A FEITICEIRA CELTA - Conto Clássico Sobrenatural - Paul Dyvorne
A FEITICEIRA
CELTA
Paul Dyvorne
(1860 – 1946)
Tradução de Paulo Soriano
Na
antiga Gália, cada tribo tinha sua "fada", uma espécie de bruxa em
que todos confiavam cegamente. Nela, vislumbrava-se uma fada sagrada,
enviada à terra pelo deus Teutates. A fada participava das cerimônias
religiosas dos druidas, à frente das sacerdotisas.
Myrghèle,
a fada dos Santons, havia se retirado para a Ilha de Armotte quando os soldados
de César se aproximavam. Refugiara-se em Anchoine, de onde lançava-lhes
feitiços e causava-lhes atribulações. Uma seita de druidas e druidesas já
existia há muito tempo. Na parte mais selvagem da ilha, sob os grandes
carvalhos, cujas folhas se misturavam com as bolas brancas do visco, havia um
círculo de pedras erguidas em torno de um dólmen. Lá, os rituais pagãos dos
gauleses era celebrada desde tempos imemoriais.
Havia
algo de sinistro nesse dólmen, uma massa informe de pedra, um bloco monstruoso
elevado à altura de um homem, acomodado sobre quatro pilares de pedra
bruta. No meio da plataforma, havia um buraco redondo, grande o suficiente
para permitir que um quadrante do céu fosse visto. Era por esse orifício
que o sangue das vítimas escorria quando dos sacrifícios humanos.
A
ilha de Armotte, quase desconhecida no interior da Gália, testemunhou, antes de
desaparecer, os bárbaros horrores do paganismo. Seus habitantes, algumas
centenas, que se dedicam à pesca, caça, cultivo de cereais, e viviam em paz e
solidão diante de um mar pacífico, protegidos por uma densa floresta, queriam,
antes de preparar a resistência contra o invasor que se aproximava, consultar
seus sacerdotes, pedi-lhes ajuda e proteção. Druidas e druidesas decidiram
que era a fada que deveria ser consultada.
Myrghèle,
escondida em sua pequena cabana em Anchoine, estava apaixonada. Aquele que
ela amava permanecia insensível aos seus avanços e confessou-lhe que ficara
noivo de Sylvane, filha de um pescador, que o amava tanto quanto a própria fada. Eles
deveriam se casar em breve. A fada, portanto, nutriu por Sylvane um ódio
feroz, e jurou impedir o casamento. Como ou o que fazer, ela ainda não
sabia.
Foi
nessa época que se realizou uma assembleia de druidas na clareira do dólmen
para atender aos desejos dos habitantes da ilha. Myrghèle estava entre
eles, envolta em um manto gaulês de um branco deslumbrante. Nove druidesas,
todas vestidas de branco, a rodeavam. Dispostos em círculo, com as frontes
coroadas de visco, segurando uma foice dourada nas mãos, os sacerdotes aguardavam
religiosamente a decisão da sagrada fada. A severa expressão de sua
fisionomia, a rigidez de seu olhar alucinante, a impavidez de seu discurso
produziram um verdadeiro fascínio sobre a assistência.
Era
noite. Os últimos fulgores do crepúsculo desfaleciam sobre o mar e a Lua
subia, lentamente, no céu. Havia algo tão estranho, tão impressionante
naquele círculo de vestes brancas, imóveis sob os carvalhos, que se poderia crer
que as sombras da noite, vestidas como fantasmas, se reuniam misteriosamente
naquele recanto selvagem floresta. Alçada a uma pedra bruta, perto do dólmen,
elevando-se acima da assembleia, com os cabelos revoltos, o manto caído aos
pés, o peito seminu, Myrghèle exclamava, exaltada, o oráculo dos
deuses. Um raio de luar, filtrando-se por dentre os galhos, iluminava o
seu rosto transfigurado, conferindo àquela mulher a aparência de um espectro hediondo.
