UMA INSPIRAÇÃO DO INFERNO - Conto Clássico de Terror - Maciel da Costa


 

UMA INSPIRAÇÃO DO INFERNO

Maciel da Costa

(Séc. XIX)

I


Une vengeance terrible, jeune homme![1]

D’Arlincourt, Ismalie.

 

Corria tranquilo o ano de 1834 e Adolfo, jovem negociante da cidade de São Paulo, só experimentava prazeres e gozos inefáveis na companhia da bela e encantadora Emília.

Formai um retrato de uma jovem na vossa imaginação: ondeai-lhe os cabelos, tão pretos como o ébano; alisai-lhe uma testa gentil, ainda não batida pelo vergão da desventura; rasgai-lhe uns olhos vivos que só falam a entusiasta linguagem do coração; torneai-lhe um pescoço em que só brincam as graças; abri-lhe uma pequena boquinha, tão mimosa como um botão de rosa da primavera; imprimi-lhe um porte gracioso, como o de Vênus. — Pois bem, novo Prometeu, ide roubar o fogo do Céu, animai esse retrato e dai-lhe palavras puras como os primitivos hinos da infância, inspirai-lhe pensamentos ardentes como um primeiro amor e lançai-lhe no coração a bondade de um anjo.

Eis a mulher que Adolfo adorava.

Eram felizes? —Não se vê tantas vezes um campo risonho pela sua verdura tornar-se árido e medonho? Não se vê o rio — que, límpido, rasga dourados laranjais — apresentar seu leito vazio e escavado? — Oh, se a natureza estaca diante do homem um vasto painel de contrassensos e de contrastes, por que razão Adolfo havia de ser sempre feliz?

Respeitemos os segredos da Providência.

Uma noite, a Lua serena e melancólica percorria um céu puro e azul como a safira. Era uma hora.

Um vulto embuçado em um escuro capote dirigia-se para a casa de Adolfo, situada no Campo da Luz. — Ei-lo que chega e bate à porta.

— Quem és tu? Que me queres a tais horas? — grita Adolfo.

— Oliveira! —  responde-lhe o vulto.

Abriu-se a porta e os dois amigos lançaram-se nos braços um do outro. Acenderam-se luzes.

— Tu dormes e eu velo! — diz Oliveira.

— Porquê?

— Estás atraiçoado por tua esposa. Ela ama Frederico!

— Mentes!... Ela dorme a meu lado — torna Adolfo, apontando para um quarto.

— Eu te mentir?... Eu te dou uma prova do contrário!

De repente, um cavaleiro passa a todo galope.

— Quem é aquele? — diz Oliveira, enfurecido.

— É Frederico! — responde Adolfo, encostando a sua cabeça no ombro do seu amigo.

Oliveira contou ao jovem negociante que, passando por ali em horas tardias, vira uma vez o seu rival conversando com a sua consorte, e que, resolvido em tudo participar-lhe, viera tão tarde incomodá-lo.  Durante esta narração, Adolfo tremia, mudava de cor.

— Vingança! Sangue! — exclama ele.

— Vingança! Sangue! — ecoa o seu companheiro.

— Oh, ela dorme, a pérfida, e não tenho um punhal!

— Cobarde! Lembra-te, mancebo, que deves vingar de um modo terrível. Adeus! — disse-lhe Oliveira.

— Amigo, espera. Tens razão, devo vingar-me de um modo terrível. Recebe o meu juramento.

Dizendo destas palavras, o jovem negociante lembra-se que tinha em cima de uma mesa um canivete. Corre a buscá-lo. E, dando com ele um formidável talho na mão esquerda, fez sair sangue. E, molhando nele uma pena, escreveu em uma tira de papel as seguintes palavras:

Juro pelo Céu e pelo Inferno que me hei de vingar de um modo terrível”.

— Recebe este papel, e de hoje a oito dias mo trarás — diz ele, dando o papel a Oliveira;

— Adeus! Vingança!

— Adeus!

Os amigos separam-se.

 

II

 

J'ai le poignard et le poisson... là-bas coule la Seine[2].

Félix Davin,

 

Oito dias depois desta última entrevista, via-se um homem, pensativo, percorrer o vasto Campo da Luz.

Era Adolfo. O que fazia ele? Meditava um plano de vingança.

O Sol já se ia escondendo por detrás dos pardos montes. Seus moribundos raios ainda douravam algumas janelas do convento das freiras que aí se achava.

Adolfo entrou em casa e chamou a esposa.

— Emília — lhe diz ele —, tu sabes que a traição é o crime mais horroroso que existe sobre a terra? Tu sabes que mil mortes não são suficientes para desagravarem um home que é traído?

—A que propósito vem essa tua linguagem? Dias há que a melancolia tem anuviado a gentileza de teu semblante. Se eu sou criminosa, sacrifica-me ao sossego do teu coração.

O jovem esposo lançou-lhe um olhar em que fuzilaram todos os sinais da mais viva indignação.

—Cala-te, pérfida! — exclama ele.

