UMA INSPIRAÇÃO DO INFERNO - Conto Clássico de Terror - Maciel da Costa
UMA INSPIRAÇÃO DO INFERNO
Maciel da Costa
(? - 1854)
I
Une vengeance terrible, jeune
homme![1]
D’Arlincourt, Ismalie.
Corria
tranquilo o ano de 1834 e Adolfo, jovem negociante da cidade de São Paulo, só
experimentava prazeres e gozos inefáveis na companhia da bela e encantadora
Emília.
Formai
um retrato de uma jovem na vossa imaginação: ondeai-lhe os cabelos, tão pretos
como o ébano; alisai-lhe uma testa gentil, ainda não batida pelo vergão da
desventura; rasgai-lhe uns olhos vivos que só falam a entusiasta linguagem do
coração; torneai-lhe um pescoço em que só brincam as graças; abri-lhe uma
pequena boquinha, tão mimosa como um botão de rosa da primavera; imprimi-lhe um
porte gracioso, como o de Vênus. — Pois bem, novo Prometeu, ide roubar o fogo
do Céu, animai esse retrato e dai-lhe palavras puras como os primitivos hinos
da infância, inspirai-lhe pensamentos ardentes como um primeiro amor e
lançai-lhe no coração a bondade de um anjo.
Eis
a mulher que Adolfo adorava.
Eram
felizes? —Não se vê tantas vezes um campo risonho pela sua verdura tornar-se
árido e medonho? Não se vê o rio — que, límpido, rasga dourados laranjais —
apresentar seu leito vazio e escavado? — Oh, se a natureza estaca diante do
homem um vasto painel de contrassensos e de contrastes, por que razão Adolfo
havia de ser sempre feliz?
Respeitemos
os segredos da Providência.
Uma
noite, a Lua serena e melancólica percorria um céu puro e azul como a safira.
Era uma hora.
Um
vulto embuçado em um escuro capote dirigia-se para a casa de Adolfo, situada no
Campo da Luz. — Ei-lo que chega e bate à porta.
—
Quem és tu? Que me queres a tais horas? — grita Adolfo.
—
Oliveira! — responde-lhe o vulto.
Abriu-se
a porta e os dois amigos lançaram-se nos braços um do outro. Acenderam-se
luzes.
—
Tu dormes e eu velo! — diz Oliveira.
—
Porquê?
—
Estás atraiçoado por tua esposa. Ela ama Frederico!
—
Mentes!... Ela dorme a meu lado — torna Adolfo, apontando para um quarto.
—
Eu te mentir?... Eu te dou uma prova do contrário!
De
repente, um cavaleiro passa a todo galope.
—
Quem é aquele? — diz Oliveira, enfurecido.
—
É Frederico! — responde Adolfo, encostando a sua cabeça no ombro do seu amigo.
Oliveira
contou ao jovem negociante que, passando por ali em horas tardias, vira uma vez
o seu rival conversando com a sua consorte, e que, resolvido em tudo
participar-lhe, viera tão tarde incomodá-lo.
Durante esta narração, Adolfo tremia, mudava de cor.
—
Vingança! Sangue! — exclama ele.
—
Vingança! Sangue! — ecoa o seu companheiro.
—
Oh, ela dorme, a pérfida, e não tenho um punhal!
—
Cobarde! Lembra-te, mancebo, que deves vingar de um modo terrível. Adeus! —
disse-lhe Oliveira.
—
Amigo, espera. Tens razão, devo vingar-me de um modo terrível. Recebe o meu
juramento.
Dizendo
destas palavras, o jovem negociante lembra-se que tinha em cima de uma mesa um
canivete. Corre a buscá-lo. E, dando com ele um formidável talho na mão
esquerda, fez sair sangue. E, molhando nele uma pena, escreveu em uma tira de
papel as seguintes palavras:
“Juro pelo Céu e pelo Inferno que me hei de
vingar de um modo terrível”.
—
Recebe este papel, e de hoje a oito dias mo trarás — diz ele, dando o papel a
Oliveira;
—
Adeus! Vingança!
—
Adeus!
Os
amigos separam-se.
II
J'ai le poignard et le
poisson... là-bas coule la Seine[2].
Félix Davin,
Oito
dias depois desta última entrevista, via-se um homem, pensativo, percorrer o
vasto Campo da Luz.
Era
Adolfo. O que fazia ele? Meditava um plano de vingança.
O
Sol já se ia escondendo por detrás dos pardos montes. Seus moribundos raios
ainda douravam algumas janelas do convento das freiras que aí se achava.
Adolfo
entrou em casa e chamou a esposa.
—
Emília — lhe diz ele —, tu sabes que a traição é o crime mais horroroso que
existe sobre a terra? Tu sabes que mil mortes não são suficientes para
desagravarem um home que é traído?
—A
que propósito vem essa tua linguagem? Dias há que a melancolia tem anuviado a
gentileza de teu semblante. Se eu sou criminosa, sacrifica-me ao sossego do teu
coração.
O
jovem esposo lançou-lhe um olhar em que fuzilaram todos os sinais da mais viva
indignação.
