TRÊS SOMBRAS NA ESTRADA - Conto de Terror - Ângelo Brea
TRÊS
SOMBRAS NA ESTRADA
Ângelo
Brea
Esse
ano estava a trabalhar em Vimianço, a formosa vila onde senhoreia o castelo que
os irmandinhos derrubaram na rebelião de 1467 e que o arcebispo Fonseca
reconstruíra poucos anos depois, passando logo à nobre família dos Moscoso de
Altamira.
Vimianço
é uma vila de interesse e a terra que a circunda é agradável e com gentes
trabalhadoras e de bom coração. Ali passei uns anos que sempre lembro com
saudade, já que pude conhecer bem os rapazes e as raparigas que iam estudar ao
meu Liceu.
Enquanto
trabalhava ali, tinha alugado um andar em Baio, onde me fiz cliente dos locais
dos arredores, almoçando quase sempre no restaurante Casa Cruz, onde
fazem uma comida caseira de fundas raízes galegas.
Como
tinha família em Santiago, vinha muitas vezes à cidade pela estrada que une
Baio e Santa Comba, ou bem pela que vai desde Vimianço a Negreira. As duas
estradas acabavam de ser arranjadas e conduzia indistintamente por uma ou por
outra, dependendo das circunstâncias.
Quase
sempre voltava de dia, à exceção de que tivesse algum claustro ou alguma
reunião de avaliação, que se sabe quando começam, mas nunca quando acabam.
Lembro
que foi ao remate da primeira avaliação, no mês de dezembro, tão próximas as
férias de Natal que todos — professores e alunos — estávamos desejando
desfrutar, quando me aconteceu este estranho caso.
Esse
dia saíra de Vimianço quase às nove da noite (nessa época do inverno anoitece
sobre as seis e meia da tarde) e passei por Baio, que está a menos de dez
quilómetros, para apanhar uns livros. Depois dirigi-me a Santa Comba, passando
por Sás. Desde Santa Comba é já tudo reto para Santiago, percorrendo algumas
aldeias dispersas. Na aldeia de Páramos muitas vezes fazia uma paragem para apanhar
gasolina, como ia ser esta vez, já que a luz da reserva acabava de acender-se
ao sair da aldeia de Suevos.
A
aldeia de Páramos fica numa descida pronunciada que conta com uma curva
bastante perigosa para a esquerda. Nessa zona há numerosos acidentes e quase
sempre se veem restos de vidro no asfalto.
Ia
bastante devagar enquanto descia por aquela encosta pronunciada, pelo que tive
tempo de entreter-me observando os acostamentos da estrada. Foi então que
observei algo estranho. Havia três rapazes que, a um lado, como a dez metros à
minha direita, estavam a caminhar paralelamente à estrada entre as árvores da
floresta.
Não
pareciam pessoas normais, já que uma estranha luminosidade os envolvia. Quando
os ultrapassei, olhei pelo espelho retrovisor para eles, mas já não os pude ver
entre as árvores. Antes de chegar à curva, parei o carro a um lado e, sem sair
à estrada, escrutei quase durante um minuto os arredores, mas não vi mais nada.
Só estava acesa uma luz na casa que se encontra quase na curva, mas ao lado
direito da estrada.
Fiquei
tão surpreendido que mesmo me esqueci de apanhar gasolina até chegar a
Santiago. Não podia dizer-lhe a ninguém o que tinha visto, porque se tivesse de
jurá-lo, asseguraria que o que vira eram fantasmas.
Ao
dia seguinte, depois de trabalhar, regressei à aldeia e ali parei um bocado na
bomba de gasolina. Falamos um bocado, enquanto comprava o jornal, e arrisquei
uma pergunta:
–
Por certo, sabe se aconteceu algum acidente na curva? É que sempre que passo
vejo vidros...
O
homem olhou para mim com a vista cansada e respondeu quase sem ganas:
–
Pois é... No ano passado, quase nesta altura, houve um acidente bastante grave.
Creio que morreram três rapazes que estudavam em Santa Comba...
E, baixando a voz, acrescentou:
–
Saiu uma reportagem sobre o caso n’A Voz. Veio por aqui um periodista
para entrevistar toda a gente, mas eu, claro, não tinha nada que contar, porque
o acidente foi de madrugada e a bomba estava encerrada.
No
outro dia, quando regressei de trabalhar, parei depois da curva de Páramos, num
bar que se encontra antes do posto de gasolina, de nome “O moleiro”, mesmo à
beira da pista asfaltada que conduz às aldeias de Cabanas e de Lanhas, e pela
que se vai a Negreira. Estava na parte baixa de uma casa de dois andares, com
uma fachada revestida de painéis de granito rosa polido.
