A VISÃO DO VIEGAS - Conto Clássico de Terror - Viriato Padilha
A VISÃO DO
VIEGAS
Viriato Padilha
(1866 – 1924)
Arnaldo
Viegas cursava o terceiro ano do curso jurídico de São Paulo. Havia seis,
porém, que se achava matriculado na Academia.
Indolente
e de pouca atilação para as ciências, distinguia-se somente entre os
companheiros pela sua supina ignorância da ciência jurídica, e pelo atrevimento
das suas graçolas para com os lentes, mesmo os mais sisudos e ríspidos.
Se
em direito, porém, Arnaldo Viegas, era profano, sabia, no entanto, de cor quase
todos os poemas de Byron e Musset, cujos livros tinha por sua Bíblia ou
Alcorão, mas sem que fraternizasse espiritualmente com as grandezas e
sublimidades daquelas almas alucinadas pelo Belo e pelo Amor.
Viegas
apreciava-os unicamente por ver que esses grandes poetas, na extravagância de
seus gênios, se compraziam de exaltar o Vício e deprimir a Virtude. Nisso
achava ele desculpa às desordens da sua vida, desordens baixas, sem
intermitências de horas de labor honesto, nem manifestações fulgurantes de
talento.
Viegas
era bêbedo como um marinheiro em terra; jogava toda a sorte de jogos; fazia
ostentações em entrar nas mais sórdidas espeluncas; e, finalmente, era um
consumado devasso, mais por perversidade e amor próprio do que por impulsão do
temperamento.
A
sua conversa, quando não discorria sobre os paradoxos brilhantes de Byron e
Musset, versava unicamente nas boas peças que pregava aos burgueses; nos
calotes que passava ao alfaiate e ao sapateiro; nas mulheres casadas que
seduzia; nas donzelas que lhe ofereciam a virgindade.
Embora
muito dissoluto, é escusado dizer que a maior parte dessas façanhas eram puras
invenções suas. A pretensão que tinha, porém, de fazê-las passar por verídicas,
demonstra perfeitamente o depravado fundo do seu caráter.
Todavia,
o Viegas figurava como torpe protagonista de algumas aventuras amorosas, e é de
uma delas que vamos tratar.
*
* *
No
tempo de que nos ocupamos, existia na rua de São Bento, em São Paulo, um velho
armarinheiro italiano, Pascoal Landini, que, às suas funções comerciais de
mercador de alfinetes, grampos e agulhas, reunia as de armador de igrejas, por
ocasião de festividades religiosas, e fabricante de caixões e mortalhas para
defuntos.
Pascoal
Landini era um velhinho magro, baixo, de barba muito alva e pontiaguda, e
sempre o viam na sua pequena loja toucado com um barrete de veludo azul com
borla preta, e óculos de aro de tartaruga, perfeitamente redondos e grandes.
Contudo, o que mais chamava a atenção, na lojinha da rua de São Bento, não era
o seu proprietário, nem os acessórios do seu vestuário, e sim uma criatura de
beleza incomparável e suavíssima, Maria Annunzziata, a filha do velho Pascoal,
sempre a costurar, e sentada ao fundo da loja.
Toda
a estudantada desse tempo — calouros e veteranos — conhecia a loja do Pascoal
por causa da bela costureira; e pelo interesse de lhe lançar uma olhadela
amorosa, aliás nunca correspondida, iam frequentemente ao negócio de Pascoal
abastecer-se de penas, lápis, papel e tinta. Pelas “repúblicas” falava-se muito
a miúdo na formosura de Annunzziata, e muito estudante fechava, às vezes
aborrecido, o Digesto ou o Corpus Juri, para abrir a Arte de Metrificação
de Castilho, e fabricar versos em sua honra.
Todavia,
até aquela data nenhum se havia lambido com um seu sorriso. Annunzziata parecia
insensível aos olhares de fogo que a trêfega mocidade acadêmica lhe lançava, ao
dirigir-se à escola, e até aos sonetos que os mais brejeiros lhe atiravam em
papel dobrado em laçarote, aproveitando descuidos do velho Landini.
Ora,
aconteceu um dia morrer um estudante do segundo ano de Direito, e tendo os rapazes
resolvido fazer-lhe o enterro, por ser o colega paupérrimo, comissionaram
Arnaldo Viegas para tratar da encomenda do ataúde e da mortalha.
Arnaldo
dirigiu-se à casa do velho Pascoal para se desempenhar do seu fúnebre encargo,
e, depois de lançar uma olhadela de fogo para Maria Annunzziata, que parecia
uma daquelas suavíssimas madonas dos pintores da Renascença, ensarrilhada no
fundo da loja do armarinheiro, dirigiu-se ao velho nestes termos:
—
Bons dias, Sr. Pascoal. Venho fazer-lhe a encomenda de um caixão e de uma
mortalha para um colega que morreu.
