A MALDIÇÃO DOS BASKERVILLES - Narrativa Clássica de Terror - Arthur Conan Doyle

 


A MALDIÇÃO DOS BASKERVILLES

Arthur Conan Doyle

(1859 – 1930)

 

Há diversas versões a respeito da origem do Cão dos Baskervilles. Como, porém, eu descendo em linha reta de Hugo Baskervill — e tive de meu pai a narração, e este já a tivera do próprio pai —, preservei-a na crença de que ela ocorreu como aqui vai narrada. Desejo que vós, meus filhos, creiais que a mesma justiça — a que pune o pecado — também pode perdoar bondosamente, e não há crime nenhum tão pesado que, pela oração e pelo arrependimento, não consiga perdão. Esta história há de ensiná-los a não recear os frutos do passado, procurando, antes, serem circunspectos no futuro e a não se deixarem vencer pelas torvas paixões que tanto fez sofrer a vossa família.

Saibam que, no tempo da Grande Rebelião (cuja história pelo esclarecido Lord Clarendon lhes recomendo ardentemente), este Castelo Feudal em Baskervilles pertencia a Hugo do mesmo nome: não é preciso dizer outra vez que era um homem ateu, irreverente e licencioso. Os vizinhos ter-lhe-iam perdoado isto, pois nunca ali floresceram santos, mas havia nele um tal impudor e crueldade que ficaram proverbiais em todo Oeste.

Aconteceu que este Hugo veio a amar (se tão sombria paixão pode ser chamada por tão formoso nome) a filha de um lavrador que tinha propriedades perto dos domínios dos Baskervilles. Mas a jovem, que era discreta e bem reputada, evitava-o sempre, porque tinha medo da sua fama.

Sucedeu, então, que, no dia de São Miguel, esse Hugo — e mais cinco ou seis dos seus companheiros maus e indolentes — roubaram a jovem e levaram-na, tendo sabido que o pai e os irmãos não estavam em casa.

Depois que a trouxeram para casa dele, puseram-na num quarto de andar de cima, enquanto Hugo e os amigos se entregavam a uma longa orgia, como faziam todas as noites.  

A pobrezinha, lá em cima, estava quase louca com os cantos, gritos e pragas horríveis que ela ouvia, vindos de baixo. Dizem que, quando embriagado, Hugo usava uma linguagem que infamava quem a usasse.

Por fim, na angústia do medo, ela fez o que só ousaria um homem valente e atrevido: desceu, agarrando-se às heras que cobriam a parede de fora, e correu através da charneca que separava o palácio da herdade de seu pai. Tinha de correr três léguas para lá chegar.

Pouco tempo depois, Hugo deixou os companheiros para levar comida à jovem cativa — e outras coisas mais, provavelmente —, mas achou a gaiola vazia: fugira-lhe o passarinho. Ele ficou como se tivesse o demônio no corpo e, precipitando-se pelas escadas até a sala de jantar, saltou sobre a mesa, atirando garrafas e comidas pelo ar, e declarou alto, diante de toda a companhia, que, naquela mesma noite, entregaria o corpo e a alma ao diabo se não pudesse vingar-se.

Todos os companheiros de orgia estavam apavorados com a fúria do homem; nisto, um deles. por ser o mais perverso ou o mais embriagado, lembrou que soltassem em busca dela os cães. Hugo saiu correndo, dando ordem aos criados que lhe selassem a égua e soltassem a matilha. E, dando aos cães a farejar um lenço da moça, fê-los partir e, uivando, lá foram eles através da charneca.

Durante uns momentos, os estroinas ficaram de boca aberta, sem compreender o que tinha sido feito tão à pressa. Mas logo o seu espírito, presa da embriaguez, acordou ao lembrar o que se estaria passando na charneca. Fez-se, então, uma grande confusão e gritaria: uns pediam as pistolas, outros os cavalos e outros pediam mais vinho. Por fim, voltou um pouco de sentido às suas cabeças tontas, e todos, eles — eram uns treze ao todo — montaram os cavalos e partiram.

