraçou, levou-os para a casa do pai e pôs-se a beber com os camaradas. Continuava, pois, a levar uma vida que afligia o coração do bom preboste. O pai se recomendou a São Tiago, seu patrono, e acendeu diante da imagem do santo uma vela de dez libras, adornada com duas argolas de ouro, cada uma pesando cinco marcos. Mas, quando se dispôs a pôr a vela no altar, inadvertidamente a fez cair, derrubando, também, uma lamparina de prata que ardia diante da sacra imagem. O pai vislumbrou um mau presságio neste duplo acidente e voltou melancolicamente para casa.

Naquele dia, Thibaud tornou a convidar os seus companheiros. E, quando a noite caiu, saíram todos para espairecer na Place Bellecour e, depois, caminharam pelas ruas de Lyon, em busca de alguma aventura. Mas a noite estava tão escura que eles não encontraram no caminho donzela ou mulher. Thibaud, irritado com aquele ermo, exclamou em voz alta:

— Sagrada morte do grande demônio! A ele dou o meu sangue e a minha alma! Sinto-me tão excitado pelo vinho que, se a sua filha, o grande demônio feminino, por aqui passasse, eu pediria a ela o seu amor!

Essas palavras desagradaram os amigos de Thibaud, que não eram tão grandes pecadores quanto ele. Um deles disse-lhe:

— Amigo meu, lembra-te de que o Diabo, sendo inimigo dos homens, já lhes causa bastante malefícios, memo sem ser invocado pelo nome... 

Um momento depois, eles viram uma jovem de véu a sair de uma rua vizinha, esbanjando muito charme e juventude. Um pequeno homem, que a seguia, tropeçou e caiu de bruços, apagando a lamparina. A jovem parecia muito assustada e sem saber o que fazer. Thibaud se apressou em abordá-la o mais cortesmente que pôde, e ofereceu-lhe o braço para acompanhá-la até a casa. A estranha acedeu, depois de algumas cerimônias, e Thibaud, voltando-se para os amigos, disse-lhes em voz baixa:

— Vede que aquele que invoquei não me deixou esperando. Então, boa noite a todos.

Os dois amigos entenderam o que ele queria dizer e se retiraram, sorrindo.

Thibaud ofereceu um braço à bela acompanhante e o homenzinho, cujo lampião havia-se apagado, tomou a dianteira. A jovem parecia, a princípio, tão perturbada que mal conseguia manter-se em pé, mas, aos poucos, se acalmou e apoiou-se com mais firmeza no braço do cavalheiro. Às vezes, a dama tropeçava e, para não cair, aferrava-se ao braço do gentil-homem. Então Thibaud, ansioso por segurá-la, lhe punha a mão coração, fazendo-o, porém, mui discretamente, para não a atemorizar.

Caminharam tanto que, afinal, Thibaud teve a impressão de que se haviam perdido nas ruas de Lyon. Mas ficou muito contente com isso, pois lhe parecia que, assim, tiraria melhor proveito da beldade extraviada. Porém, como ele estava deveras curioso para saber com quem estava lidando, e a dama parecia cansada, rogou à jovem que se sentasse com ele num banco de pedra, que se divisava junto a uma porta. Ela consentiu. Thibaud, sentando-se ao lado dela, pegou-lhe a mão com um ar galante e implorou-lhe mui educadamente que lhe dissesse quem era. A princípio, a jovem pareceu intimidada. Mas, tranquilizando-se, falou nestes termos:

