O DEMÔNIO DE BICÊTRE - Conto Clássico de Terror - Amédée de Ponthieu
O DEMÔNIO DE
BICÊTRE
Amédée de Ponthieu
(Séc. XIX)
Tradução de Paulo Soriano
Bicêtre
sempre arrastou consigo uma longa série de histórias lúgubres. Seu nome
desperta uma ideia de reprovação e terror. Há muito tempo, as pessoas crédulas
consideravam que era a morada habitual de demônios, bruxos e lobisomens.
Ninguém se atrevia a se aventurar em suas proximidades à noite, especialmente
após o toque de recolher.
O
bairro das Catacumbas, o Tombe-Isoire com a lenda sinistra do seu gigante, o
castelo do Vauvert, onde o demônio fez aparições tão terríveis que o populacho
o transformou num provérbio que ainda circula; a barreira do Inferno, o
planalto de Mont-Soufis, o Feudo das Tumbas, a planície semisselvagem que o
rodeia, onde pedreiras cavadas aqui e ali abrem as suas bocas ameaçadoras que
parecem sugar o viajante; árvores raquíticas e contorcidas cuja silhueta
bizarra lembra a forca, tudo parecia finalmente se juntar para fazer desse
lugar amaldiçoado um objeto de desaprovação, tal como ainda é hoje em dia.
Recomendo
a planície de Bicêtre aos nossos romancistas mais sombrios, pois nenhum lugar
nas proximidades de Paris é mais adequado para devaneios fantásticos,
especialmente à noite, quando a Lua desenha em perfis ameaçadores os sinistros
campanários do ruidoso palácio da loucura, chamado pelo povo de bastilha da
ralé. Parece que se ouve o farfalhar doloroso de fantasmas, o uivo sinistro de
lobisomens que percorrem a planície, procurando tumbas vazias e rolando colunas
quebradas, e o grito rouco de gnomos e de feiticeiras, que tocam as nuvens com
seus cabelos de fogo, montadas em suas lendárias vassouras... Tudo isso dá rédeas
à imaginação, que estremece de horror, diante das memórias sinistras gravadas
para sempre naquele solo.
Os
ladrões sabiam tirar proveito desse foco de terror. Tinham eles um grande
interesse em proteger seu esconderijo, que afastava as pessoas em razão do
temor aos demônios e lobisomens. E, muitas vezes, aparições diabólicas de
contrabando, ampliadas pelo medo, afastavam dos criminosos as indiscrições dos
curiosos e, até mesmo, as investigações da polícia.
No
século XIII, em meio a esta planície amaldiçoada., que já servira de cemitério
para os romanos, erguia-se uma antiga ruína conhecida como Grangeaux-Gueux,
cobiçada por Jean de Pontoise, bispo de Winchester na Inglaterra, residente na
França, na corte de Filipe Augusto.
Ninguém
sabia o nome do legítimo proprietário.
Consultaram-se
todos os arquivos, examinaram-se todos os tabeliões e registradores e, segundo
boatos, nenhum ser vivo jamais havia registrado sem seu nome o antigo solar. Portanto,
não seria fácil adquirir tal domínio assombrado por fantasmas e espíritos
malignos, que pareciam considerá-lo como seu.
Uma
comitiva de seis monges deixou Paris, armada com as relíquias mais famosas,
para levar essa terrível negociação a uma conclusão bem-sucedida. Fizeram uma
série de exorcismos e lançaram baldes de água benta, mas tudo em vão. Os
demônios fizeram um alvoroço ainda mais infernal à aproximação das coisas
sagradas, e logo viram-se os seis monges retornarem, pálidos e meio mortos de
susto, contando maravilhas terríveis.
Mal
haviam entrado na Grange-aux-Gueux e chamas sinistras explodiram por todos os
lados, esticando suas línguas cor de sangue para devorá-los, com fogos-fátuos
dançando ao seu redor. Em todos os lugares, ouviam-se gemidos sombrios,
acompanhados pelo som de correntes e grito. Fantasmas de sobrenatural
compleição, com olhos do tamanho de luas, os perseguiram com lanças
flamejantes, proferindo juramentos aterrorizantes e ameaças sacrílegas.
Jean
de Winchester, insatisfeito com o resultado, queria tentar o empreendimento por
conta própria, na esperança de ao menos impor a sua augusta autoridade a todos aqueles
demônios desencadeados. Mas, assim como os monges, ele correu de volta a Paris
e quase morreu de pavor.
A
partir de então, ele desistiu da Grange-aux-Gueux e deixou os demônios em paz.
Todas
essas infrutíferas tentativas aumentaram ainda mais a reputação de Bicêtre, e
em todos os bairros da boa cidade de Paris circulava apenas os rumores dessas
aparições, comentadas sob o crivo da superstição do povo.
Um
pobre barbeiro, recém-chegado da Gasconha, viera a Paris em busca de fortuna,
mas não conseguira encontrar uma barba ou sangria por fazer. Ouviu falar da sinistra
aventura. Inteligente como todos os de sua província, ele pressentiu que ali
havia um meio de angariar as suas coroas de ouro.
Então
disse, em alto e bom som, que o monsenhor John de Winchester e os seis monges
não tinham procedido da maneira correta. Disse conhecer um meio infalível de se
livrar dos demônios o mais rápido possível, e que, por uma boa recompensa,
responsabilizava-se por levar a coisa a uma conclusão bem-sucedida. Relataram
tal ousada declaração ao bispo Jean. Então, o monsenhor mandou chamar o
barbeiro da Gasconha e ordenou que o trouxessem. Este último compareceu perante
o bispo e repetiu sua declaração em termos tão decididos que inspirou confiança
no prelado.