Emília pôs-se a chorar.

Bateram fortemente na porta da sala. Quem será? É Oliveira. Estava envolvido em um grande capote negro. Uma barba postiça lhe caía até o peito. Trazia uma larga cinta na qual estavam enfiadas duas pistolas e um punhal. Em um braço estava enrolado um maço de cordas. Seus movimentos eram bruscos e arrebatados, seus olhos cintilavam fogo.

Era a verdadeira imagem de um salteador da Andaluzia.

— Amigo, já te convenceste de que não te enganei? — diz ele, imóvel, diante do jovem negociante.

— Por minha desgraça!

— Completam-se hoje oito dias depois do teu juramento. Já formaste um plano?

— O Inferno não me dá nenhuma só inspiração. Se meu sangue quiser, meu sangue lhe darei — assim responde Adolfo, todo iras.

Oliveira, depois de refletir um tempo, lhe torna da maneira seguinte:

— Comigo trago um veneno violento. Aqui perto está o teu cavalo e lá em baixo corre o profundo Tietê... Já me compreendeis?

— Sim! Essa tua inspiração é filha do Inferno.

Adolfo mandou aprontar uma ceia e selar o seu cavalo.

Apontou-se a ceia e o cavalo estava selado na porta.

Na ocasião em que se sentaram à mesa, reinou primeiramente um silêncio profundo. Via-se no rosto de Oliveira uma grande inquietação e no de seu infeliz amigo um profundo desespero. Emília ficou assustada quando reconheceu Oliveira.

— Que tens, Adolfo? — diz-lhe a encantadora Emília. — Ainda estás muito agoniado!

— Não faça caso, minha senhora: este homem tem um gênio insuportável! — replicou Oliveira, dando uma grande risada, e escondendo as suas pistolas.

— Seremos os convivas de algum banquete de finados? —murmurou Adolfo. —Eu estou sem vontade de comer!

— A propósito, meu amigo, por que não vais buscar o teu precioso vinho? Estará ele à mão?

—Está lá dentro e eu o vou buscar — replicou Adolfo.

Enquanto ele foi buscar o vinho, Oliveira pegou uma vela, que sobre a mesa ficara. Emília foi acendê-la. E neste entretempo, o jovem abaixou-se e deitou umas gotas de um líquido, que trazia dentro de um vidro, em um guisado.

Vieram o vinho e a vela acesa.

— Tem ânimo! Está tudo concluído! Nada comas! — murmurou o Demônio aos ouvidos de sua vítima, o mísero esposo. Este nada comeu. Seu amigo só comeu aquilo que lhe fez conta e a bela Emília achou prazer no prazo envenenado! Finda a ceia, Oliveira animou Adolfo. Trouxe-lhe à lembrança o seu juramento e retirou-se.

Fazia luar. O jovem negociante convidou a sua consorte para ir dar um passeio a cavalo. Ela aceitou e foi na grupa de seu marido.

Dirigiram-se para a Ponte Grande, debaixo do qual corre o profundo Tietê.

A mimosa paulista principiou a sentir dores horríveis por todo corpo. Ela suspirava, queixava-se, torcia-se. Tudo era surdo a seus ais.

O cavalo corria a todo galope e Adolfo não dizia uma só palavra! Ouvia-se um sussurro. Era o Tietê, cujas águas são velozes e escuras.

Chegaram os consortes à Ponte Grande. Adolfo apeou-se e disse àquela aquém tanto adorou outrora:

— Tu estás envenenada. Chama agora por teu Frederico, teu amante!

— Que horror!... Que calúnia!... Ah! Des...graça...do!  Eu sou inocente... Estou morrendo. Eu te perdoo o crime... Mas, em nome de Deus, te juro..., que... me verás... sempre à meia-noite!...

Emília soluçava, gemia, chorava. Coitadinha!

De repente, aparece um homem a correr...

—Antes que te possam salvar, recebe, pérfida, este sinal do meu amor!

Adolfo apunhalou-a. O homem era Oliveira — o qual, de concerto com o seu amigo, amarrou com cordas os braços e as pernas da infeliz paulista —, e atiraram-na ao rio.

Oliveira deu uma grande gargalhada e disse à vítima de seus conselhos:

— Cumpriste com tua palavra; mas não sabes ainda quem sou?!

— Eu não me importo — respondeu o outro, delirante —, mas só agradeço à tua inspiração infernal.

— Tenho o teu sangue... Tenho o teu sangue — respondeu Oliveira e desapareceu.

Era o Diabo!

Depois de tão horroroso sucesso[3], Adolfo sempre vê Emília ensanguentada na fatal hora da meia-noite.

 

Fonte: “Correio das Modas”/RJ, edições de 23 de fevereiro e de 9 de março de 1839.

Fizeram-se breves adaptações textuais.



[1] Uma vingança terrível, meu jovem!

[2] Eu tenho a adaga e o peixe... ali corre o Sena.

[3] Ou seja, acontecimento (N. do E.).

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