A LEGENDA DE JACCOPO LUNO - Conto Clássico Pseudossobrenatural - Ivan Strannik
Ivan Strannik
[Pseudônimo de Anna Anitchkof (1868-1935)]
Jaccopo Luno era belo como Lúcifer, insolente como um pajem e ágil como um macaco. Era o mais jovial rapaz de Florença, nesse tempo em que a cidade feliz começava a fulgurar na alvorada da Renascença.
Ao vê-lo passar cantarolando pelas ruas, as mulheres sentiam o coração bater mais depressa e, mesmo que a rua parecesse dormir acabrunhada sob o Sol do meio-dia, Jaccopo não deixava de mirar as janelas veladas por largas cortinas, certo de que seu olhar cruzaria outros olhares de rostos, que ele não via.
Havia uma rua tão estreita que, estendendo as duas mãos, Jaccopo teria podido apanhar, ao mesmo tempo, duas rosas, que deixassem cair de um e outro lado. Isso lhe aconteceu um dia e ele levou as duas flores, rindo.
Jaccopo gostava de passear principalmente à noite; mas então não cantava: esgueirava-se como uma sombra até se deter junto à janela da preferida para jurar as mais galantes mentiras.
E que mulher deixaria de acreditar em juramentos pronunciados por voz tão sedutora?
* * *
Assim, a existência de Jaccopo era feliz e dissipada. Entretanto, ele cultivava uma profissão grave. Era escultor de imagens piedosas para igrejas e capelas: talhava em cedro rijo finas grades para os púlpitos e altares e ornava com grinaldas de folhagens e farandolas de monstros as pesadas cadeiras dos bispos e cônegos. Não tinha igual entre os escultores desse gênero e a nobreza de sua arte estendia-se um pouco a ele próprio. Padres e monges tratavam-no com consideração e muita gente acreditava-o destinado a esculpir um dia a cadeira de Sua Santidade.
Mas Jaccopo não se impressionava com o caráter severo de sua obra. Não se preparava para o santo trabalho com meditações piedosas nem jejuns mortificantes: trabalhava cantando, assobiando e, se alguma admiradora mais petulante vinha procura-lo mesmo na oficina, não se descuidava de lhe dirigir algumas palavras tentadoras.
— Oh, homem! — exclamava Zulietta. —Não tens medo de que o grande São. João Batista, que estás esculpindo, castigue essa impiedade
—Ora, qual! — respondeu Jaccopo. — Isto ainda não é São João Batista. É uma estátua de madeira. Só depois que o padre a benzer...
Zulietta, que o julgava um sábio, não insistia. De resto, para conservar o amor mesmo infiel de Jaccopo, ela concordava sempre.
Coisa curiosa. Assim hábil e capaz de todo os louvores, ele nunca esculpia sintas. Dizia ele:
—Eu não posso trabalhar sem fatiar ao que faço. E não sei falar a sintas. Vamos, João Baptista! Amaldiçoa os infiéis! Fulmina-os! E ajustava à boca do precursor um ricto amargo, quase odiento.
* * *
Ora, um dia, o poderoso senhor Lorenzo Polo veio procurar Jaccopo. Lorenzo era incalculavelmente rico e toda a gente — inclusive ele — sabia que sua fortuna fora mal adquirida. Por isso mesmo talvez, desejando um acordo com o Céu, estava edificando em seus domínios, à borda do Arno, uma igreja encantadora. Dizia-se que era para santificar o lugar em que fora cometido um crime; mas Lorenzo era tão rico que isso só se dizia em voz baixa.
Jaccopo saudou-o profundamente, mas com um sorriso tão zombeteiro que os senhores da corte do fidalgo começaram a trocar olhares. Lorenzo sentou-se na aparatosa poltrona, que havia no meio da oficina, exatamente para os visitantes ilustres e começou:
—Mestre Jaccopo. Você é hábil em seu ofício. Minha igreja, na margem do Arno, estará pronta em pouco.
—E é uma obra-prima, senhor — interrompeu o artista. — Um pouco baixa, com os vitrais demasiadamente estreitos, mas uma obra-prima, não há dúvida.
—Um pouco baixa? — repetiu Lorenzo, indignado.
—Que insolente! — murmuraram os cortesãos.