—
Molto bene — respondeu o italiano, na sua língua, pois não falava uma
palavra de português.
E
tomando uma fita métrica, perguntou a Viegas:
— La medida del suo amico?
–
Que medida?! – exclamou Viegas.
—
La medida per fare il cajone.
—
Ora bolas! — tornou Viegas — Nem disso me lembrei.
—
Dunque! – exclamou mestre Pascoal. – Come fare io, senza la medida?
Andate a portar me lá, signor.
—
Não é preciso, Sr. Pascoal; meu colega era exatamente da minha altura. Tome a
medida do caixão por mim.
O
italiano, que, como quase todos os seus patrícios, era profundamente
supersticioso, fez um gesto de espanto, ao ser-lhe proposto tal alvitre, e
exclamou:
—
Per Dio Santo! Ecco um cattivo pensamento. Prendere la medida di un morto sopra di voi! Questa
non si fa, signor, sarebbe funestissimo per voi.
A
bela Annunzziata, ao ouvir as palavras do estudante, fez igualmente um gesto de
horror, e, pela primeira vez nesta cena, levantou os olhos da costura.
Aproveitou-se logo disto Viegas para envolvê-la em um longo olhar sensual, ao
mesmo tempo que repetia a mestre Pascoal:
—
Tome a medida, mestre Pascoal. Eu não acredito em agouros.
Annunzziata,
ao ver essa insistência, não pôde conter-se. Parecia interessar-se pelo
estudante:
— Oh! Non lo permettete, signor! Questo
porta disgrazia!
Arnaldo
Viegas ficou radiante e cheio de si. Quis ostentar-se, aos olhos da moça, homem
superior, despido de superstições. Assim, exclamou, confiando o bigode negro:
—Não
vos incomodeis, bela signorita. Deixais que mestre Pascoal tome a
medida. O que aos demais acarreta desgraça, para mim talvez seja a chave da
felicidade.
E
tornou a dardejar uma chispa do seu olhar atrevido sobre a formosa italiana,
que, enrubescendo, se inclinou sobre a costura, apenas pronunciando um simples oh!
Mestre
Pascoal, porém, encolhendo os ombros fleumaticamente, assim como quem queria
significar que não era responsável pelo que acontecesse, disse, endireitando os
seus óculos redondos de aros de tartaruga:
—
Sia fatta la sua voluntá!
Ao
mesmo tempo que desenrolava a fita métrica, fazia com que o rapaz comprimisse a
fivela da mesma na fronte e corria-a até os pés.
Em
seguida, levantou-se com os dedos fixos na marca, e, lendo a numeração da fita,
exclamou:
—
Due metri e dieci centimetri. Per la Madona“ — acrescentou ele,
tirando o barretinho e saudando Viegas em ar de troça —voi siete un signor difunto!
Apesar
de muito encouraçado contra agouros, Viegas estremeceu com a frase de mestre
Pascoal. Mas, ao ouvir Annunzziata abafar um gritinho, também impressionada com
o gracejo fúnebre do pai, logo as suas ideias tomaram outro rumo. Compreendeu
que a sedutora virgem da Rua de São Bento estava se interessando muito por ele,
e isto encheu-o de prazer.
Efetivamente
atraída por estranho ímã, Annunzziata, logo no primeiro momento em que os seus
olhos pousaram sobre Viegas, sentiu-se simpatizada por ele.
Arnaldo
pagou a conta e despediu-se. Da porta, lançou um último olhar a Annunzziata e
esta o mimoseou com um gracioso sorriso.
Viegas
não cabia em si de contente. Que conquista de mão cheia não ia ele fazer? Como
toda a estudantada não se encheria de inveja e despeito ao vê-lo na posse
inteira da rafaelesca virgem da Rua de São Bento?! Aquele sorriso era a porta
aberta a todas as suas ousadias, e não seria ele, Viegas, que deixaria de
entrar por ela.
*
* *
Assim,
animado por esse sorriso, que lhe prometia tanta fartura de gozos e volúpias,
Arnaldo Viegas começou a frequentar a loja de Pascoal Landini, cuja confiança e
amizade soube captar em pouco tempo, pois o velho italiano era homem muito
simples e de extrema boa-fé.
Duas
semanas depois que teve lugar a cena acima descrita, já Viegas tomava parte no
macarrão e no vinho de Chianti do modesto lar do armarinheiro, e daí a duas
outras semanas era ele completamente senhor do coração e da vontade de
Annunzziata, que havia subjugado desde o dia da encomenda do caixão.