—Cala-te,
pérfida! — exclama ele.
Emília
pôs-se a chorar.
Bateram
fortemente na porta da sala. Quem será? É Oliveira. Estava envolvido em um
grande capote negro. Uma barba postiça lhe caía até o peito. Trazia uma larga cinta
na qual estavam enfiadas duas pistolas e um punhal. Em um braço estava enrolado
um maço de cordas. Seus movimentos eram bruscos e arrebatados, seus olhos
cintilavam fogo.
Era
a verdadeira imagem de um salteador da Andaluzia.
—
Amigo, já te convenceste de que não te enganei? — diz ele, imóvel, diante do
jovem negociante.
—
Por minha desgraça!
—
Completam-se hoje oito dias depois do teu juramento. Já formaste um plano?
—
O Inferno não me dá nenhuma só inspiração. Se meu sangue quiser, meu sangue lhe
darei — assim responde Adolfo, todo iras.
Oliveira,
depois de refletir um tempo, lhe torna da maneira seguinte:
—
Comigo trago um veneno violento. Aqui perto está o teu cavalo e lá em baixo
corre o profundo Tietê... Já me compreendeis?
—
Sim! Essa tua inspiração é filha do Inferno.
Adolfo
mandou aprontar uma ceia e selar o seu cavalo.
Apontou-se
a ceia e o cavalo estava selado na porta.
Na
ocasião em que se sentaram à mesa, reinou primeiramente um silêncio profundo.
Via-se no rosto de Oliveira uma grande inquietação e no de seu infeliz amigo um
profundo desespero. Emília ficou assustada quando reconheceu Oliveira.
—
Que tens, Adolfo? — diz-lhe a encantadora Emília. — Ainda estás muito agoniado!
—
Não faça caso, minha senhora: este homem tem um gênio insuportável! — replicou
Oliveira, dando uma grande risada, e escondendo as suas pistolas.
—
Seremos os convivas de algum banquete de finados? —murmurou Adolfo. —Eu estou
sem vontade de comer!
—
A propósito, meu amigo, por que não vais buscar o teu precioso vinho? Estará
ele à mão?
—Está
lá dentro e eu o vou buscar — replicou Adolfo.
Enquanto
ele foi buscar o vinho, Oliveira pegou uma vela, que sobre a mesa ficara.
Emília foi acendê-la. E neste entretempo, o jovem abaixou-se e deitou umas
gotas de um líquido, que trazia dentro de um vidro, em um guisado.
Vieram
o vinho e a vela acesa.
—
Tem ânimo! Está tudo concluído! Nada comas! — murmurou o Demônio aos ouvidos de
sua vítima, o mísero esposo. Este nada comeu. Seu amigo só comeu aquilo que lhe
fez conta e a bela Emília achou prazer no prazo envenenado! Finda a ceia,
Oliveira animou Adolfo. Trouxe-lhe à lembrança o seu juramento e retirou-se.
Fazia
luar. O jovem negociante convidou a sua consorte para ir dar um passeio a
cavalo. Ela aceitou e foi na grupa de seu marido.
Dirigiram-se
para a Ponte Grande, debaixo do qual corre o profundo Tietê.
A
mimosa paulista principiou a sentir dores horríveis por todo corpo. Ela
suspirava, queixava-se, torcia-se. Tudo era surdo a seus ais.
O
cavalo corria a todo galope e Adolfo não dizia uma só palavra! Ouvia-se um
sussurro. Era o Tietê, cujas águas são velozes e escuras.
Chegaram
os consortes à Ponte Grande. Adolfo apeou-se e disse àquela aquém tanto adorou
outrora:
—
Tu estás envenenada. Chama agora por teu Frederico, teu amante!
—
Que horror!... Que calúnia!... Ah! Des...graça...do! Eu sou inocente... Estou morrendo. Eu te
perdoo o crime... Mas, em nome de Deus, te juro..., que... me verás... sempre à
meia-noite!...
Emília
soluçava, gemia, chorava. Coitadinha!
De
repente, aparece um homem a correr...
—Antes
que te possam salvar, recebe, pérfida, este sinal do meu amor!
Adolfo
apunhalou-a. O homem era Oliveira — o qual, de concerto com o seu amigo,
amarrou com cordas os braços e as pernas da infeliz paulista —, e atiraram-na
ao rio.
Oliveira
deu uma grande gargalhada e disse à vítima de seus conselhos:
—
Cumpriste com tua palavra; mas não sabes ainda quem sou?!
—
Eu não me importo — respondeu o outro, delirante —, mas só agradeço à tua
inspiração infernal.
—
Tenho o teu sangue... Tenho o teu sangue — respondeu Oliveira e desapareceu.
Era
o Diabo!
Depois
de tão horroroso sucesso[3],
Adolfo sempre vê Emília ensanguentada na fatal hora da meia-noite.
Fonte: “Correio das
Modas”/RJ, edições de 23 de fevereiro e de 9 de março de 1839.
Fizeram-se breves
adaptações textuais.
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