Mas o potentado, dominando a cólera, prosseguiu:
—Eu quero que faça para minha igreja uma imagem da Virgem. Espero que saberá apreciar a honra e a confiança que essa encomenda representa.
—Aprecio e agradeço profundamente semelhante honra, mas recuso-a.
Lorenzo ficou lívido e sua surpresa foi tamanha que ele insistiu:
—Já tenho lá muitas imagens de alto valor, mas lhe reservei a incumbência de fazer a principal.
—Sim senhor... Ouvi perfeitamente, mas recuso.
—Pagarei por ela trezentas libras.
— Nem por mil eu aceitaria.
—Dou mil e quinhentas.
Jaccopo hesitou, mas viu o rosto pálido de Zulietta, crispado pela emoção. Ele lhe tinha feito tantas infidelidades naqueles últimos dias... A ideia de poder cobri-la de ouro decidiu-o.
—Aceito.
Lorenzo respirou desafogado e ao mesmo tempo odiou o ousado, que o obrigara a elevar tanto o preço. Entretanto, Jaccopo não tinha um ar triunfante. Ao contrário: parecia triste, inquieto e seus olhos brilhavam com fulgor tão estranho que o fidalgo não ousou acabrunhá-lo com o desprezo que ordinariamente reservava aos que recebiam seu dinheiro. Cumprimentou-o gravemente e o artista esqueceu-se de o acompanhar até a porta.
* * *
Dois dias depois Jaccopo reconheceu que a sorte continuava a favorecê-lo. Encontrou para esculpir a Virgem um tronco de cedro excelente, rijo, seco e sonoro. Quando o viu em sua oficina, acariciava-o com o olhar inspirado.
Depois passou vários dias perdido em reflexões exaltadas. Se Zulietta lhe dirigia a palavra, maltratava-a. A pobre apaixonada andava em torno dele como uma alma penada, mendigando um olhar e temendo uma injuria.
Por fim. uma tarde Jaccopo falou-lhe:
—Zulietta... dize-me. Se tivéssemos um filho pequenino... Como o segurarias entre os braços?
Zulietta fechou os olhos num Ímpeto de amor infinito e murmurou:
—Ah! Eu o apertaria contra meus seios para que ele ficasse bem agasalhado, curvaria o rosto para ele e beijaria suas mãos róseas dizendo-lhe: “Tu és meu... Tu és meu!
— É isso — exclamou Jaccopo. — Eu farei uma mulher, que tem o filho entre as mãos frágeis, não se atreve a atrai-lo ao peito, olha a seus pés a multidão prosternada e diz-lhe: “Ele é vosso!”. Fá-la-hei esbelta como um Lyrio, inocente como um raio de Sol. Sua pequenina cabeça curvar-se-há ao peso do resplendor da Glória.
—E ganharás mil e quinhentas libras — concluiu Zulietta. — Sem contar a glória...
E aproximava-se do artista, bamboleando o corpo perfeito, abrindo os braços, entre os quais o peito farto distendia o corpete.
—Vai-te. Deixa-me em paz.
Agora, eram essas as palavras que ele mais a miúdo dirigia à amante. A Madonna absorvia-lhe todos os seus pensamentos. Tornara-se austero como um monge. Conservava a habilidade manual prodigiosa, mas seu sorriso desaparecera: emagrecia e seu rosto, idealizado pela inspiração, era ainda mais belo.
Adorava sua estátua, que Zulietta, por isso mesmo, começava a detestar.
À noite dormia, enrolado no manto, aos pés da estátua; ao alvorecer, ajoelhava-se e entregava-se ao trabalho com inquietação ansiosa. Mas, como o trabalho era bom, prosseguia nele sem perda de um momento.
Zulietta já não podia suportar aquele estudo, que lhe parecia de absorção intolerável. Deixou que Jaccopo terminasse a obra; mas, na última noite, quando o artista dormia, num ímpeto de esforço raivoso, colocou a estátua sobre um carrinho e levou-a. Ao ar livre, sob o olhar irrequieto das estrelas teve medo, mas tranquilizou-se recordando as palavras de Jaccopo:
—Ainda não recebeu a benção. É um pedaço de madeira esculpido.
Puxou o carrinho até o Arno e atirou a Madonna ao rio. Depois, as estrela refletiram-se de novo na superfície quieta e Zulietta julgou ver em seu brilho as mil e quinhentas libras, que seu crime acabava de sacrificar. Estremeceu num calafrio de orgulho e horror de si mesma. Voltou para casa em silencio e deitou-se em sua cama, há tantos meses solitária.