O
bar parecia-me um bom sítio para perguntar, já que é costume que ali se juntem
os homens da aldeia para comentar as notícias. Era óbvio que o acidente deve
ter sido ser um acontecimento bem conhecido no lugar e que se deve ter falado
muito sobre ele.
O
interior do bar tinha forma retangular. O balcão estava à esquerda, e um homem
já idoso, de uns sessenta anos, quase careca, atendia os clientes, embora agora
estivesse sozinho.
Pedi
um chá com leite e apanhei o jornal para fazer que lia. Quando o dono me serviu
o chá olhei para ele, e, como quem falava por falar, disse:
–
Deve ter tido algum acidente aí atrás na curva. Está tudo cheio de restos de um
carro.
–
Sim, foi o outro dia... É que conduzem como loucos – repostou.
–
Algum dia vai haver uma desgraça – disse eu, candidamente, aguardando que me
contasse o que sabia do acidente do ano passado.
O
homem ficou parado, a olhar para mim, e acrescentou:
–
Pois no ano passado houve ali um acidente gravíssimo. Morreram três rapazes e
uma rapariga que ia com eles ficou gravemente ferida.
–
Não me diga! – exclamei, fazendo-me o surpreendido.
–
Pois sim. Foi por estas mesmas datas, porque dois dias depois foi o sorteio da
lotaria de Natal. Lembro-me bem disso.
E continuou dando alguns detalhes truculentos
do caso. Eu estava a pensar que, se o acidente tivesse sido o dia 18 de
dezembro, curiosamente coincidia com a noite que tinha visto aquelas três
sombras na estrada, como a celebrar um trágico aniversário...
–
Suponho que a família que vive ali na curva não terá passado bem, sabendo que
tão perto delas morreram três pessoas – interrompi.
–
Isso parece – aceitou ele. – Ademais, ultimamente estão a falar de ir viver em
Santiago, com a filha, que está a estudar na Universidade.
–
De verdade? Aconteceu-lhes algo mais? Não me diga que têm medo de viver ali? –
perguntei, muito interessado.
–
Parece que estão cansados de atender os feridos e que haja acidentes quase
todas as semanas – comentou.
–
Eu faria o mesmo – assenti. – Suponho que eles seriam os primeiros em atender
os feridos daquele acidente dos três mortos, verdade?
–
Acho que sim – respondeu. – E foi algo que nunca esquecerão. O velho veio por
aqui mais de uma vez, e não o vejo muito animado desde esse momento.
E depois acrescentou, como lembrando de
repente algo importante de que se tinha esquecido:
–
Por certo, saiu uma reportagem sobre o acidente n’A Voz. Fizeram uma entrevista
aos velhos, tanto a ele como a ela... Creio que a guardei por algum sítio... –
mas não fez menção de ir procurar o jornal.
Eu
paguei a conta e decidi que já me tinha inteirado de coisas suficientes para
acalmar o meu interesse, mas, ao sair do bar, decidi visitar o lugar de que
tínhamos estado falando. Fui caminhando pela margem esquerda da estrada em
direção à curva e à casa daqueles dois velhos que atenderam os feridos do
acidente. Viviam numa leve encosta, já que os campos desciam em direção a
Cabanas num lento, mas constante declive. O terreno da sua propriedade tinha
uma inclinação de vários graus e a casa estava afastada uns metros da estrada,
à beira da floresta. A finca estava toda coberta de relva sem aparar e num
cercado viam-se várias ovelhas a comer de uma manjedoura de madeira na que
alguém tinha depositado erva fresca. Havia também um pequeno espaço onde
crescia algo de milho.
Ao
aproximar-me mais, pude divisar melhor todo o vale de Cabanas, completamente
verde, com campos de relva e extensas florestas que cobriam as suaves colinas
que apareciam a ambos os lados. Era uma formosa paisagem na qual quase nunca se
repara ao viajar de carro. Observei um caminho asfaltado (que não se via desde
a estrada) que a rodeava pela parte superior para permitir o passo dos carros.
Ultrapassei
a casa e cheguei ao lugar onde tinha divisado aquelas três estranhas sombras.
Apesar do tempo que tinha passado, ainda se viam no encostamento da estrada
alguns restos do acidente. Havia vidros rotos e pedaços da carroçaria. As peças
metálicas eram todas de cor vermelha.