A Lua brilhava luminosa sobre eles, que corriam velozmente pelo caminho que a jovem devia ter tomado para alcançar a própria casa. Tinham caminhado uma milha ou duas quando passaram perto de um pastor, dos que ficavam de noite na charneca, e perguntaram-lhe se tinha visto a caçada. E o homem, como diz a história, estava com tal medo que mal podia falar; afinal, pôde dizer que tinha realmente visto a infeliz moça, com os cães em seu encalço.

— Mas —disse ele — também vi outra coisa: Hugo Baskervllle passou por mim, montado na sua égua preta, e atrás dele corria, mudo, um cão infernal! E que Deus permita nunca eu o veja atrás de mim!

 Por isso, os fidalgos embragados praguejaram contra o pastor e caminharam para diante. Daí a pouco, porém, ficaram gelados, porque ouviram o ruído de um galope. Depois, a égua preta, salpicada de espuma branca, passou correndo com as rédeas a arrastar e a sela vazia.

Então, chegaram-se todos uns aos outros, doidos de medo. Seguiram, contudo, em frente. Se, todavia, cada um deles estivesse sozinho, voltaria, com todo prazer, para trás.  

Afinal, encontraram os cães. Estes, apesar de conhecidos pela bravura e pela raça, estavam ganindo, agrupados no alto de uma ribanceira profundíssima, uns fugindo aos saltos, de olhos esgazeados, para o estreito valado que tinham em frente.

A companhia parou. Estavam mais moderados do que quando partiram. Alguns não quiseram por nada andar mais, mas três dentre eles, mais atrevidos ou mais embriagados, desceram pela ribanceira até um largo espaço, no qual jaziam duas grandes pedras, que ainda hoje se podem ver, e que ali foram postas por esquecidos povos dos tempos antigos.

A Lua brilhava sobre aquela clareira onde, exatamente ao centro, jazia a infeliz moça, no lugar onde tinha caído morta de medo e de cansaço. Mas não foi por causa da jovem, nem do corpo de Hugo Baskerville, caído perto do dela, que se eriçaram os cabelos destes três ousados senhores. Eriçaram-se pelo que estava ao lado de Hugo, puxando-lhe pela garganta: um animal preto, enorme, horrível; tinha a forma de um cão, mas era de um tamanho nunca visto por olhos mortais. Mas, quando o viram separar a cabeça de Hugo do corpo, e voltar para eles os seus olhos em brasa, e as queixadas escorrendo sangue, os três estremeceram de medo e correram para salvar a rica pele, ainda aos gritos, por ali afora.

 


Dizem que um deles morreu na mesma noite da impressão que teve, e os outros dois ficaram inutilizados para sempre.

É esta a história, meus filhos, do aparecimento do cão que persegue a nossa família, tão amargamente, desde então.

Se o deixo aqui escrito, é porque o que sabemos com toda a certeza causa-nos menos temor do que quando apenas suspeitamos ou supomos. Não é possível negar que muitos de nossa família têm tido morte desgraçada, súbita, sangrenta ou misteriosa.

Entreguemo-nos à Divina Providência, que não punirá para sempre o inocente; não irá além da terceira ou quarta geração de que fala a Sagrada Escritura. A essa Providência recomendo-vos, meus filhos, e vos aconselho, como precaução, evitar a passagem através da charneca a essas horas mortas, quando estão no auge as forças diabólicas.

 

De Hugo Baskerville a seus filhos Rodger e John, com instrução para não dizerem nada a respeito à sua irmã Elizabeth.

 

Excerto de “O Cão dos Baskervilles”.

Fonte: Diário Carioca (RJ), edições de 14 e 15 de dezembro de 1940.

Tradução de autor desconhecido.


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