Sem
o sentir, a bela jovem Annunzziata achou-se perdidamente enamorada do devasso
estudante, e logo Viegas cogitou nos meios de poluir aquela cândida criança,
que com tanto abandono e simpleza lhe ofertava o seu primeiro e virginal amor.
Aproveitando-se
de uma ausência de Pascoal que foi obrigado a dirigir-se ao Rio de Janeiro a
fim de fazer sortimento para a sua loja, intrometeu-se na lar do honrado
lojista onde Annunzziata ficara, apenas com uma criada já velha.
Annunzziata
amava-o muito já, para poder resistir-lhe. Viegas atirou-se-lhe com toda a
lubricidade dos seus desejos e profanou-a.
Pouco
depois, alugou um quartinho na rua que dava fundo para a casa do italiano e
todas as noites metia-se no quarto da rapariga, que cada vez o adorava mais.
Durante
dois meses, Viegas foi assíduo junto da amante; porém, decorrido esse tempo,
começou a enfastiar-se dela, principalmente por ter percebido que ela se achava
grávida. Aquele infame era incapaz de qualquer sentimento nobre. Resolveu
abandoná-la.
Mudou-se
de residência e nunca mais a procurou.
Não
tinha ele conseguido os seus intentos? Não alcançara transformar em impura
Madalena a bela e recatada virgem que toda a Academia adorava? Agora
convinha-lhe demonstrar a sua superioridade, para que não parecesse qualquer
burguês. Partiria a taça pela qual sorvera o mais suave dos filtros.
*
* *
Annunzziata
cobriu-se de mágoas com o súbito abandono do pérfido amante.
Escreveu-lhe
por diversas vezes e não obteve resposta. Ralavam-na os desgostos, começou a
compreender que tinha sido traída, até que, afinal, amiudando mais as cartas ao
celerado, este, com o maior cinismo, mandou dizer-lhe verbalmente por um
moleque que o não apoquentasse mais com cartas e choradeiras, que andava muito
preocupado com os seus estudos e exames para perder tempo em responder a
lamúrias de mulheres histéricas; e, finalmente, que não fosse tola em insistir
com ele para pedi-la em casamento, pois ela bem devia compreender que um rapaz
da sua posição e futuro não era para casar com a filha de um armarinheiro, um
reles burguês fazedor de caixões de defunto.
Tanto
cinismo e brutalidade partiram, uma por uma todas, as cordas da alma da bela
italiana. O seu débil corpo não pôde resistir a tão duro golpe; intensa febre
levou-a ao leito de onde só saiu alguns dias depois para ser levada ao
cemitério. O seu pobre coração estalara de dor, e, ao partir-se, levara-lhe a
existência.
*
* *
O
velho Pascoal Landini sentiu-se ferido profundamente nas suas vivas e únicas
afeições com a morte de sua dileta Maria Annunzziata, retrato vivo da esposa
que perdera havia anos.
Desde
o dia em que a gentil criatura cerrou os olhos à luz do mundo, nunca mais abriu
o armarinho.
Tornou-se
taciturno em extremo, evitava falar com as pessoas de seu conhecimento, e
passava a maior parte do dia encerrado no pequeno quarto em que dormia e onde
lhe morrera a filha adorada, e cujos móveis e roupas conservava na mesma
desordem e desalinho em que haviam ficado naquele dia tão angustioso para o seu
pobre e velho coração.
À
rua apenas saía para dirigir a construção de um artístico mausoléu que mandara
erigir no túmulo da filha, e, no dia seguinte àquele em que se ultimara a obra,
encontraram-no morto no quarto de Annunzziata.
Feita
a autópsia, verificaram os médicos que o infeliz ingerira uma forte dose de
arsênico.
Esses
dolorosos acontecimentos, que tanto emocionaram os lojistas e fabricantes da Rua
de São Bento, pois Landini e sua filha eram geralmente estimados, não
impressionaram, no entanto, o cínico que havia cavado aquelas duas sepulturas
precoces.
Arnaldo
Viegas continuava na sua vida de dissipação, como outrora, e no seu íntimo
alegrava-se até que a morte o tirasse de certos embaraços sociais para com a
infeliz, cuja virgindade ele havia profanado.
Pouco
depois entrava em exame e por casualidade era aprovado com a nota simples.
Rejubilou-se
o pretensioso ignorantão com esse mesquinho triunfo escolar, e tendo naquele
dia recebido a gorda mesada que a prodigalidade paterna lhe dispensava,
resolveu festejá-la com uma lauta ceia oferecida aos amigos, no Corvo, a
célebre taverna paulista da rapaziada acadêmica de outrora.
