SANTA ADORATA - Conto Clássico Fúnebre - Guillaume Apollinaire
SANTA ADORATA
Guillaume Apollinaire
(1880 – 1918)
Tradução de Paulo Soriano
Para Fernando
Molina
Certa
feita, visitei a igrejinha de Szepeny, na Hungria, e lá me mostraram um
relicário muito venerado.
—
Ele contém o corpo de Santa Adorata — disse-me o guia. — Já se passaram quase
sessenta anos da descoberta do túmulo, perto de onde estamos. Não há dúvida de
que a santa foi martirizada nos primórdios do cristianismo, quando da ocupação
romana. Era a época da evangelização de Szepeny, realizada pelo diácono
Marcelino, que assistira à crucificação de São Pedro.
“Com
toda a probabilidade, Santa Adorata foi convertida pelo do diácono e, após o
martírio, os padres romanos sepultaram os seus despojos. Acredita-se que
Adorata seja apenas a tradução latina de um nome pagão, pois não se crê que ela
tenha recebido outro batismo que não o do sangue. Tal nome não suscita ideias
cristãs; contudo, a boa conservação do corpo, que se achava intacto depois de
tantos séculos sob a terra, mostrava, suficientemente, que era o de uma das
eleitas de Deus. Em meio à multidão de virgens, ela cantava, no paraíso, a
glória divina. E, por fim, há dez anos, Roma canonizou a Santa Adorata”.
Distraidamente,
ouvi aquelas explicações. Santa Adorata não despertou deveras o meu interesse.
A minha atenção voltou-se, quando eu já estava a deixar a igreja, para um
profundo suspiro, que se esvanecia ao meu lado. Quem o exalava era um velhinho,
vestido elegantemente. Amparado numa bengala de cabo de coral, olhava fixamente
para o relicário.
*
Deixei
a igreja e o velhinho saiu atrás de mim. Voltei-me para ver, novamente, aquela
figura elegante e antiquada. Ele sorriu para mim. Eu o cumprimentei.
—
O senhor acredita mesmo nas explicações que lhe foram dadas pelo sacristão? —
ele finalmente me perguntou, em francês, onde os erres rolavam à maneira
húngara.
—
Meu Deus! — respondi. — Não tenho qualquer opinião sobre essas questões
devotas.
Ele
prosseguiu:
—
O senhor está apenas de passagem e há muito tempo que eu desejo revelar, a
alguém, a verdade de tudo isso! Disponho-me a revelá-la ao senhor, sob a
condição de que não a conte a ninguém neste país.
Despertada
minha curiosidade, prometi cumprir aquela condição.
—
Na verdade, senhor — disse-me o velhinho —, Santa Adorata era a minha namorada.
*
Dei
um passo para trás, pensando que lidava com um louco. O meu espanto fê-lo
sorrir, enquanto me dizia com voz ligeiramente trêmula:
—
Não estou louco, senhor. Disse-lhe a verdade: Santa Adorata era minha amada!
“O
que eu disse a ela? Disse-lhe que, se ela quisesse, eu me casaria com ela!
“Eu
tinha dezenove anos quando a conheci. Hoje tenho mais de oitenta anos e jamais
amei outra mulher.
“Eu
era filho de um rico escudeiro de Szepeny. Fazia medicina. E a árdua missão me
exauriu a tal ponto que os médicos insistiram a que eu repousasse e mudasse de
ares numa viagem.
“Eu
fui à Itália. Foi em Pisa que conheci aquela a quem imediatamente entreguei a
minha vida. Ela me seguiu até Roma, até Nápoles. Aquela foi uma viagem na qual
o amor infundia beleza nos lugares visitados... Subimos a Gênova. Eu estava
pensando em trazê-la para cá, para a Hungria. Tinha em mente apresentá-la aos
meus pais e casar-me com ela... Mas, numa certa manhã, eu a encontrei morta, ao
meu lado..."
*
Por
um instante, o velho homem interrompeu a sua história. Quando a retomou, sua
voz tremia ainda mais, e a tal ponto que eu mal a ouvia.
*
“—
... então, consegui esconder a morte de minha amada das pessoas do hotel.
