AVENTURA INCOMPREENSÍVEL - Conto Clássico de Terror - Marquês de Sade
AVENTURA
INCOMPREENSÍVEL
Marquês de Sade
(1740 — 1814)
Tradução de Paulo Soriano
Um periódico de 1799
assim se referia ao Marquês de Sade: “Só o nome deste escritor infame exala um
odor cadavérico, que mata a virtude e inspira o horror. É o autor de ‘Justine
ou as Desgraças da Virtude’. O coração mais depravado, a mente mais degenerada,
a imaginação mais estranhamente obscena não são susceptíveis de conceber algo
que ofenda tanto a razão, o pudor, a humanidade.”
Embora tenha-se
notabilizado por contos e novelas licenciosos, o Marquês de Sade (1740 — 1814)
deixou algumas narrativas fantásticas.
Em “Aventura
Incompreensível” (cujo título completo é “Aventura Incompreensível Atestada por
toda uma Província”), história escrita em 1788 — cerca de 18 anos antes
publicação da primeira parte do “Fausto”, de Goethe —, Sade explora o tema da
venda da alma ao Diabo em troca de uma vida plena de riqueza (e, aqui,
libertinagem), com suas terríveis (e sangrentas) consequências quando chegada a
hora da amarga prestação de contas.
Não
faz cem anos e ainda perdurava, em vários lugares da França, a absurda crença
de que, entregando a alma ao diabo, com certas cerimônias tão cruéis quanto
fantásticas, conseguia-se dessa entidade infernal tudo o quanto se desejasse; e
um século não é transcorrido da aventura, pertinente ao tema, que contaremos,
ocorrida em uma de nossas províncias meridionais, ainda hoje atestada pelos
registros de duas cidades, e respaldada por mui fidedignos testemunhos, dotados
da aptidão de convencer os incrédulos. O leitor pode ou não acreditar, pois
falamos somente depois de bem verificadas as provas. Naturalmente, não
garantimos a veracidade dos fatos, mas certificamos que mais de cem mil almas
acreditam neles, e que mais de cinquenta mil podem corroborar nos nossos dias a
autenticidade com que estão consignados nos registros seguros. Pedimos vênia
para disfarçar a província e os nomes das pessoas.
Desde
a mais tenra juventude, o barão de Voujour conjugava a mais desenfreada
libertinagem ao cultivo de todas as ciências, e mui especialmente aquelas que
induzem o homem ao erro e o fazem perder um precioso tempo que poderia empregar
em algo infinitamente melhor. Era alquimista, astrólogo, bruxo, necromante,
astrônomo notável e físico medíocre. Aos vinte e cinco anos, o barão, senhor de
seu patrimônio e dos próprios atos, descobriu, segundo afirmava, em seus
livros, que, em se imolando um menino em homenagem ao diabo, empregando
determinadas palavras e contorções durante uma execrável cerimônia, invocava-se
a presença do demônio, obtendo-se dele tudo o que se desejasse, desde que se
lhe prometesse a alma. Então, tomou a resolução de perpetrar tal monstruosidade
com o único propósito de viver em felicidade plena até o décimo segundo lustro,
porquanto jamais lhe faltaria dinheiro, e, ademais, até tal idade, e apesar
dela, conservaria o barão, no mais alto grau das forças, suas prolíficas
faculdades.
Cometida
tal infâmia e firmado o pacto, ocorreu o seguinte: até a idade de sessenta
anos, o barão, que dispunha apenas de quinze mil libras de renda, havia
gastado, regularmente, duzentas mil e jamais deveu um centavo a ninguém. No que
respeita às suas proezas amorosas, foi capaz, até a citada idade, de desfrutar
duma mulher quinze ou vinte vezes em uma mesma noite, e, aos quarenta e cinco,
ganhou cem luíses em uma aposta com amigos. Estes duvidaram que o barão não
conseguiria satisfazer vinte e cinco mulheres, uma após outra; ele satisfez as
mulheres e a elas entregou os cem luíses. Depois de um outro jantar, tendo-se
iniciado um jogo de azar, o barão advertiu, ao entrar, que não dispunha de um
centavo sequer, razão por que declinou de participar da rodada; ofereceram-lhe
dinheiro, mas ele recusou. Enquanto jogavam, deu duas ou três voltas na sala.
Voltou e, tomando lugar à mesa, apostou em uma carta dez mil luíses, que foi
tirando em dez ou doze maços de seu bolso; a aposta não foi aceita e o barão
perguntou por quê. Um de seus amigos respondeu, brincando, que a carta não
estava generosamente fornida e o barão acrescentou a ela mais dez mil luíses.
Todas estas coisas estão registradas em assentamentos de duas respeitáveis
prefeituras, e nós as lemos.