Eram
onze horas da noite. Reinava a mais expansiva alegria em todos os convivas,
pois já algumas dúzias de garrafas haviam sido despejadas. Quando Arnaldo
Viegas, que se achava na cabeceira da mesa, ergueu-se um tanto ébrio e,
empunhando uma taça a transbordar de vinho Madeira, exclamou:
—
Meus senhores, vou levantar o brinde de honra do nosso banquete. Sobre ele
todas as taças se quebrarão!
—
Muito bem! muito bem! — responderam
todos. enchendo os copos.
–
É um toast de respeito, meus senhores! Eu bebo à memória da rapariga
mais formosa que meus lábios têm beijado nos espasmos do prazer! Eu bebo,
senhores, ao perfeito apodrecimento da que foi outrora a mais perfumada e
deliciosa das carnes! Eu bebo à memória de Maria An… An… An…
Não
pôde terminar o nome angélico daquela cujas cinzas queria profanar em uma
orgia.
Os
seus olhos fixaram-se de repente em um dos ângulos da enfumaçada sala da
taverna acadêmica. E o seu corpo principiou a tremer, caindo-lhe o copo das
mãos.
Os
companheiros voltaram-se imediatamente para o canto onde se dirigira o olhar
aterrado de Viegas, mas nada viram.
Arnaldo,
no entanto, ia ficando pálido, os seus lábios abriam-se, denotando a maior
estupefação, e os seus dedos crispavam-se, como se ele fosse presa de horrível
pesadelo.
Efetivamente,
surgia para Arnaldo uma visão medonha, pavorosa. Naquele momento de final de
orgia, viu sair do canto da sala um fantasma, o finado Pascoal Landini, de
barrete azul, óculos redondos de aros de tartaruga e fita métrica em punho. A
terrível visão aproximou-se do libertino, que quis gritar, sem poder, não
encontrando som algum na garganta.
Os
companheiros observavam espantados e silenciosos. Viegas viu, então, o fantasma
de Pascoal desenrolar a fita, obrigá-lo a comprimir a fivela à fronte onde um
suor frio deslizava, corrê-la até os pés, e depois erguer-se, endireitar os
óculos para ler a numeração, e exclamar:
—
Due metri e diecci centimetri! —E,
exatamente como outrora, no dia em que fora tratar do enterro do colega, tirar
o barretinho e à guisa de cumprimento trocista, acrescentar:
— Per la Madona, voi siete un signor difunto!
Viegas
não pôde suportar por mais tempo aquele martírio. Reunindo todas as forças que
tinha, articulou um grande grito e rolou inanimado no soalho da taverna.
*
* *
Tornando
a si do delíquio, a sua primeira pergunta foi saber dos companheiros se tinham
visto a alma do velho Pascoal tomar-lhe a medida para o caixão.
Ninguém
vira coisa alguma.
—
Foi o vinho Madeira que te subiu aos miolos – disse um colega.
—
Proferiste um conto digno de Hoffmann ou do nosso Álvares de Azevedo — disse
outro.
–
Ora, graças que temos um Macbeth na Academia! Acho, porém, o teu Banquo um
tanto burguês – acrescentou ainda outro.
—
Senhores — exclamou Viegas todo trêmulo ainda e de uma palidez mortal —, eu vi
nesse momento o velho Lalldini chegar-se a mim e tirar-me a medida para o
caixão, exatamente como no dia em que com ele tratei do enterro do Deotato. Vi,
senhores, não foi efeito do vinho, nem é conto que vos quero impingir, eu vi o
velho Landini!
*
* *
Dessa
noite por diante a razão foi desaparecendo aos poucos do atribulado cérebro de
Arnaldo Viegas.
Cessou
os estudos, afundou-se cegamente na bebida e dentro de algum tempo estava
completamente idiota.
Com
intervalos lhe surgia na mente confusa a temerosa visão, o eterno mestre
Landini a tirar-lhe a medida para o caixão. Em seus ouvidos zumbia
constantemente o terrível gracejo do armarinheiro:
–
Due metri e dieci centimetri! Per la Madona voi siete un signor difunto!
Em
estado de completo idiotismo vagou durante algumas semanas pelas ruas de São
Bento, roto, esfrangalhado, sórdido, até que, afinal, sua família mandou
recolhê-lo e meteu-o no Hospício do Rio de Janeiro.
No
fim de alguns meses o seu corpo era dado à sepultura.
amigo barão, aqui é o arquiduque Roger,vou ler este conto hoje à noite. E a ilustração desse conto me fez recordar, o homem desenhado é parecido com um ex professor que tive a muitos anos, de Química no Ensino Médio, o cara era bravo e amargo rss rss rss ele era um terror para nós!
ResponderExcluir