UMA HISTÓRIA DE BRUXAS - Conto de Terror - Ângelo Brea
UMA HISTÓRIA DE BRUXAS
Ângelo Brea
Aquele ano, como todos os anos, celebramos a
noite de consoada em casa dos meus pais, onde acostumava reunir-se toda a
família. O nosso filho, que acabava de celebrar o segundo aniversário, foi o
centro de atenção de todos. A verdade é que o jantar foi como de costume,
agradável e abundante, aproveitando-o para falarmos dos nossos parentes e
amigos. Essa foi a primeira ocasião em que meu irmão mais novo falou da doença
da nossa prima Maria Teresa (que curiosamente era também a minha afilhada), uma
rapariga de dezessete anos cujo aniversário se celebrava em 31 de dezembro. O
motivo de que nos referíssemos a ela foi porque se dizia que a sua saúde se
tinha vido afetada ultimamente por um forte abalo. Pensei que podia tratar-se
de uma gripe, que neste ano tinha sido bastante virulenta, já que eu mesmo a
tinha padecido na primeira quinzena de novembro, chegando a guardar um par de
dias de repouso. Meu irmão insistiu em que não era uma gripe e que o meu tio
José, o pai da rapariga, tinha-lhe dito que os médicos não sabiam explicar de
que se tratava.
A
aldeia na que vivemos chama-se Oroso, na freguesia de São Martinho de Oroso, e,
ainda que o município leve o nome da nossa aldeia, chegando em ocasiões a
residir nela a Câmara Municipal, a verdade é que a vila mais povoada é
Sigueiro, na estrada de Santiago à Corunha, onde se encontra a famosa ponte que
sobre o Tambre mandara construir Fernão Peres de Andrade, o Bom, e no que houve
grande luta na época da revolução liberal de 1846, que conheceu o meu avô.
Como
vivemos numa aldeia que não ultrapassa os duzentos habitantes, as nossas casas
encontram-se muito perto as umas das outras. A minha está na margem esquerda da
estrada (a olhar da parte de Santiago), e chega-se a ela descendo por um
caminho enlameado a maior parte do ano, que se abre mesmo ao lado da igreja de
São Martinho, em cujo pequeno cemitério foram enterrados desde sempre os nossos
mortos. Para chegar à casa do meu tio apenas devemos cruzar a estrada, por onde
chega a diligência da Corunha.
Como
o dia do aniversário da minha afilhada estava perto, ao nascer o novo dia, que
era o de Natal, depois de realizar as tarefas próprias da estação, decidi
passar pela sua casa para comprovar como estavam as coisas. A porta de madeira
estava fechada e tive de bater várias vezes antes que me abrissem. Quando falei
com o meu tio José e perguntei pela minha afilhada, a resposta e tom de voz não
deixaram lugar a dúvidas. Parecia que a rapariga tinha desmelhorado muito na
última noite e que estavam começando a ficar sem esperanças. Por essa razão
entrei para vê-la. Como conhecia bem a casa não tive problemas para dirigir-me
ao seu quarto, que fica no andar superior, ainda que antes estivemos
conversando um bocado à lareira, matando a fome com um pouco de queijo e pão e
bebendo um copo de vinho do país.
Quando comprovei o estado em se encontrava a rapariga, o meu coração
sofreu uma grande impressão. Tinha dezessete anos, ainda na flor da sua
juventude, e parecia que lhe caíram em cima todas as calamidades do mundo. E
dizer que não havia um mês tínhamos ido com ela à feira da Foca Velha, em
Sigueiro, onde ainda se encontrava perfeitamente de saúde! Era tal a sua
palidez que parecia meio morta. Os seus pais comentaram-me que já tinham
chamado o médico, e que viera o sábado à noite (havia três dias). Segundo me
informaram, o médico disse-lhes que a sua debilidade e consequente palidez
poderia ter-se devido a uma perda de sangue, como se tivesse tido uma
hemorragia muito forte nas horas prévias. Aquilo era impossível — asseguraram —
porque ainda não tinha chegado a sua época de menstruação, e a menina não tinha
saído de casa na última semana, desde que começou a pôr-se assim.
Uma
das coisas que mais me estranhou, apesar de não conhecer a medicina, foi que o
médico não soubera dar uma explicação lógica ao que tinha. E o mais curioso era
que a menina não deixava de rascar-se o dorso da mão, entre o polegar e o
indicador, onde tinha uma pequena inchação, como se a tivesse picado um
mosquito.
