O CLÉRIGO PUNIDO - Narrativa Clássica de Fantasma - William of Malmesbury


 

O CLÉRIGO PUNIDO

William of Malmesbury

(c. 1095 – c. 1143)

 

Havia na cidade de Nantes dois jovens clérigos, que ainda não tinham idade para serem padres, mas que esperavam obter tal ofício não por uma vida de bondade e virtude, senão pela proteção do bisco local.  Todavia, ao final, o destino miserável de um deles ensinou ao outro que ambos correram o risco de despencar no abismo infernal.

Desde os primeiros tempos da vida, os rapazes foram amigos e rivais e, nas palavras do poeta, "lutando com mãos e pés, teriam até sofrido a morte um pelo outro...".

Com o passar dos anos, tornaram-se eles mais eruditos e ricos. De ambos, o intelecto ampliou-se, mas eles continuavam insatisfeitos. Passaram, pois, a enveredar mais pelos caminhos do erro do que os da retidão.

Entre outros assuntos, especulavam sobre a aproximação daquele dia, terrível e fatal, que lhes romperia inexoravelmente os laços de amizade; e concordaram num juramento, que os vincularia enquanto estivessem vivos. Juraram que, em que pese a morte de um deles, aquela amizade deveria continuar. Juraram, ademais, que o primeiro deles que viesse a morrer deveria aparecer, sem falta, ao sobrevivente, estivesse este dormindo ou acordado, dentro de trinta dias. Assim, eles poderiam saber se, consoante ensinam os platônicos, a morte não extingue o espírito, senão o envia a Deus num novo começo, como se libertado de uma prisão; ou se, como acreditam os epicuristas, a alma se desgarra do corpo para ser dissipada no ar e levada pelo vento.

Tendo feito o juramento, os jovens renovavam frequentemente o pacto nos seus debates diários. Não muito tempo depois, a própria morte veio rastejando e arrancou o último suspiro de um dos dois amigos.

Aquele que permaneceu vivo pensou seriamente no juramento conjunto que eles haviam feito e esperou com alguma apreensão os trinta dias seguintes.

Passado esse tempo, e desesperado por qualquer contato do outro, o sobrevivente tinha-se retirado para a cama quando, de repente, o outro apareceu, com o rosto pálido e o semblante de quem está no leito de morte.

—Reconhece-me? — perguntou ao seu companheiro, que estava mudo.

— Reconheço — respondeu —, e, além de estar surpreso com a tua aparência, pergunto-me por que é que demoraste tanto tempo a regressar.

O morto desculpou-se pelo seu retorno tardio e disse:

— Finalmente cheguei, depois de ter-me libertado de tudo o que me prendia, mas, embora a minha aparição te seja útil, não o é para mim. Porque, por sentença pronunciada e ratificada, estou entregue ao castigo eterno.

O homem vivo protestou que, em auxílio a seu amigo morto, gastaria tudo o que tinha em donativos aos mosteiros e aos pobres, e que persistiria dia e noite em jejum e oração.

O espírito, todavia, o interrompeu, dizendo:

— Está tudo decidido. Pelo julgamento de Deus, e sem remissão, estou afundado no abismo sulfuroso do inferno. Lá eu giro, sem parar, enquanto as estrelas giram em seus eixos e o mar resvala-se na praia, por causa dos meus crimes. Permanece o rigor da sentença inflexível, entremeando eternas e inumeráveis formas de punição, de modo que em todo o universo não há saúde ou remédio para mim.

Para que o amigo aprendesse com os seus incontáveis tormentos, estendeu-lhe uma mão, que gotejava de feridas ulceradas, e disse:

—Vê, isto te parece insubstancial?

Quando o amigo respondeu que a mão parecia de fato leve e insubstancial, o outro dobrou os dedos e atirou-lhe três gotas de pus. Duas delas atingiram o amigo na têmpora e a outra na testa, de modo que lhe perfuraram a pele e a carne como chama de cauterização, e fizeram um buraco do tamanho de uma noz.

Quando o homem vivo lançou um grande grito de dor, o seu companheiro morto disse:

—Isto vai marcar-te enquanto viveres. Servirá de prova do meu sofrimento e, a não ser que o ignores, como um lembrete especial da necessidade de cuidares de tua própria saúde futura. Por isso, enquanto tal é possível, muda o teu modo de vida e corrige o teu espírito, e torna-te monge no santuário de Saint Malo, em Rennes.

Quando o homem vivo permaneceu em silêncio, o seu companheiro fixou-o com um olhar penetrante:

—Se ainda tens dúvidas sobre se estou realmente transformado, miserável, lê estas cartas!

Ao mesmo tempo, abriu a mão para mostrar uma terrível inscrição, na qual Satanás e os seus companheiros agradeciam, das profundezas do Inferno, a toda a congregação da Igreja por sua falta de cuidados pastorais, o que permitia que mais almas descessem ao Inferno do que em qualquer outra época anterior.

Com estas palavras, a aparição desapareceu.

O amigo doou imediatamente todos os seus bens à Igreja e aos necessitados e foi para o santuário de Malo. Lá, aconselhou todos os que testemunharam a sua súbita conversão a dizerem:

—Esta mudança foi operada pela mão direita do Todo-Poderoso.


Versão em português de Paulo Soriano.

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