Decidi
entrar na floresta pela minha segurança, porque alguns carros baixavam a íngreme
encosta e não queria que me levassem por diante. Crescia ali uma pequena
plantação de eucaliptos e alguns pinheiros isolados. Antes da curva, uma
vedação metálica quebrada protegia a zona. Um pinheiro estava colocado à frente
dela e nele viam-se os vestígios de várias colisões. Apresentava sinais de um
forte impacto lateral, mas a árvore não se tinha partido apesar do golpe,
devido à consistência do seu enorme tronco.
Estive observando o chão, coberto da caruma
dos pinheiros. Havia restos da carroçaria e, o que mais me impressionou, um
sapato de mulher manchado ainda de sangue (que não ousei tocar).
Já tinha bastante com aquilo, pelo que decidi
que devia ler, fosse como fosse, aquele famoso artigo do jornal.
Apanhei
outra vez o carro, que tinha deixado no estacionamento do bar, e voltei a
Santiago. Tinha tempo aquela tarde e fui à Biblioteca Geral da Universidade
para tirar uma cópia do texto do jornal.
Quando
cheguei à Biblioteca, que está muito próxima à catedral, na Praça de Fonseca,
subi à “sala de investigadores”. Havia seis pessoas consultando revistas e
livros antigos. Uma delas consultava no computador o registo de publicações,
procurando algum texto de interesse.
Eu
sabia bem ao que ia, pelo que solicitei ao bibliotecário (um homem de uns 45 anos,
que estava a ler o romance de Manuel Rivas O lápis do carpinteiro), os
exemplares d’A Voz dos últimos dez dias do ano passado.
Só
demoraram uns cinco minutos em trazer-me uma pasta volumosa de cor verde escura
que levava na lombada o título: “LA VOZ DE GALICIA. 16-31 DE DEZEMBRO”. Mais
abaixo aparecia também a menção do ano.
A reportagem que procurava fora publicada
em 20 de dezembro. Tratava-se de um relato dos feitos assinado por um
jornalista com as siglas J. L. (Redação - Santiago). Ia escrita a quatro colunas e incluía também
uma foto (a preto e branco) de como tinha ficado o carro completamente
destroçado.
O artigo começava assim:
TRÊS
MORTOS NO ACIDENTE DE PÁRAMOS
Uma
ferida grave encontra-se no Hospital Clínico de Santiago
Três
dias de luto oficial na vila de Santa Comba
“Na passada madrugada do 18 ao 19 deste
mês de dezembro, uns minutos antes das duas da madrugada, na aldeia corunhesa
de Páramos, no km. 21 da estrada comarcal 545 que une Santiago com Santa Comba,
produziu-se um grave acidente no qual faleceram três jovens, todos eles da vila
de Santa Comba. Eram Juan Carlos Amigo Devesa, de 19 anos, António Míguez
Hernández, de 18 e Pedro Fernández Paes, também de 18. No acidente ficou ferida
a rapariga Luísa Santos Devesa, noiva do primeiro dos falecidos, que era também
o condutor do veículo sinistrado.
O acidente aconteceu quando, por causas
ainda desconhecidas, o veículo que conduzia Juan Carlos Amigo saiu da via pela
margem direita, golpeando-se lateralmente contra uma árvore de grandes
dimensões que quase partiu o carro à metade. O tramo em questão é reto, embora
numa abrupta encosta, pelo que se supõe que o condutor ficou adormecido ou
sofreu um despiste, já que não se encontraram sinais de travação no asfalto.
Num primeiro momento, devido ao
estrondo do acidente, os feridos foram atendidos pelo casal dos Ferreiro, que
vive numa casa muito próxima ao lugar.
Quando os dois anciãos chegaram à cena do
acidente, já não puderam fazer nada pelo condutor, que estava delirando e
pronunciava frases incoerentes antes de morrer, ainda que observassem que a
rapariga, que ia no assento do copiloto, ainda estava viva. A mulher regressou
rapidamente à casa para pedir uma ambulância, enquanto o seu marido atendia os
feridos.
Segundo as declarações deste, a primeira
ambulância chegou aos 15 minutos, procedente do Hospital Clínico de Santiago, e
uma segunda ambulância chegou dois minutos depois. No lugar já se encontrava
uma dotação da Guarda Civil, que acabava de chegar.
O senhor Ferreiro, enquanto aguardava
pelas ambulâncias, prestou ajuda aos dois rapazes que iam nos assentos
traseiros, mas, infelizmente, um deles morreu nos seus braços, enquanto o outro
faleceu na ambulância, caminho do hospital. Segundo a sua versão, nenhum destes
dois falecidos levava, quando ele chegou, posto o cinto de segurança. (No seu
último informe a Direção Geral de Tráfico considera que o cinto de segurança
podia ter salvado a vida de mais dos 40 por cento dos mortos por acidentes de
tráfico na nossa Comunidade Autónoma).