— É possível que a tenha picado um mosquito ou uma mosca — informou-me o seu pai. — Esta noite havia uma mosca muito grande e
negra no seu quarto quando vim vê-la, a dançar à luz da lua. Seriam duas da manhã. Como não queria fazer ruído, abri a janela e a mosca saiu voando quase
ao instante. Foi bom, porque assim não tive de fazer ruído e acordar a minha
filha. Só de manhã me dei de conta da palidez do seu rosto. E é curioso... — parou um momento, como se estiver a pensar
para si — ontem de noite quase estava bem de tudo, e mesmo chegou a levantar-se
um bocadinho. Mesmo chegamos a crer que já se estava recuperando...
— Uma mosca? É curioso! — exclamei.
E é
que um momento antes tinha visto uma mosca preta e grande pousar-se no vidro da
janela pelo lado de fora, seguramente atraída pela luz de um candeeiro que
tínhamos acendido para entrar no quarto e que agora repousava sobre a mesa de
cabeceira. Neste mês os dias eram tão curtos que quase tínhamos que estar todo
o tempo com luz artificial, mesmo agora que era dia, e isso devido às imensas
nuvens cinzentas que toldavam o céu, assombrando-o todo.
— Não obstante, se tiveres alguma
pergunta a fazer — acrescentou o meu tio — o médico ficou em vir hoje, na diligência que esta tarde sai de Santiago, e assim
poderá dar-nos razão do que está a acontecer.
Como
a manhã estava a transcorrer rapidamente e a hora do almoço estava a chegar,
despedi-me dele e da sua senhora e comentei que voltaria aquela tarde, para
observar a evolução da menina e ver se o médico nos explicava de que se tratava
aquela enfermidade. Dirigi-me ao forno, que fica quase ao lado da casa do meu
tio, para comprar um pouco de pão. O certo é que a senhora Edelmira, depois de
lhe eu pedir um molete de pão, perguntou-me que tal se encontrava a Maria...
Ainda que não tivesse interesse em que os nossos assuntos andassem em
boca da gente, como parecia que o caso era já sabido, e como a Edelmira era uma
mulher entrada em anos e com muito mundo, decidi dar-lhe umas indicações de como
tinha visto a rapariga.
— Isso é de um mal de olho — assegurou, quando rematei a explicação. — Uns anos atrás passou o mesmo ao Pepe de Barreiro, quando
era rapaz. Tinham-lhe botado o mal de olho e ninguém sabia quem fora a causa, ainda que houve quem
disse que fora por culpa de uma meiga[1].
O menino ia ficando, ia mesmo ficando... Estava comido por dentro, pálido como
um morto, e quase sem forças... Foi por isso que sua mãe o levou ao São Pedro
Mártir, em Belvis, lá em Santiago, e como a cousa se não arranjava, tiveram de
chamar a mezinheira[2] de Sigueiro, que ao final
conseguiu pôr as rodas nos seus eixos. Se tendes algum problema assim, ide à
sua procura, ainda que creio que morreu. Chamava-se Josefa Dafonte, e agora
parece-me que é a sua filha a que atende os doentes... A senhora compõe ossos e
é mezinheira, e talvez possa saber de que se trata se lhe consultais o
assunto... O que posso dizer-te é que o médico não lhe fará nada...
Ao
princípio, não quis fazer caso às palavras da senhora Edelmira. Contudo, de
volta à minha casa, ia dando-lhe voltas e voltas àquilo do mal de olho. A
verdade é que na nossa aldeia sempre que alguém tem alguma doença que os
médicos não sabem tratar, todo o mundo diz que essa pessoa tem um mal de olho.
Decidi aguardar à evolução de Maria, confiando nas medicinas que lhe tinha
receitado o médico e no repouso. Porém, quando aquela tarde voltei pela Praça
do Concelho, onde fica a padaria, entrei para falar novamente com a Edelmira e
fazer-lhe algumas perguntas que não deixavam de rondar-me a cabeça. Aguardei a
que não estivesse ninguém dentro para entrar...
— E isso do mal de olho, como se pode solucionar?
Ela
pôs cara de sabê-lo tudo, como se por dentro já aguardasse a que eu lhe fizesse
esta pergunta...
— O melhor é não termos de chegar a esse extremo, por isso eu ando sempre
com um alho na algibeira e com uma estampa da Virgem do Rosário, que é muito
milagrosa. Mas se a doença chegar finalmente, o melhor remédio é afumar o
quarto onde descansa a doente, e dizer uma oração, mas não sei se isso dará bom
resultado se não está a mezinheira diante.
