NO FUNDO DO ABISMO - Conto Cruel - Jean Ribot
NO FUNDO DO
ABISMO
Jean Ribot
(Início do séc. XX)
—
Morreu... O pobre Lescot morreu arruinado!...
—E sem diamantes, os famosos diamantes do
Cabo?
—
Perdidos...
—
Uma mulher?
—
Sim, a dama de espadas.
No
clube, perguntas e respostas esfuziavam em torno do Jornalista Martigues, que
acabava de espalhar a novidade sensacional.
—
Mas, então — recomeçou um dos presentes —, era verdadeiro o tal conto das
"Mil e uma Noites", o tesouro de muitos milhões achado no fundo de um
abismo?
—
No ventre de um cavalo!
—
Tudo o que há de mais verdadeiro. Vou transmitir-lhes a aventura, exatamente
como a ouvi do próprio Lescot, numa noite em que o uísque o exaltava. É como se
vos falasse ele mesmo. A história dos diamantes é da mais absoluta realidade. Apesar
de muito simples, daria, explorada pelo gênio de Hoffmann ou Poe, matéria farta
para um admirável conto fantástico, para uma narração impressionante.
“Na
guerra do Transvaal, a de 1900 — contou-me o morto —, eu me achava na colônia
do Cabo, dirigindo uma empresa de comunicações telegráficas subvencionada pela
Inglaterra. Como sabes, sou inglês pelo lado materno. Nas horas vagas, redigia
ainda um jornal anglófilo, em que eram ardentemente defendidos os interesses
dos caçadores de ouro e diamantes. Trabalhava, já se vê, "pro domo
mea", uma vez que também pertencia a alguns sindicatos que exploravam o gênero...
“Os
boers, pessoas extremamente rigorosas, dominados por um puritanismo
intransigente, não pareciam sentir muito prazer com a minha estadia naquelas
plagas. Embora eu pertencesse a um país neutral, suspeitavam eles — e não sem
razão — do meu papel ambíguo e, temendo como temiam a rapinagem dos
aventureiros internacionais que pretendiam invadir-lhes o Eldorado magnífico,
fizeram-me passar às vezes momentos amargos.
“Então
era eu bem moço, cheio de ardor, e o meu ofício de plumitivo me parecia
tedioso. Assim, desde os primeiros tiros de canhão, fechei o escritório, coloquei
na porta um cartaz declarando que o jornal suspendera a publicação, e atirei-me
a outras empresas mais movimentadas. Uma destas foi a criação de um corpo de voluntários,
formado por antigos mineiros, rapazes fortes e desempenados. A intendência inglesa
nos forneceu armas e cavalos, e pusemo-nos a caminho. A minha legião fora
cognominada legião estrangeira, porque, como em todas as legiões, nela se
falavam todas as línguas. O soldo era escasso, mas havia a perspectiva do saque
após a vitória. Assim, valia a pena arriscar-se a pele. Alguns meses mais
tarde, a nossa tropa, reduzida de uma boa quarta parte, operava nos
desfiladeiros do Drakenberg, grande maciço montanhoso da África austral.
“Ha
cinco dias que seguíamos as pegadas de um bando bôer, composto de uma centena
de cavaleiros e cuja captura devia enriquecer-nos de pronto. De acordo com as
nossas indagações, o bando trazia a Pretória um lote de diamantes avaliado em vários
milhões e oferecido a Tio Sam por um patriota holandês.
“Os
boers, de ordinário tão belicosos e, além disso, mais numerosos do que
nós, pareciam recusar o combate: uma prova a mais de que o que eles conduziam
era preciosíssimo, e esta constatação inflamava a cobiça dos meus malandrins.
Era, pois, preciso acabar com isto... E foi por esse motivo que, numa tarde de junho
— inverno nesse hemisfério — deixando os nossos fogos acesos, partimos em plena
noite.
“Tratava-se
de, por uma escalada noturna, tomar a dianteira do inimigo e ir esperá-lo ao
alto do desfiladeiro, no lugar chamado Poço do Dragão. Já outrora eu tinha
perambulado por aquelas paragens, e conhecia bem o sítio que a ele conduziam
atalhos de se quebrar as pernas cem vezes. Chuvisca e a empresa foi rude. Enfim,
ao amanhecer, chegamos ao termo da ascensão; preparei a minha emboscada, coisa
fácil, em vista da topografia do terreno. Imagina uma passagem talhada entre
uma muralha vertical e um precipício a pique, um abismo tenebroso, que parecia
se aprofundar pelas entranhas da terra, até o fogo central, e que — diziam —
ninguém conseguira sondar. Este era o Poço; quanto ao Dragão, estava
naturalmente embaixo, guardando qualquer tesouro fabuloso.
“Ao
nascer do Sol, o bando bôer apareceu conduzindo os animais pelo freio.
“—
Fogo! gritei logo que ele chegou ao alcance desejado.
