O DEVORADOR DE CRÂNIO - Narrativa Clássica de Terror - Dante Alighieri
O DEVORADOR DE
CRÂNIO
Dante Alighieri
(1265 – 1321)
Vimos,
no Inferno, dois espíritos congelados. Um deles mantinha a cabeça sobre a do
outro. Com faminta ferocidade, cravava-lhe os dentes na nuca e roía ferozmente
o crânio de seu inimigo.
—
Ó, tu que demonstras, por meio de tão brutal comportamento, o ódio que tens
àquele que estás a devorar, diz-me: o que te induz a tal barbárie? — perguntei.
— Se assim ages por justiça, eu — sabendo
quem és tu e qual é o crime de teu inimigo — te vingarei no mundo, antes que a
minha língua se imobilize para sempre.
Aquele
pecador afastou de sua boca aquele terrível alimento e limpou os lábios nos
cabelos da cabeça que roía. Depois, começou a falar-me assim:
—
Queres tu que eu reviva a dor atroz, que oprime o meu peito, só em pensar no
sucedido. Mas, se minhas palavras devem ser um germe de infâmia para o traidor
a quem devoro, tu me verás chorar e falar ao mesmo tempo. Não sei quem tu és,
nem de que meios te valeste para chegar ao Inferno, mas, ouvindo-te, pareceu-me
que és de florentino.
“Hás
de saber que eu fui o conde Ugolino e este, a quem devoro, é o arcebispo
Ruggieri. Agora, eu te direi por que o trato assim. Não é necessário que eu te
diga que, por causa de seus pérfidos intentos, e por eu ter-lhe depositado
irrestrita confiança, acabei preso e, depois, deixado para morrer. Meu eu te
contarei o que não pudeste saber: a morte cruel que me foi imposta. Então,
compreenderás o quão eu me sinto ofendido.
“Um
pequeno buraco aberto na torre — que, para minha desgraça, é hoje chamada de
Torre da Fome — e na qual outros ainda serão trancafiados — já havia me
permitido o vislumbre de muitas luas, quando tive o pesadelo que me desvelou o futuro.
“Ruggieri
me apareceu, em sonhos, como um senhor e suserano, caçando um lobo e seus
filhotes no monte que impede os pisanos de verem a cidade de Luca. Ele se
fizera preceder dos Gualandi, dos Sismondi e dos Lanfranchi, que lideravam o caminho
com cães famintos, diligentes e treinados. O lobo os seus filhotes me pareceram
exaustos depois de uma curta carreira, e julguei que os cães lhes rasgavam os
flancos com suas presas afiadas.
“Quando acordei, antes do amanhecer, ouvi meus filhos, que estavam comigo, a chorar, implorando por pão. Muito cruel és tu, se não te entristeces ao pensares no quão aquela cena devastou o meu coração; e se não choras agora, já não sei o que poderia excitar as tuas lágrimas. Já estávamos acordados e aproximava-se a hora em que nos traziam comida; mas todos duvidamos de que nos trariam alimentos, porque cada um de nós teve um sonho semelhante. Ouvi martelos cravejando o portão da horrível torre e olhei para os rostos de meus filhos, mas sem dizer palavra. Eu não conseguia chorar, porque a dor me petrificava. Eles, porém, choravam, e o meu pequeno Anselmo disse-me:
“—
O que tens, pai? Por que nos olha assim?
“No
entanto, eu não respondi, nem derramei uma lágrima sequer durante todo aquele
dia, nem na noite seguinte, até que um novo Sol iluminou o mundo. Quando um de
seus débeis raios penetrou na dolorosa prisão, vi que naqueles quatro rostos o
meu semblante se refletia, e pus-me a morder as mãos, em desespero. E eles,
acreditando que eu o fazia por fome, levantaram-se rapidamente e disseram:
“—
Pai, seria muito menos doloroso para nós se nos comeres. Tu nos vestiste destas
carnes miseráveis; podes, portanto, delas nos despojar.
“Então
me acalmei para não mais ainda entristecê-los. E, naquele dia e no seguinte,
ficamos mudos. Oh, duro chão! Por que não te abriste sob os nossos pés?
“Quando
chegamos ao quarto dia, Gaddo deitou-se aos meus pés, dizendo:
“—
Meu pai, por que não me ajudas?
“Depois,
morreu.
“E,
assim como me vês agora, eu vi morrer os outros três, um por um, entre o quinto
e o sexto dia.
“Já
cego, procurei cada um deles, chamando-os por três dias, depois que morreram.
Até que, finalmente, a inanição tornou-se-me mais forte do que a dor”.
Quando
acabou a narrativa, o pecador volveu os olhos para o seu desafeto e mergulhou
os dentes naquele crânio miserável, roendo-o como se fosse um cão.
Texto reelaborado por
Paulo Soriano, a partir da tradução espanhola, em prosa, de “A Divina Comédia”,
por Manuel Aranda y Sanjuán (1850 – 1900).
Ilustrações: Gustave Doré
(1832 – 1883).
Que crueldade!
ResponderExcluirPreciso urgentemente comprar a divina comédia.
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