— E não há outro remédio? — insisti eu.
— Se a doença não for devida a um mal de olho, mas ao feitiço de uma
bruxa, às vezes funcionam as boas ervas, uma réstia de alhos para afastar os
maus espíritos ou um dente de javali. Mas sem ver a doente é muito difícil
poder dizê-lo.
Quando cheguei à casa do meu tio, a sua mulher (que foi a que me abriu a
porta) informou-me que o médico tinha chegado e que já estava acima... Não
aguardei nem um segundo a subir as escadas, quase a correr... Mesmo assim
cheguei a tempo. O médico estava a auscultá-la e a tomar-lhe o pulso. À luz do
candeeiro as caras da doente e do médico pareceram-me sumidas uma em maior
doença e a outra em profundos pensamentos. Tivemos de aguardar uns minutos até
que o médico se ergueu e veio falar conosco.
— Está pior do que pensava ˗ confessou. — É preciso que guarde um repouso total durante
uma semana e que não faça esforços. E o mais importante, deve comer muito
para recuperar-se da perda de sangue...
— A perda de sangue? — perguntou o José. — De que está a falar?
—Sim, da perda de sangue... E não me venha
outra vez com isso de que não perdeu sangue... É a única explicação. Todos os
sintomas parecem indicar isso...
E não
deixou que ninguém discutisse com ele acerca daquele assunto... Assim e tudo, e
ainda que estive a ponto de dizê-lo, guardei aquilo do mal de olho para quando
o médico se foi embora.
O meu
tio não quis acreditar ao princípio em nada do que eu dizia, negou-se em
redondo a encarar minimamente a questão. Chegou mesmo a ser desagradável e por
isso não fiquei muito tempo na sua casa antes de apresentar as minhas desculpas
e voltar aos meus assuntos.
Dois
dias depois, à hora do pequeno almoço, e nada mais ter saído o sol de dezembro,
frio e duro, entre aquelas nuvens escuras como uma tumba, chamaram com força à
nossa porta. O menino ainda dormia, mas eu e a minha mulher estávamos já
acordados e vestidos havia tempo.
A
verdade é que não me surpreendi ao ver o rosto cansado e triste do meu tio.
— Está pior — confessou, nada mais abrirmos a porta. — Estes dois dias pareceu ir respondendo bem ao tratamento, mas hoje de
manhã parecia completamente morta. Quase nem
alentava. Tive de dar-lhe à força uns
goles de aguardente antes que começasse a alentar de novo, muito lentamente. A
minha mulher está com uma crise de nervos, e já nem sabemos que fazer... Pensei
no que me disseste e quero que venhas comigo a Sigueiro... Tenho prontos uns
cavalos... Estão aqui, à porta (e sinalou para três cavalos que estavam à
esquerda, movendo-se nervosos entre a lama).
— E por que três cavalos, se somos dois? —
perguntei.
— É por se a mezinheira decide vir conosco —
respondeu. — Não quero que ponha a desculpa de que é longe e que não quer vir a pé...
— Talvez seja o momento de falarmos com o senhor cura. Hoje vai celebrar
missa às dez da manhã — interrompi. — Talvez
o problema de Maria seja mais dessa índole que assunto para uma mezinheira.
— Já falei com ele — replicou. — Quando
lhe contei ontem os sintomas que apresentava a minha filha, decidiu passar por
casa. Aproveitou para confessá-la e para dar-nos uns conselhos... Parece que, ainda que não o diga
explicitamente, também ele tem a impressão de que há algo maléfico neste
assunto. Assegurou-me que podíamos contar com um pouco de água benta, por se
queríamos rociar o seu quarto com ela... Eu, sem hesitar, aceitei ao
instante...
— Colocaste água benta no quarto de Maria? —
perguntei eu, ainda algo incrédulo.
— Ainda não..., mas farei esta mesma noite... — confessou o meu tio. — Disse que me oferecera a água benta, mas ainda não passei pela igreja à sua procura. Iremos agora, de caminho.
Talvez a mezinheira saiba que fazer com ela... Se nos damos pressa, talvez
possamos estar de volta antes de cair a noite, tendo em conta que temos que
chegar a Sigueiro, procurar a mezinheira, convencê-la e trazê-la conosco...
Não
houve mais que falar. A verdade é que em dezembro o único trabalho no campo é o
de cuidar os animais, e disso podia ocupar-se hoje a minha mulher.