E
a fuzilaria começou a crepitar. Surpreendidos, os boers torvelinham por
momentos, mas em breve se refazem. Uns abrigam-se atrás dos blocos de lava;
outros fazem deitar a sua montaria, à moda dos cossacos, e dela se servem como
trincheira. E ei-los a responder. Como sabes, o bôer é um atirador temível pela
sua ligeireza. Ai do imprudente que descubra por mais de dois segundos o braço
ou a cabeça; é "mimoseado", antes de ter tempo de puxar o gatilho...
Foi o que me aconteceu. Uma bala na espádua esquerda, no momento preciso em que
fazia pontaria ao chefe; agachara-se este atrás de um cavalo branco, por cima
do qual o seu chapéu marrom se destacava admiravelmente.
“Apesar
disso, não deixávamos de ter a superioridade, e os boers, depois de me
terem derrubado alguns homens no começo, não tinham mais nada a fazer senão
render-se. O chefe, aquele que me tratara tão bem, apercebeu-se disto, pois eu
o vi, de repente, mergulhar o braço na goela da sua montaria, como se fosse fazê-la
tomar um purgante, e compreendi logo do que se tratava. O cavalo acabava de engolir
os diamantes, de acordo com o clássico truque do país das minas. Fiz desde logo
tenção de reclamar para mim, como parte nos despojos, o precioso quadrúpede.
Eis senão quando este se empina, com o gasganete atravessado por uma bala. O cavalo
ferido, relinchou, deu um pulo alucinado e abismou-se no Poço, em meio a um
ruido terrível. Desta vez, o tesouro lá estava definitivamente: o que se
tornava necessário era ir reclamá-lo ao Dragão... Seis meses depois, já curado
e tendo sido feita a paz, fui ao Poço. Um cafre me acompanhava, levando uma
comprida e solida corda de nós, fabricada expressamente para essa exploração
perigosa. Acabava de fixá-la solidamente à borda do abismo, quando percebi uma
outra corda a dois passos. Deixei escapar uma blasfêmia:
— Ha alguém lá embaixo.
Talvez
um dos meus companheiros, que também tenha visto o gesto do chefe bôer... Repartamos
então! Cego de raiva, abrasado pela ideia desse duelo, apalpo a minha Browning,
pego da corda com as duas mãos e eis-me a escorregar com uma ligeireza
simiesca. Enquanto descia, observava o inimigo, isto é, a corda, cujas menores oscilações
naturalmente me preveniriam de qualquer perigo. Não ia ela muito ao fundo.
Sessenta metros apenas. Aí estava rebentada. Pude então notar que a corda, por
ser demasiado frágil, se partira ao tocar numa aresta cortante, precipitando
naturalmente nas profundidades do vórtice o ousado violador do poço...
Pouco
depois cheguei ao fundo. Em torno silencio e treva absolutos. Acendi a minha lâmpada
elétrica e fremi, de olhos esbugalhados. Diante de mim, sobre a rocha árida,
uma prodigiosa rosa cintilava, flamejando todas as cores do prisma. Precipitei-me
de joelhos, e comecei a encher os meus bolsos com os preciosos cristais. Nisto,
um ruido fraco, alguma coisa como um suspiro, veio interromper a minha
colheita. Levantei a lanterna, vi uma cela virada e, mais longe, de encontro à
parede, parecendo dormir, uma grande carcaça branca como marfim. Era o
esqueleto do cavalo bôer. Esta besta do Apocalipse, parecendo fitar-me com as
suas orbitas vazias, impressionou-me. Lembrava-me certa "Dança Macabra",
creio que de Holbein, vista por mim no Louvre. Era bem o cavalo da Morte...
Apenas acabava de pensar nisto, eis que a morte se me apresentou... Sim, a
morte, tal como a representam, faltando-lhe apenas a foice e o sudário. Oh, esse
fantasma, esse ser espectral, cujos ossos eu ouvia estalar sinistramente,
debaixo da pele ressequida, atira-se sobre mim! Cambaleio, os olhos cheios de
horror, sinto um hálito nauseante, dentes que se cravam na minha garganta,
lábios que sugam meu sangue. Esta dentada salvou-me. Entravamos no domínio do
real. Adivinhas quem era esse vampiro?
—Sim, respondi, era o outro, o teu ladrão...
—
Efetivamente. O meliante estava lá há várias semanas, há meses talvez. Devora o
cavalo e depois começa a perecer de fome... Dominei-o e subi com os diamantes,
numa escalada triunfal, ébrio de alegria com o meu tesouro, sentindo asas, nas
espaduas, embora tivesse a morte nos calcanhares.
—E
o outro? indaguei. Deixaste-o em baixo no seu tumulo?
—Não. Pouco depois, auxiliado pelo cafre, fiz
subir o moribundo. Mas era tarde. Morreu ao retornar à luz.
Fonte: Vida Policial, 8
de maio de 1926. Tradução de autor desconhecido.
Conto bom 😊
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