Quando
completou cinquenta anos, o barão decidiu casar-se. Fê-lo, então, com uma
encantadora jovem de sua província, com a qual sempre viveu muito bem, sem que
as infidelidades, tão próprias a seu temperamento, jamais provocassem o menor
atrito. Teve ele sete filhos com esta mulher e já há algum tempo os encantos da
consorte fizeram-no mais presente em casa. Habitualmente, vivia com sua família
no mesmo castelo em que, na sua juventude, havia feito o antedito horrendo
pacto, lá recebendo homens letrados, dos quais apreciava a companhia e
cultivava a amizade. Todavia, à medida que se aproximava o prazo de sessenta
anos, recordava-se de seu infeliz contrato e, como não sabia se o diabo se
contentaria em arrebatar-lhe os dons ou em tirar-lhe a vida, seu humor mudou
por completo, pondo-se, assim, triste e meditabundo e, por isso, quase não mais
saía de casa.
No
dia preestabelecido e na hora exata em que o barão completava seus sessenta
anos, um criado lhe anuncia um desconhecido que, tendo ouvido falar de seus
dons, lhe solicita uma entrevista. O barão, que neste momento não pensava
naquilo que o vinha preocupando há vários anos, responde que o faça chegar ao
seu escritório. Sobe ao recinto e encontra um forasteiro que, por seu sotaque,
parece ser de Paris. Encontra um homem bem-vestido, dotado de bela aparência,
com quem, em seguida, se põe a conversar sobre as ciências mais elevadas. O
barão a tudo responde e a entrevista se anima. O senhor de Vaujour propõe à
visita um pequeno passeio e, tendo esta aceito o convite, nossos dois filósofos
saem do castelo. Era época de trabalhos agrícolas e todos os lavradores estavam
no campo. Alguns, vendo o senhor Vaujour gesticular, enfaticamente, sozinho,
julgam que o barão perdera o juízo e, então, correm para avisar à esposa, mas
ninguém, no castelo, reponde. Aquela boa gente retorna ao campo e segue
observando o seu senhor. Este, crendo estar a confabular animadamente com
alguém, agita as mãos, como é comum em tais conversas. Por fim, nossos dois
sábios chegam a uma espécie de passeio fechado na extremidade, e do qual não se
podia sair senão retornando pelo mesmo caminho. Trinta camponeses puderam
vê-lo, trinta foram interrogados e trinta responderam que o senhor de Vaujour
havia penetrado sozinho, sem deixar de gesticular, naquela espécie de alameda
coberta.
Ao
fim de uma hora, disse-lhe a pessoa com quem o barão imaginava estar:
—
Bem, barão, então o senhor não me reconhece? Esqueceu-se, por acaso, do desejo
de sua juventude? Esqueceu-se de que eu o realizei?
O
barão estremeceu.
—
Não tema — disse-lhe o espírito com quem conversava. — Não sou dono de sua
vida, mas posso retirar-lhe todos os dons e arrebatar-lhe tudo o quanto lhe é
querido. Retorne à sua casa e você verá em que estado irá encontrá-la.
Reconhecerá o justo castigo de sua imprudência e de seus crimes... Adoro os
crimes, barão, até os desejo, mas o meu destino me compele a puni-los. Volte
para casa, repito, e converta-se. Ainda lhe resta um lustro de vida. O senhor
morrerá daqui a cinco anos, mas sem que lhe seja negada a esperança de estar um
dia com Deus, caso mude de conduta... Adeus.
E
o barão, encontrando-se sozinho, sem ter visto ninguém a retirar-se de sua
presença, retorna depressa por onde viera, perguntando aos camponeses, que
encontra no caminho, se o teriam visto ingressar na alameda em companhia de um
homem com tais e quais características. Todos respondem que ele havia entrado
sozinho e que, assustados ao vê-lo gesticular sozinho com aquela veemência,
correram a avisar à senhora, mas não havia ninguém no castelo.
—
Como não há ninguém? — exclamou o barão, transtornado. — Pois lá deixei seis
criados, sete crianças e minha mulher.
—
Não há ninguém, senhor — disseram-lhe.
Cada
vez mais assustado, corre para casa. Bate, mas ninguém responde. Força a porta
e entra. O sangue que inunda os degraus já lhe anuncia a catástrofe que irá
destruí-lo. Abre uma grande sala e depara-se com sua mulher, seus sete filhos e
seus seis criados, todos eles decapitados, espalhados pelo chão, em diferentes
posições, e em meio a ondas de sangue. Desmaia. Vários camponeses, cujos
depoimentos foram tomados, entram e contemplam o mesmo espetáculo. Acodem o
amo, que, paulatinamente, volta a si e roga-lhes que prestem à infeliz família
as últimas homenagens, e, sem perda de tempo, ruma ao Mosteiro da Grande
Chartreuse, onde, ao término de cinco anos, faleceu no exercício da mais
elevada piedade.
Nós
nos abstemos de toda reflexão sobre este incompreensível acontecimento.
Existiu, não podemos negar, mas é inexplicável. Deve-se ser cauteloso e não
acreditar em quimeras. Mas, quando algo é universalmente testemunhado e é
dotado de tais singularidades, deve-se baixar a cabeça, fechar os olhos e
dizer: “como não entendo como os mundos flutuam no espaço, pode haver sobre a
terra coisas que me fogem ao entendimento”.
Muito bom ! Ass. Roger
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