Em
realidade, chegamos de volta quando a tarde estava a cair, e isso apesar de que
Sigueiro fica bastante perto de Oroso. Só há uma longa reta de várias milhas,
acompanhada por grandes carvalheiras a ambos os lados da estrada, com uma
pequena colina que ascender ao final. Depois é tudo a descer em direção à
ponte. Demoramos mais tempo em encontrarmos a casa da mezinheira do que
supúnhamos. Sabíamos que a sua mãe se chamava Josefa Dafonte, mas ainda não
tinha morrido, era uma anciã de mais de noventa anos, que ainda conservava
algumas das qualidades que a fizeram famosa nas redondezas... Foi aí aonde nos
enviaram num princípio. O problema é que a sua filha não vivia já com ela.
Tinha-se casado havia bastantes anos com um camponês endinheirado e só muito
ocasionalmente se dedicava a prestar atenção às pessoas que lhe solicitavam
ajuda, e mesmo assim depois de muito insistir. E nós queríamos que viesse
conosco! Ao marido não lhe fez muita graça, mas como ali em Sigueiro conheciam
bem a família Brea, por assistirmos regularmente às feiras que celebram aqui às
terças-feiras, a primeira e terceira semana de cada mês, ao final acedeu a vir
conosco, ainda que tivesse que deixar por uma noite (talvez fossem mais,
segundo nos assegurou) o marido e os filhos sozinhos.
Esse
comentário da senhora Josefa — chamava-se igual que a sua mãe, daí a confusão
ao perguntarmos por ela —, foi quase clarividência. A verdade é que não ocorreu
nada aquela noite nem nas duas seguintes. Talvez fosse pelas muitas precauções
que tínhamos tomado. A senhora Josefa tinha trazido muitas ervas consigo, numa
saca grande, uma réstia de alhos, dentes de javali e de outros animais, e
aquela primeira noite tinha realizado uma pequena cerimónia no quarto de Maria.
Acendera uma pequena fogueira aos pés do leito em que ficava a rapariga e
salmodiara uma oração entre dentes enquanto o fumo cobria a menina... Não
percebi muito do que dizia, mas depois de três noites a minha afilhada
apresentava um aspecto bastante melhor do que a noite em que chegou Josefa. A
mulher do meu tio dizia que era pelos remédios que nos dera o médico e o meu
tio que era pelos da mezinheira. Talvez os dois tivessem razão, pensei eu para
mim...
Chegamos à noite do 31 de dezembro. O aniversário de Maria Teresa foi
quase animado, tendo em conta as circunstâncias... A senhora Edelmira trouxe
uma torta de amêndoa, que encomendáramos para a ocasião, e mesmo vieram vê-la
algumas amigas e alguns dos nossos familiares, entre eles a minha mulher com o
meu filho.
Quando as sombras do lusco-fusco começaram a adensar-se e a noite cobria
já a terra, Josefa chamou-nos a um lado para fazer-nos uma pequena confissão...
— Hoje é a noite de São Silvestre... Uma noite estranha na que alguns
acreditam que as bruxas se reúnem em conciliábulo... Já sabeis o dito...!
Precisamente esta noite a bruxa que tem estado atacando a rapariga tentará
fazer uma última tentativa... Se conseguir o seu propósito, Maria Teresa
morrerá e ela poderá apresentar-se esta noite perante o seu amo com uma grande
conquista. Por isso tendes que estar bem atentos. A bruxa pode entrar em casa
cruzando os ares, transformada em mosca ou em qualquer outro animal, ou
arrastar-se pelo solo convertida num rato. De qualquer maneira, devemos estar
atentos e não adormecer. O cheiro do alho e uma taça de café poderão manter-nos
acordados. Se a bruxa, apesar das nossas precauções, consegue entrar em casa, é
possível que se pouse no corpo de Maria. Só são necessários uns instantes e a
menina morrerá... Por isso devemos berrar forte nesse mesmo momento: ˗ "São Silvestre, meigas fora!" e lançarmo-nos contra ela para matá-la. No caso de que hoje não consiga entrar em casa, a menina estará
livre por agora, porque até o dia de São João a bruxa não fará uma nova
tentativa... Eu vou munir-me com um ramo de aveleira, que, segundo consta, é a
melhor defesa contra as bruxas.
