O AMIGO DO DEMÔNIO - Conto Clássico Sobrenatural - Juan Manuel de Castela


O AMIGO DO DEMÔNIO

Juan Manuel de Castela

(1282 – 1348)

Tradução de Paulo Soriano

 

— Senhor conde Lucanor — disse Patronio —, um homem que havia sido rico ficou tão pobre que não tinha o que comer. Como não há no mundo maior desgraça que o infortúnio para o que já foi ditoso, aquele homem, que de tanta prosperidade havia sucumbido a tanta desventura, estava muito triste. Um dia, em que caminhava sozinho no bosque, muito aflito e preocupado, encontrou-se com o demônio. Como este sabe tudo o que acontece, sabia por que aquele homem estava tão triste. Apesar disto, perguntou-lhe a causa de sua tristeza.

O homem indagou por que motivo falaria, já que não havia como ser ajudado. O demônio replicou que, se ele lhe rendesse obediência, iria remediá-lo. E, para que o homem visse o que poderia fazer em seu favor, disse-lhe aquilo em que vinha pensando e a razão pela qual estava triste. Então contou ao homem a sua própria história e o motivo de sua tristeza, como quem muito bem de tudo sabia.

Disse-lhe, também, que, se quisesse fazer o que lhe dissesse, o tiraria da miséria e o faria mais rico que qualquer outro de sua linhagem, porquanto era o demônio e podia mesmo realizar tais coisas.

Quando o homem o ouviu dizer que era o demônio, ficou com muito medo, mas pela aflição e penúria em que encontrava, respondeu que, se voltasse a ficar rico, faria o que o demônio quisesse.

Saiba que demônio procura o momento mais propício para nos enganar. Quando o homem está em estado de muita necessidade ou abatimento, ou muito inquieto pelo temor ou pelo desejo de algo, consegue dele tudo o que se quer. Por isto, ao ver a aflição do homem, o demônio buscou um modo de enganá-lo.

Então fizeram um pacto e o homem declarou-se vassalo do demônio. Feito isto, disse-lhe o demônio que, doravante, passasse a roubar, pois nunca encontraria porta ou casa tão bem trancadas que não lhe fossem abertas, e que, se por acaso se visse em algum perigo, ou se fosse levado à prisão, não teria mais que o chamar, dizendo: “Socorra-me, dom Martín”, para que ele viesse, imediatamente, para livrá-lo daquele perigo. Depois, separam-se.

Quando anoiteceu, o homem rumou à casa de um mercador, pois os que querem fazer o mal têm aversão à luz. Ao chegar à porta, abriu-a o demônio, que fez o mesmo com as arcas, de modo que o homem pôde assenhorar-se de uma grande quantidade de dinheiro. No dia seguinte, fez um furto muito grande, e depois outro, até que ficou tão rico que não mais se recordava da miséria que havia passado.

O infeliz, não satisfeito por sair da pobreza, continuou roubando. Tanto roubou que acabou por ser preso. E quando o prenderam, clamou por dom Martín. Dom Martín chegou muito depressa e o livrou em seguida. Ao ver o homem que dom Martín cumpria a sua palavra, voltou a roubar e tanto roubou que chegou a ser muitíssimo rico.

Num destes roubos, foi novamente preso e chamou dom Martín, que não veio tão depressa quanto ele queria. Os juízes do lugar onde ele praticara o roubo já haviam começado a fazer as suas averiguações. Quando chegou dom Martín, o homem lhe disse:

— Ah, dom Martín, quanto medo eu passei!  Por que não vieste antes?

Respondeu-lhe dom Martín que estava ocupado com um assunto urgente e que por isso se atrasara. Imediatamente, tirou-o da prisão.

O homem voltou a roubar. Ao cabo de muitos roubos, foi de novo preso e, realizado pelos juízes o interrogatório, foi condenado.  Prolatada a sentença, veio dom Martín e o pôs na rua. Vendo o homem que dom Martín sempre o soltava, continuou roubando. Outra vez foi preso e chamou dom Martín, mas quando este chegou, o homem já havia sido condenado à morte. Recorreu dom Martín ao indulto real e, deste modo, voltou a libertá-lo.

Continuou roubando, foi preso outra vez e chamou dom Martín, mas quando este chegou, estava o homem ao pé da forca. Ao vê-lo, disse o homem:

— Ah, dom Martim, saiba que esta não foi de brincadeira! Não sabes o medo que tive!

Dom Martín lhe disse que lhe trazia quinhentos maravedis[1] em uma bolsa, que os desse ao juiz e que, desta maneira, ficaria livre. O juiz havia dado a ordem de que o enforcassem e já estavam procurando a corda para isto. Enquanto a procuravam, chegou o homem ao juiz e lhe deu a bolsa. Crendo o juiz que o sentenciado lhe dera muito dinheiro, disse às pessoas que ali se encontravam:

— Amigos, alguém já viu faltar corda para enforcar um homem? Eu creio que este homem é inocente e, como Deus não quer que ele morra, falta-nos agora a corda. Esperemos até amanhã e vejamo-lo com mais atenção, porque, se ele for culpado, tempo nos resta para fazer justiça.

O juiz dizia isto para libertá-lo em troca do dinheiro que havia recebido, mas quando se afastou e olhou a bolsa de couro, em vez do dinheiro encontrou uma corda de enforcar. Imediatamente, mandou pendurar o prisioneiro. Tendo o verdugo ajustado aquela mesma corda ao seu pescoço, o homem pediu a dom Martín que o socorresse. Replicou dom Martín que sempre ajudava a todos os seus amigos, mas até que estes chegassem ao extremo do patíbulo; depois, não mais. Deste modo, perdeu aquele homem a vida e a alma por crer e fiar-se do demônio.

 



[1] Maravedi: antiga moeda da Península Ibérica.


 

Comentários

  1. este conto de terror é maravilhoso pois tem um ensinamento espiritual e moral embutido nele. Ass. Roger

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