—
Bem — disse o bispo Jean —, experimente-se na ventura. Se você tiver sucesso,
essas cem coroas de ouro irão para o seu bolso. Se, contudo, você for apenas um
vil impostor, se mentir e quiser zombar de mim, mandarei açoitá-lo com varas na
Place de Greve e o expulsarei de Paris. Veja se minhas condições se lhe parecem
adequadas.
—
Aceito as condições — disse o barbeiro. — Antes do pôr do Sol, sua eminência
será o dono e senhor da Grange-aux-Gueux.
O
barbeiro deixou o palácio e foi imediatamente para Grangeaux-Gueux, levando
consigo apenas uma garrafa de água benta, habilmente escondida sob as dobras de
seu manto, e um pequeno pedaço de vela.
Tendo
entrado sem dificuldade no meio da ruína, acendeu a ponta da vela, sentou-se
numa pedra e corajosamente esperou pelos demônios.
Ele
se ria dos relatos ridículos dos monges. Em vez das turbas fantasmagóricas e
das terríveis aparições de que tanto se falava, ele não via nada além de uma
ruína em mau estado e que dificilmente se prestava a atrair a cobiça de um
prelado como o bispo Jean.
Por
isso, ele esperou em silêncio, sem tremer, até mesmo querendo cantar para
provocar os habitantes do lugar, se houvesse algum.
Decididamente,
este Gascão tinha um espírito forte e teria rendido pontos aos cavaleiros
errantes de seu tempo.
De
repente, na curva de um corredor escuro que se estendia muito, muito abaixo da
planície, ele viu um homem alto, pálido e magro, vestido de veludo vermelho, que
avançava silenciosamente em sua direção.
—
O que você está fazendo aqui? — disse ele, com uma voz curta e metálica.
—
Bem — respondeu o barbeiro, sem se mexer —, o bispo de Winchester tem um grande
desejo de adquirir esta propriedade, e eu vim, em seu nome, para tomar posse
deste lugar. Ele me prometeu cem coroas de ouro, caso eu tenha êxito, e, como se
esqueceram de colocar um guarda na entrada, eu aqui espero, até que o
proprietário se apresente.
A
esta resposta audaciosa, o homem alto e vermelho deu uma risada estridente, que
abalou os ecos da abóbada meio deslocada.
—
E por quais meios você espera levar o seu negócio a bom desfecho? É com
dinheiro? O mestre das ruínas já o tem em demasia. Como você planeja pagar por
este castelo?
—
Com minha alma — disse o barbeiro resolutamente. — E ela é uma alma de primeira
categoria. Esta manhã, antes de partir, confessei todos os meus pecados mortais
e até os menores pecadilhos. Então, recebi uma absolvição bem completa. Tudo
isto não valoriza imensamente a minha alma? Acredite em mim, é de bom preço o
que eu ofereço, pois é uma moeda cunhada à imagem de Deus.
O
gascão descreveu o item de troca com grande calma, como se estivesse na
presença de um cliente barganhando o preço de sua barba.
—De
qualquer forma, eu aceito a proposta. Cedo este domínio ao bispo, e aqui está
seu título de propriedade lavrado em pergaminho em boa e devida forma, feito de
boa-fé e coberto com as minhas armas e o meu selo. Nenhum poder na terra, ou no
inferno, ou mesmo no céu, jamais poderá revogar este contrato. Mas quando você
vai entregar-me a sua alma, em troca deste pergaminho?
—
Ora, imediatamente! No instante em que esse pedacinho de vela estiver
totalmente queimado.
—
Definitivamente, você é um bom pagador e é um prazer fazer negócios com a sua
pessoa. Mas é uma pena que você não tenha duas almas: se as tivesse, eu lhe
venderia outra coisa.
E
entregou o título ao barbeiro.
O
barbeiro imediatamente tirou a garrafa de por sob o manto, desarrolhou-a e enfiou
a escritura outorgada pelo anjo maligno na água benta. Tapou a garrafa com o
coto de vela, que se apagou imediatamente, e depois caminhou para trás,
colocando diante de si, como um escudo, o talismã sagrado, que obrigava o
espírito maligno a manter uma distância respeitosa.
Quando
o demônio chegava perto demais, o barbeiro borrifava-lhe algumas gotas de água
benta, e, então, o demônio, que via sua presa escapar, soltava uivos terríveis,
mas não tocava nela. O gascão saiu vitorioso desse duelo singular, ganhou Paris
e deu o título de propriedade ao bispo que, em troca, imediatamente lhe deu as
cem coroas de ouro.
A
garrafa sagrada e a ponta da vela, armas do conquistador do Diabo, foram
colocadas num relicário que decorava uma capela lateral de Notre-Dame, e que
Satanás teve o cuidado de não o reivindicar.
Tendo
se tornado, pelo diabo, o final e pacífico proprietário da Grange-aux-Gueux, o
bispo de Winchester a mandou demolir de cima a baixo, a fim de purificá-la. Os
materiais antigos foram dispersados e, com novas pedras, ele construiu um
magnífico castelo cujas janelas, pela primeira vez na França, foram cobertas
com molduras de vidro.
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