— Meu nome é Orlandine. Ao menos é assim que me chamavam as pessoas que viviam comigo no castelo de Sombre, nos Pireneus. Ali, não conheci outro ser humano além de minha aia, que é surda — uma criada que gagueja tanto que melhor seria fosse muda —, além de um velho porteiro cego. Esse porteiro não tinha muito o que fazer, já que somente abria a porta uma vez por ano, e isso a um cavalheiro, que aparecia apenas para me tomar pelo queixo e falar com minha aia na língua biscaia, que eu não conheço. Felizmente, eu já sabia falar quando me encerraram no castelo de Sombre, porque, certamente, não teria aprendido a verbalizar com os dois companheiros de minha prisão.  E, quanto ao porteiro, só o via quando nos passava o jantar pela grade da única janela que tínhamos. Na verdade, minha ama surda costumava gritar em meus ouvidos não sei que lições de moral; mas eu a entendia tão pouco como se fosse tão surda quanto ela, pois ela me falava dos deveres do casamento, mas não me dizia que diabos seria o casamento. Muitas vezes, também, minha aia tartamuda esforçava-se em contar-me alguma história que ela me assegurava ser muito engraçada, mas — sem nunca conseguir ir além da segunda frase —, era obrigada a desistir, gaguejando desculpas, que lhe saíam dos lábios tão estropiadas quanto a própria história. 

“Já te disse que havia um cavalheiro que me visitava uma vez por ano. Quando eu fiz quinze anos, esse senhor me fez entrar em uma carruagem com minha aia. Dela só descemos no terceiro dia, ou melhor, na terceira noite, porque a tarde já estava muito avançada. Um homem abriu a porta e nos disse:

“— Estais na Place Bellecour e eis aqui a casa do preboste, Jacques de la Jacquière. Para onde desejais que eu vos conduza?

“Minha ama respondeu:

“— Entra primeiro por uma porta-cocheira, a seguinte à do reitor.”

Aqui o jovem Thibaud ficou mais atento, pois realmente era vizinho de um cavalheiro chamado Seigneur de Sombre, que tinha a fama de ciumento. 

— Então entramos —continuou Orlandine — sob uma porta-cocheira e subimos a uns cômodos grandes e belos. Depois, seguimos por uma escada em caracol e chegamos a uma torre muito alta, cujas janelas estavam cobertas por com um tecido verde muito espesso. Contudo, a torre estava bem iluminada. Minha aia me fez sentar numa cadeira, deu-me seu rosário para que eu passasse o tempo e saiu, fechando a porta com duas voltas de chave.

“Quando me vi sozinha, joguei meu rosário ao chão, peguei a tesoura que trazia no cinto e fiz uma abertura no pano verde que vedava a janela. Então eu vi, através da janela de uma casa vizinha, uma sala bem iluminada, onde três jovens cavaleiros e três moças jantavam. Eles cantavam, bebiam, riram e se abraçavam...”

Orlandine deu ainda outros detalhes, com os quais Thibaud quase se engasgou de rir, porque a moça descrevia um jantar que dera no dia anterior a seus dois amigos e três moças da cidade. 

— Eu estava muito atenta a tudo o que acontecia — disse Orlandine —, quando ouvi a minha porta se abrir.  Apenhei imediatamente o meu rosário e minha aia entrou. Ela me pegou pela mão novamente, sem nada me dizer, e me fez voltar para a carruagem. Chegamos, depois de um longo trajeto, à última casa de um arrabalde. Aparentemente, era apenas uma choupana, mas o seu interior mostrou-se magnífico, como tu poderás ver, se o pequenino abrir o caminho, porque noto que ele fez fogo e reacendeu a lamparina.

— Beldade extraviada — interrompeu Thibaud, beijando a mão da moça —, faz-me a gentileza de me dizer se moras sozinha nessa casinha.

—Sim, sozinha — continuou a dama —, com esse pequenino e a minha aia. Mas creio que ela não voltará esta noite. O cavalheiro que, ontem à noite, me trouxe àquela choupana, enviou-me um recado, há duas horas, para que eu fosse vê-lo na casa de suas irmãs. Mas, como ele não pôde enviar sua carruagem, que havia saído para apanhar um padre, seguimos a pé. Alguém nos parou para dizer que me achava bonita; minha aia, que é surda, pensou que estavam me insultando e respondeu com insultos. Outras pessoas apareceram e se envolveram na disputa. Senti medo e fugi; o homenzinho correu atrás de mim.  Ele caiu e sua lamparina apagou. E foi então, senhor, que tive a fortuna de conhecer-te.

