O CORAÇÃO DEVORADO - Conto Clássico de Horror - Giovanni Boccaccio


O CORAÇÃO DEVORADO

Giovanni Boccaccio

(1313 – 1375)

Tradução de Paulo Soriano

 

 

Havia na Provença, há muito tempo, dois nobres cavaleiros, cada um dos quais senhor de castelo e vassalos. Um se chamava Messer Guiglielmo de Rossiglione e o outro Messer Guiglielmo Guardastagno. E porque eram assaz destros com as armas, muito queriam um ao outro e tinham o costume de ir sempre juntos aos torneios, às justas ou a outros feitos d’armas, sob o mesmo estandarte.

E, malgrado cada um vivesse em seu próprio castelo, que distava do outro mais de dez milhas, sucedeu que, tendo Messer Guiglielmo de Rossiglione por mulher uma dama belíssima e atraente, Messer Guiglielmo Guardastagno, apesar do companheirismo e da amizade que havia entre eles, apaixonou-se pela esposa do amigo. E, assim, com um ou outro gesto significativo, fez com que a dama percebesse o que por ela sentia. Ela, ciente que ele era um cavaleiro muito corajoso, aprouve-se daquilo, e dele enamorou-se a tal ponto que não desejava ou amava nada mais do que ele, e só esperava ser por ele solicitada. E não decorreu muito tempo para que isto acontecesse e que juntos ficassem uma ou outra vez, amando-se muito.

E aconteceu que, agindo ambos de forma não muito discreta, o marido percebeu o que ocorria. Alimentou, pois, tal ira que a grande afeição que sentia por Guardastagno se transformou em ódio mortal. Ele sabia, contudo, ocultar os seus sentimentos com habilidade superior à que os dois amantes tinham em disfarçar o mútuo amor. Decidiu-se, portanto, por matar o seu rival.

Estando Messer de Rossiglione neste estado de espírito, anunciou-se um grande torneio na França, notícia que Rossiglione imediatamente participou a Guardastagno. Mandou-lhe dizer que, se quisesse, podia vir à sua casa e, juntos, deliberariam se e como iriam ao torneio. Guardastagno, encantado com a notícia, respondeu que, sem falta, no dia seguinte, iria jantar com o amigo.

Rossiglione, ao saber da resposta do desafeto, considerou que chegara a hora de matá-lo. No dia seguinte, armando-se, montou em seu cavalo, e, a cerca de uma milha de seu castelo, ficou à espreita, com alguns de seus homens, em uma floresta pela qual rival haveria de passar. Após esperar por um bom tempo, ele o viu chegar, com dois de seus homens ao seu lado. Desarmados, de nada desconfiavam. E quando o viu assomar no local propício, Rossiglione, cheio de rancor e crueldade, com uma lança na mão, foi ao seu encontro, gritando:

— Traidor, saibas que estás morto!

Dizer isto e mergulhar a lança no peito do inimigo foram um só ímpeto.

 

 



Guardastagno, incapaz de se defender ou dizer uma palavra, perpassado por aquela lança, caiu no chão e morreu pouco depois. Seus homens, sem saberem quem fizera aquilo, torceram as rédeas de seus cavalos e fugiram o mais rápido que puderam para o castelo de seu amo. Rossiglione, desmontando, abriu o peito de Guardastagno com uma faca e arrancou-lhe, com as mãos, o coração. E, envolvendo-o no estandarte de uma lança, ordenou a um de seus vassalos que o levasse. E, tendo ordenado a todos que não se atrevessem pronunciar uma só palavras sobre o sucedido, montou novamente em seu cavalo. Já era noite quando chegou ao seu castelo.  

A senhora, tendo ouvido que Guardastagno jantaria com eles naquela noite, esperava-o com grande ansiedade. Mas, não o vendo chegar, ficou muito admirada e disse ao marido:

—Senhor, o que houve? Por que Guardastagno veio?

Ao que o marido respondeu:

— Senhora, fui avisado, da parte dele, que não poderá estar aqui senão amanhã.

Ouvindo aquilo, a senhora ficou um tanto perturbada.

Rossiglione, depois de apear, chamou o cozinheiro e disse:

— Toma aquele coração de javali e prepara a melhor e mais saborosa iguaria que tu souberes fazer. E quando eu estiver à mesa, mande-a para mim em uma tigela de prata.

O cozinheiro pegou o coração e nele aplicou toda a sua arte e diligência. Picou-o e temperou-o com excelentes especiarias.  Fez, destarte, uma requintada iguaria.

Chegada a hora da ceia, Guiglielmo sentou-se à mesa com a esposa. O jantar foi servido, mas ele, com o pensamento dominado pelo mal que perpetrara, pouco comeu. Tendo o cozinheiro enviado a iguaria, ele, elogiando-a, mas alegando fastio, ordenou que a pusessem à frente da senhora. Esta, que mantinha o apetite, começou a comê-la. O prato lhe pareceu aprazível e ela devorou-o completamente.

 

 


Vendo o senhor que a dama havia comido tudo, disse:

—Senhora, foi de teu agrado essa comida?

A dama respondeu:

— Meu senhor, garanto-te que a comida deveras me agradou.

— Acredito, sim — Deus seja louvado —, no que me dizes — disse o cavaleiro. — Não me surpreende que, estando morto, seja de teu agrado aquilo que, em vida, te agradou mais do que qualquer outra coisa.  

Ao ouvir estas palavras, a dama ficou um tanto pensativa. Depois, disse:

— Como? O que me deste de comer?

O senhor respondeu:

— O que comeste foi, na verdade, o coração de Messer Guiglielmo Guardastagno, a quem, como mulher infiel, tu tanto amaste. E tenhas certeza de que se trata, mesmo, do coração de teu amante:  com estas mãos, eu o arranquei de seu peito, pouco antes de retornar ao castelo.

É inútil indagar sobre a dor que sentiu aquela mulher ao saber do que acontecera àquele que ela amava mais do que tudo.  Depois de um momento, ela disse:

— Fizeste o que apraz somente a um cavalheiro desleal e perverso. Fui eu em que, sem que ele me obrigasse, dele fiz o senhor do meu amor.  O ultraje, pois, eu cometi; não ele. O castigo deveria recair sobre mim. Mas queira Deus que — depois de um tão nobre manjar, que foi o coração de um cavaleiro tão valente e cortês como Messer Guiglielmo Guardastagno — não haja, para mim, nenhuma outra refeição.

A dama levantou-se. E, sem um instante de hesitação, atirou-se por uma janela que havia atrás de si.

A janela era muito alta. Assim, quando a senhora caiu, não apenas encontrou a morte, como ficou completamente despedaçada.

 

 



Messer Guiglielmo, assistindo àquilo, ficou deveras perturbado, e lhe pareceu que agira perfidamente. Temendo a reação dos camponeses e do conde de Provença, mandou que lhe selassem o cavalo e fugiu.  

Na manhã seguinte, toda a região tomou conhecimento do que havia acontecido. Assim, as gentes do castelo de Messer Guiglielmo Guardastagno e do castelo da senhora, com grande dor e muitas lágrimas, recolheram os corpos dos amantes e sepultaram-nos no mesmo túmulo, aberto na igreja do castelo da dama morta.  Sobre o sepulcro, escreveram-se versos que informavam quem eram os defuntos e, bem assim, o modo e a causa de suas mortes.  

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