A
noite transcorreu como tinha dito Josefa. Estávamos os três sentados, no quarto
da menina, que parecia ter um sono agitado. As horas progrediam no relógio que
se encontra no dormitório do meu tio, no andar de abaixo, e chegavam apagadas
aos nossos ouvidos. Chegavam apagadas, mesmo assim ia-se aproximando lentamente
a meia-noite do dia de São Silvestre...
Ocorreu o que nos tinha avisado Josefa. Embora estivéssemos envoltos em
sombra, tivéramos a precaução de termos acendida uma lanterna furta-fogo,
dessas que podem dar luz no momento desejado... O cheiro era suave, mas ainda
assim bastante perceptível.
Quando o relógio marcou onze horas e meia tentei prestar ainda uma maior
atenção. Só uns minutos depois ouvi à minha direita esse ruído característico
que fazem as moscas ao mover as asas... O ruído vinha da porta interior, que
dava ao corredor que levava ao andar de abaixo. A mosca passou roçando-me o
cabelo e se dirigiu ao leito onde Maria Teresa se agitava em sonhos... Ao
instante cessou o ruído das asas. Ainda assim a mezinheira demorou uns segundos
em dar luz à lâmpada, e esse tempo pareceu-me quase interminável. A tensão ia
subindo no meu coração e estive a ponto de berrar. Graças a Deus não tive de
aguardar por mais tempo. Quando se acendeu a luz vi a mosca pousada no pescoço
da minha afilhada. Era uma mosca grande e negra, com uma cabeça horrível de cor
verde azulada... Por um segundo tive
mesmo a impressão, no jogo de luzes e sombras da lanterna, de entrever
desenhada na parede branca do fundo, uma figura humana, escura e como
embrulhada sobre si mesma, que se debruçava sobre o corpo da menina...
Josefa e o meu tio berraram aquele "São Silvestre, meigas
fora", que tínhamos aprendido. Eu fiz o mesmo, um segundo depois.
A
mosca foi apanhada de imprevisto. Por
isso, quando ergueu o voo, pareceu ir completamente desorientada até que bateu
com a parede, voando em círculos a uns centímetros da pedra coberta de cal.
Nesse momento o ramo de aveleira foi arremessado contra a mosca, que ficou
machucada na parede. Quando a mezinheira retirou o ramo da aveleira, todos
vimos horrorizados como uma pinga de sangue vermelho escorregava pela parede de
cal, como se se tratasse da primeira pincelada de um pintor numa tela ainda não
preparada...
De
manhã a minha afilhada estava bastante melhor, e ainda que tivesse que guardar
repouso durante uns dias mais, o médico (que veio outra vez vê-la, dois dias
depois), assegurou que se encontrava perfeitamente de saúde, e que mesmo
poderia começar a dar algum passeio, quando assim o quiser.
O
mais estranho é que, segundo me disse a senhora Edelmira, na aldeia de
Pinheiro, na paróquia vizinha de Santo Tomás de Vila-Romaris, foi encontrada
morta ao dia seguinte e ainda no seu leito, uma mulher entrada em anos, de quem
muitos asseguravam que se tratava de uma meiga-chuchona[3]
e que sempre gostara de se intrometer em assuntos que não eram os seus, sem
deixar de falar mal das pessoas, metendo cizânias entre amigos e fazendo com
que toda a vizinhança andasse pelejada. Há também os que dizem que ela fora a
que causara o mal de Pepe de Barreiros, e que se vira misturada na morte de
duas crianças, uma de Rial e a outra de Castro, na sua mesma paróquia.
Josefa, a mezinheira, não quis cobrar-nos nada, apesar de lhe
insistirmos nisso, e só aceitou levar para os seus dois filhos umas guloseimas
que lhe preparou a senhora Edelmira e a minha mulher.
Na
nossa família, quando se fala do caso, e sempre que passamos pela ponte de Sigueiro,
há sempre alguém que lhe conta o conto às crianças, como eu faço agora contigo,
meu filho.
Ângelo Brea,
escritor galego nascido em Santiago de Compostela, é membro da Academia Galega
da Língua Portuguesa e professor de Língua e Literatura Galegas. Como se vê do
conto acima publicado, Brea escreve em galego, codialeto do português,
empregando as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. É
autor, dentre outras obras, das coletâneas Lembranças da Terra (Através,
Santiago de Compostela, 2014) e Nos vales do Máriner e outros relatos (Improset,
Conunha, 2021), com apresentação de Paulo Soriano.
Fermoso. Eu amei
ResponderExcluirEu também, Sílvia!
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