Thibaud ia responder com alguma galanteria, quando o pequeno homem apareceu com a lanterna acesa. Recomeçaram a caminhar e chegaram, no final do arrabalde, a uma choupana isolada, cuja porta o homenzinho abriu com uma chave que trazia no cinto. O interior era bem ornamentado e, entre os preciosos móveis, destacavam-se poltronas em veludo de Gênova, com franjas douradas, e uma cama em moiré de Veneza. Mas nada disto despertava o interesse de Thibaud, que só tinha olhos para a encantadora Orlandine.

O homenzinho cobriu a mesa e preparou o jantar.  Só então Thibaud percebeu que ele não era uma criança, como havia pensado a princípio, mas uma espécie velho anão, que ostentava uma horrível fisionomia.  O anão trouxe, numa bandeja de prata dourada, quatro apetitosas perdizes e uma garrafa de excelente vinho. Prontamente, o casal sentou-se à mesa. Mal Thibaud terminou de comer e beber, teve a impressão de que um fogo sobrenatural corria em suas veias. Quanto a Orlandine, comia pouco e olhava intensamente para o convidado, às vezes com um olhar terno e ingênuo, às vezes com olhos tão travessos que o jovem ficava quase atemorizado. Por fim, o homenzinho veio tirar a mesa. Então, Orlandine tomou Thibaud pela mão e disse-lhe:

—Formoso cavaleiro, como queres que passemos a noite? Ocorreu-me uma ideia: eis aqui um espelho grande. Façamos-lhe mocas, como eu costumava fazer no castelo do Sombre.  Eu me divertia ao ver que minha governanta era feita de uma forma diferente da minha; agora, gostaria de saber se sou feita de uma forma diferente da que tu és.

Orlandine colocou duas cadeiras em frente ao espelho. Depois, tirou o colarinho de Thibaud, dizendo-lhe:

— O teu pescoço é mais ou menos parecido com o meu. Os teus ombros, também. Mas, quanto ao peito, quanta diferença! O meu era assim no ano passado; mas encorpei tanto que não me reconheço mais. Portanto, tira o teu cinto e o teu gibão... Para que todos esses cordões?

Thibaud, sem mais se conter, carregou Orlandine para o leito veneziano de moiré, e se considerou o mais feliz dos homens. Mas essa felicidade não durou muito.  O infeliz Thibaud sentiu garras afiadas afundando em sua cintura. Ele gritou: “Orlandine!”, mas Orlandine não mais estava em seus braços... Viu que, em seu lugar, havia apenas um horripilante conjunto de formas hediondas e desconhecidas...

— Eu não sou Orlandine — disse o monstro, com uma voz formidável. — Eu sou Belzebu!

Thibaud queria pronunciar o nome de Jesus. Mas o demônio, que lhe adivinhou o intento, comprimiu sua garganta com os dentes e o impediu de pronunciar aquele sacro nome...

Na manhã seguinte, os camponeses, que iam vender seus legumes no mercado de Lyon, ouviram gemidos numa choupana abandonada, que ficava próxima à estrada e lhes servia de monturo. Entraram na choça e encontraram Thibaud deitado sobre uma carniça meio apodrecida... Colocaram-no entre os seus cestos e o carregaram ao preboste de Lyon. O infeliz De la Jacquière reconheceu seu filho… Puseram Thibaud na cama, onde não custou a recuperar um lampejo de consciência. Então pediu, com uma voz fraca:

— Abri a porta a esse santo eremita.

No início, não compreenderam o que dizia. Mas, por fim, abriram a porta e viram entrar um venerável religioso, que pediu para ficar a sós com Thibaud.  Por muito tempo, ouviram as exortações do eremita e os suspiros do pobre rapaz. Quando nada mais se ouviu, entraram no quarto. O eremita havia desaparecido e encontraram Thibaud morto na cama, com um crucifixo nas mãos…

 


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