Unicamente a rapariga chegou com vida ao
Hospital, onde ficou ingressada na Unidade de Cuidados Intensivos, com
prognóstico “muito grave”, embora os médicos não temam já pela sua vida.
O senhor Ferreiro e a sua mulher tiveram
de ser assistidos pelos serviços de urgência devido às terríveis cenas às que
assistiram. A sua filha, que estuda em Santiago, encontra-se com eles nestes
momentos, tentando ajudar-lhes a superar a profunda impressão.
A câmara municipal de Santa Comba, de onde
eram os três falecidos, decretou três dias de luto oficial, ondeando desde
então as bandeiras a meio pau.
O enterro dos três adolescentes será o
próximo sábado na igreja paroquial de São Pedro de Santa Comba. Espera-se que
assista uma grande quantidade de pessoas, já que as famílias dos falecidos são
muito conhecidas. (...)”
O artigo continuava ainda mais um
bocadinho, aportavam alguns dados que já não me interessavam. Decidi tirar uma
cópia para poder reler o artigo as vezes que fossem necessárias. Ali mesmo, na
sala, há uma fotocopiadora para uso dos investigadores, que utilizei para a
ocasião.
Continuei lendo atentamente os jornais,
mas não encontrei a entrevista com o casal. Talvez tivesse sido publicada algo
depois, já que na notícia se dizia que eles estavam a tratamento pelo trauma
recebido.
Quando deixei a Biblioteca regressei
andando à minha casa, mas não podia deixar de pensar no caso e naquelas três
sombras que vira desde a estrada...
Como
no dia seguinte não devia trabalhar, já que começara a desfrutar as minhas
férias de Natal, decidi ir até Páramos para falar com o senhor Ferreiro. Tinha
um grande desejo de falar com ele acerca das circunstâncias do acidente e,
sobretudo, saber se tinha notado alguma coisa estranha desde aquela data.
Quando
cheguei a Páramos, estacionei o meu carro novamente no bar e segui a pé. Na
casa dos Ferreiro não havia ninguém e apesar de que insisti várias vezes
pareceu-me que a casa estava vazia. Os animais que vira o outro dia já não
estavam e a casa tinha todas as janelas fechadas.
Supus
que teriam ido viver com a filha a Santiago. Eu faria o mesmo se estiver no seu
caso. Mas aquilo era estranho e me parecia óbvio que havia algo fora do comum
naquele caso.
Decidi
deixar o assunto durante algum tempo. Contudo, nos meses seguintes, tive sempre
a precaução de não voltar nunca pela estrada de Páramos quando devia regressar
de noite a Santiago.
Quase
me esquecera de tudo até que, uns meses depois, quando faltava pouco para a
Semana Santa, li no jornal uma notícia que me deixou frio. Esta vez era uma
notícia colocada a um canto na página noticiosa:
“UM
MOTOCICLISTA MORRE EM PÁRAMOS”
“Na noite de ontem o motociclista Juan
Espinheira Castro, de 34 anos e vizinho de Santiago sofreu um acidente quando
regressava à nossa cidade, depois de assistir a um concerto essa mesma noite em
Camarinhas. Ainda não se conhecem as circunstâncias do caso, já que a Guarda
Civil está a investigar o acidente.
Curiosamente, no mesmo lugar, que é
considerado um ponto preto da comarcal 545, aconteceram vários acidentes nos
últimos anos. O mais grave aconteceu há um ano, quando três jovens de Santa
Comba perderam a vida no mesmo lugar que no acidente da noite passada”.
A
notícia não ia acompanhada, esta vez, de uma foto e a sua extensão era muito
mais reduzida, a uma só coluna.
Outra
vez um acidente de madrugada no mesmo ponto era demasiado para ser uma simples
coincidência. O jornal não apontava mais que aqueles simples dados, pelo que
fiquei intrigado. Aquela tarde, ao regressar do trabalho, reparei nos sinais do
acidente. Havia uma marca de travagem sinalada no asfalto, paralela à linha que
indicava o centro da estrada, mas, curiosamente, a marca ia derivando na parte
final face à margem direita, morrendo na depressão do acostamento da estrada.