—
Ouçam — exclamou a vil feiticeira —, ouçam a voz de Teutates, que vibra dentro de
mim. Eu sou a enviada dos deuses para guiá-los, para salvá-los na hora do
perigo. Empertiguem-se, sacerdotes que me ouvem, e saiam a dizer às gentes
que Teutates não as abandonará. Contudo, ele exige sangue! O sangue puro de uma
virgem! Vão e tragam aqui a mais bela virgem da Ilha de Armotte. Todos
a conhecem: é Sylvane. O Mestre nos escuta; nesta mesma noite ela deve ser
sacrificada no altar sagrado dos ancestrais. Obedeçam, se querem afastar as ameaças do destino!
A
terrível voz calou-se, interrompida por um esforço sobre-humano, por uma
superexcitação de loucura e ódio. Este apelo feroz foi seguido por um
silêncio aterrador, como se um sopro de morte tivesse acabado de passar pela
floresta adormecida, e ouvia-se somente o roçar das vestes de sacerdotes e
druidas desaparecendo na escuridão. A fada, a fada ignóbil, deixada
sozinha ao pé do dólmen, com o rosto contorcido por um sorriso satânico,
esperava acercar-se a hora de sua vingança.
Meia-noite. A
Lua agora está velada por grandes nuvens negras. Lá, em direção ao oeste,
um estrondo surdo se eleva do largo banco de areia que atravessa a entrada para
a baía de Anchoine. Aquele ruído distante e incomum, que se aproxima sob o
influxo dos ventos do mar aberto, parece ser o prenúncio uma tempestade. Envoltos
pela escuridão, os druidas adentram a floresta. Um por um, abrem caminho entre
os carvalhos e seguem para preparar o monumento celta. Eles são realmente
fantasmas, fantasmas da morte, que caminham nas trevas. E o rugido do oceano
fica ainda mais lúgubre, rola em direção à clareira com força crescente, como
se um furacão, vindo de um mundo desconhecido, perseguissem as ondas antes de
arrebatá-las.
O
trágico momento havia chegado. Quatro homens, envoltos em peles de
animais, de cabelos desgrenhados, caídos sobre os ombros, surgiram no meio da noite, carregando uma
mulher meio morta, cujos gemidos teriam comovido seres menos selvagens. A
tempestade se alastrava. As árvores, sacudidas por um estranho tremor, pareciam
comprimirem-se umas com as outras, como se para ampliar a maldita clareira onde,
com seus contornos mergulhados nas
sombras, o dólmen se estendia como uma lápide colocada sobre o sepulcro de um
gigante.
Três
druidesas, metidas em seus mantos esvoaçantes, avançaram para agarrar a vítima,
enquanto os sacerdotes cantavam um salmo místico, cujos timbres se perdiam na noite. Myrghèle,
movida por uma força superior, escalou o dólmen e as três druidesas lançaram
Sylvane na mesa de granito. Com movimentos abruptos e espasmódicos, a fada —
aquela visão hedionda! —, cujas feições se
decompunham num sinistro esgar, despiu brutalmente a vítima e, sacando um
estilete do cinto, ajoelhou-se para traspassar-lhe o coração.
No
exato momento em que Sylvane ia ser imolada, um relâmpago rasgou o céu e um terrível
cataclismo sacudiu a Ilha de Armotte. A terra estremeceu, um abismo imenso
e monstruoso abriu-se de repente, no qual o dólmen e todos os que o rodeavam
desapareceram. As árvores caíram umas sobre as outras e mergulharam no
abismo. E o mar revolto subia e subia, com violência crescente, submergindo, com uma
onda devastadora, toda a ilha. Ao nascer do Sol, Anchoine não existia mais
e todos os seus habitantes haviam morrido afogados. O relâmpago, a
tempestade, o oceano furioso se uniram, então, para alterar profundamente a
configuração da costa. Com o desaparecimento de Armotte, não foi difícil às ondas minar, rasgar e finalmente derrubar as rochas de Le Chapus.
A
baía de Anchoine deveria tornar-se, ao longo dos séculos, o canal Maumusson e o território de Oléron, a ilha encontrada
pelos procônsules romanos no início da era cristã. As ruínas de um dólmen podem
ser vistas, ainda hoje, na ponta da rocha Ors, na costa de Oleron, a uma curta
distância da presumível localização da ilha de Armotte.
Fonte: Devant Cordouan. Royan et la presqu’île d’Arvert,
Gradignan,1934.
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