Contudo, para fazê-lo, empreguei as artimanhas típicas de um assassino. E,
quando penso em tudo isso, ainda hoje estremeço. As pessoas não suspeitaram de
crime algum, e acreditavam que a minha companheira saíra a passeio, bem
cedinho, pela manhã.
“Não
vou lhe contar os detalhes daquelas horas terríveis, passadas com o corpo, que
eu havia encerrado num baú. Em síntese, eu fora tão habilidoso que a operação
de embalsamamento me passou despercebida. As idas e vindas — o grande número de
viajantes num grande hotel — dão-nos uma relativa liberdade, uma impessoalidade
que, naquelas circunstâncias, me foi muito útil.
“Depois
veio a viagem e as dificuldades impostas pela alfândega. Mas eu pude
superá-las, sem quaisquer incidentes. É uma história milagrosa, senhor!... E
quando voltei para casa, eu estava magro, lívido, irreconhecível.
“De
passagem por Viena, eu comprara, num antiquário, um sarcófago de pedra,
originário sabe Deus de qual famosa coleção. Em casa, deixavam-me fazer o que
eu queria, sem preocupações nenhumas com as minhas intenções; e nem o peso ou o
volume da bagagem trazida da Itália surpreenderam quem quer que seja.
"Eu
mesmo gravei a inscrição ADORATA e uma cruz no sarcófago. Nele, eu mergulhei,
envolto em bandagens, o corpo da minha adorada...
“Certa
noite, num esforço insano, transportei o corpo de minha adorada a um campo
vizinho, a fim de sepultá-lo num local que só eu conhecia. E, sozinho, eu ia,
todos os dias, rezar por ela.
*
“Passou-se
um ano... Certa feita, tive que partir para Budapeste... E qual não foi o meu
desespero quando voltei! Depois de dois anos, retornei e vi que uma fábrica
havia sido construída no local onde eu havia enterrado aquele tesouro. O
tesouro que eu amava mais que a minha própria vida!...
"Quase
enlouquecido, pensava em me matar. À noite, contudo, o padre, tendo-nos
visitado, contou-nos como, enquanto escavavam o campo lindeiro, para lançar as
fundações da nova fábrica, encontraram o sarcófago de uma mártir cristã da
época romana, de nome Adorata, e que este precioso relicário havia sido
transportado para a modesta igreja da aldeia.
“A
princípio, eu estive a ponto de revelar ao padre aquele erro. Todavia, mudei de
ideia, pois considerei que, na igreja, eu teria, sempre que quisesse, à vista,
o meu tesouro.
“O
meu amor me dizia que a Adorada não era indigna das devotas honras que lhe eram
prestadas. E, ainda hoje, considero-a digna da veneração, pela sua imensa
beleza, pela sua graça única e pelo profundo amor que, talvez, a tenha
conduzido à morte. Além disso, ela era bondosa, gentil e piedosa, e, se não
tivesse morrido, eu a teria desposado.
“Deixei
os acontecimentos seguirem seu curso e meu amor se transformou em devoção.
“Aquela
a quem tanto amei foi declarada venerável. Depois, foi beatificada e, cinquenta
anos depois da descoberta do seu corpo, foi canonizada. Fui a Roma assistir à
cerimônia. Foi o espetáculo mais belo a que já pude assistir!
“Através
desta canonização, meu amor penetrou o Céu. Fui feliz como um anjo no paraíso e
logo voltei para cá, cheio da felicidade mais sublime e estranha do mundo, para
rezar diante do altar de Santa Adorata...”
Com
os olhos marejados, o velhinho elegantemente vestido afastou-se, batendo no
chão com a bengala de cabo de coral, e repetindo, repetindo:
—Santa
Adorata!... Santa Adorata!
barão, aqui é o Roger, arquiduque, vou ler este conto. O título me chamou atenção por ser lindo! Esse Apolinaire é um gênio do conto, pena não ser tão famoso mas vai ficar!
ResponderExcluiracabei de ler o conto, Barão. Esse autor merece um livro, muito bom! Roger.
ResponderExcluiresta foto que ilustra o conto é sensacional, que mulher linda ! Os mortos parecem que estão dormindo e sonhando, é o sono eterno...Ass. Rogério
ResponderExcluir