Outra
vez repeti o passeio de quatro meses antes, procurando na floresta algum resto
do acidente. Chamou-me a atenção que o motorista se tivesse estrelado contra o
mesmo pinheiro que os três adolescentes. Via-se a marca do golpe da motocicleta
num ponto mais baixo, junto com pedaços do tubo de escape, o farol e um espelho
roto.
Arrepiou-me
observar um charco de sangue calhado, que manchava o chão, mesmo ao lado do
pinheiro e que cobria as folhas mortas.
Aquele
lugar tinha algo de macabro. Quatro pessoas tinham morrido no mesmo ponto num
espaço de tempo demasiado curto e era óbvio que algo fora do comum rodeara os acidentes.
Se tivesse sido um homem mais valente do que sou, teria regressado alguma noite
para tentar ver outra vez outra vez aquelas sombras. Talvez agora fossem quatro
e não três...
Não
sabia que fazer. Talvez pudesse pôr-me em contato com alguma sociedade
ocultista para que investigassem mais o sucesso, talvez instalar alguma câmara
ou realizar alguma gravação...
Ou,
o que cria melhor, esquecer-me de tudo antes de ser mais afetado do que já
estava.
Tinha
tido a precaução de levar a minha câmera digital e assim pude tirar fotos de
tudo que me chamou a atenção. Comecei pelos sinais de pneus na estrada. Também
tirei fotos do charco de sangue calhado, dos fetos manchados, do solo coberto
de folhas mortas, dos restos da motocicleta e da floresta que se encontra mais
atrás.
Aquela
tarde assisti, como um familiar ou como um amigo mais, ao enterro do falecido.
Foi fácil saber o lugar em que se ia celebrar, pois li no jornal uma
participação com o nome do morto e o lugar da missa pela sua alma: a paróquia
santiaguesa de São Miguel. Curiosamente essa era a paróquia onde eu tinha sido
batizado, tão próxima ao mosteiro de São Martinho Pinário, dentro do recinto
histórico da cidade.
A
igreja de São Miguel estava cheia de pessoas que assistiam ao enterro. Vi as
coroas de flores, os rostos chorosos dos familiares, os abraços dos amigos e
ouvi conversas feitas em voz baixa de pessoas desconhecidas...
Tive
o cuidado de ter os ouvidos atentos ao que se dizia, mas não encontrei mais
pistas que as que já conhecia sobre o acidente.
Também
participei no cortejo fúnebre até ao cemitério de Boisaca, e ali aguardei até
que a caixa desceu à cova e os coveiros cobriram o oco no que repousava o
féretro com três peças quadradas de formigão, que selaram com cimento fresco,
sobre as que colocaram um monte de coroas e de flores.
Acho
que fui o último em voltar a casa e deixar o lugar. Quando me fui embora, o Sol
ia descendo por detrás do monte Pedroso, num pôr do sol avermelhado, que
pressagiava bom tempo para o dia de manhã.
Quando
cheguei ao meu lar, decidi transferir as fotos da câmara para o meu computador
pessoal. Preparei a câmara e liguei o cabo ao computador, pelo que
automaticamente as fotos foram descarregando-se uma a uma.
Deixei
que o trabalho se fosse realizando enquanto eu ia à cozinha a beber um copo de
água. Ao voltar, o processo tinha finalizado, pelo que comecei a ver as fotos
que tirara aquela manhã. Não observei nada de estranho até que uma das fotos me
chamou vivamente a atenção. O que vi na pantalha encheu-me o coração de um
horror indescritível. Nela tinha fotografado o charco de sangue e o pinheiro
com as marcas dos acidentes, mas o que saía na foto eram as sombras de três
figuras que se situavam à direita da árvore e de um rosto que sorria com um
esgar de burla ao lado esquerdo. Era o mesmo rosto do homem que acabavam de
soterrar. As figuras pareciam manchas de água, porque a luz passava por elas
como se fossem simples espectros, desenhando-se os contornos mais fortes.
Fiquei
paralisado e sem poder afastar a vista da terrível imagem.
Só
ouvia como o meu coração batia com força na caixa do peito e senti como um frio
arrepio assolava o meu corpo.
Perdi
momentaneamente a consciência de mim mesmo. Quando recobrei as forças, a Lua ia
alta no horizonte e as sombras da noite enchiam as ruas da cidade.
Agora
já não volto nunca pela estrada de Páramos, nem de dia nem de noite.
Não quero por nenhuma circunstância que o meu nome apareça algum dia numa pequena notícia a um canto na página do jornal.
uma bela história, mas eu estava com muito medo. eu amei
ResponderExcluirSem dúvida, uma ótima história, Sílvia. Obrigados por nos escrever!!!!!
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