Pela manhã Jaccopo foi despertado pelos gritos dos cortesãos de Lorenzo, que tinham vindo admirar a obra e vociferavam:
—A Madonna desapareceu.
O artista cambaleava mudo e atônito.
Padres e monges entravam para verificar o prodígio e urravam:
— A Madonna não quiz que um ímpio esculpisse sua imagem. Destruiu a obra do incréu sem deixar sequer vestígios.
Mãos irritadas estendiam-se para Jaccopo: olhares furiosos fulminavam-no.
Mas, da margem distante, eis que uma multidão em delírio buscava a casa de Jaccopo, cantando, rindo, ébria de alegria e entusiasmo. A gente que enchia a oficina em revolta calou.
— Milagre! Milagre! A Madona está na Igreja. Não quis esperar que a viessem buscar. Deixou por si mesma a oficina do piedoso artista e, flutuando pelo rio, foi diretamente para seu santuário. Junto à igreja, entre os barcos, ali se encontrava esta manhã nossa doce Mãe, embalada pelo refluxo das águas, com o filho nos braços e os olhos voltados para o céu.
O milagre era manifesto. Os que, há pouco, falavam em lapidar o artista, curvavam-se a seus pés e beijavam-lhe a roupa. Trêmulo e inebriado, Jaccopo só compreendia uma coisa: sua Madona era abençoada entre todas. Foi levado em triunfo até a igreja. Do limiar viu o olhar da Virgem que o acolhia: correu e caiu a seus pés, esmagado pela fé.
A multidão parecia considerá-lo também santo, porém ele era surdo aos louvores e adorava sua obra, trêmulo de humildade. Seu coração desfalecia quando, erguendo os olhos, encontrava o olhar da Madona, que parecia buscar o seu.
Lorenzo não quiz perder a ocasião de um gesto magnífico. Aproximou-se.
— Jaccopo, teu trabalho trouxe a graça de Deus para minha aldeia. Tinha prometido mil e quinhentas libras. Aqui tens duas mil.
E seus pajens depuseram diante do artista vários sacos bojudos. O artista continuou imóvel em seu êxtase. Resolveram deixá-lo só e logo Zulieta insinuou-se a seu lado:
—Jaccopo... Podem roubar o teu dinheiro. Queres que eu tome conta dele? Ele não respondeu e ela levou o ouro.
* * *
A emoção do artista persistia. Ele acreditava no milagre e consagrava à Virgem todo o seu coração. A só lembrança de sua existência anterior causava-lhe horror e, consumido pelo remorso, ele foi desde esse dia verdadeiramente um santo, absorto em práticas de devoção.
Muitas semanas Zulietta esperou que ele esquecesse a Madona; mas. quando viu que essa paixão era incurável, correu com gestos desordenados à cela de frei Filipo e pediu que a ouvisse em confissão.
—Não houve milagre — disse ela, soluçando. — Fui eu quem atirou a Virgem no rio.
O frade empalideceu; mas, como era sábio e zeloso dos verdadeiros interesses espirituais, respondeu após breve reflexão:
— O milagre é indiscutível e tu não o deves perturbar com anedotas loucas. Tu atiraste a Virgem no rio porque Ela assim o permitiu e desejava, talvez. Foi Ela quem te inspirou essa ideia, para que pudesse ir até a igreja e ali se deter. O milagre é magnífico e confunde a inteligência humana.
Zulietta torcia os braços de desespero.
—A imagem desceu o curso do rio como é natural e só se deteve diante da igreja porque que só ali havia barcos parados detendo o curso.
—Cala-te, mulher. É o Tinhoso que te inspira essas objeções sacrílegas.
Zulietta benzeu-se para afugentar o Inimigo e acrescentou em voz mais baixa:
—As duas mil libras de Jaccopo ficaram comigo e eu as escondi. Que devo fazer delas, já que ele não as quer?
Frei Filipo respondeu:
—Admira, Zulietta, a mansuetude da Virgem, que não interrompe a fonte abundante de seus milagres. Salvou de perigo mortal a alma de Jaccopo e com as duas mil libras do senhor Lorenzo oferece-te a salvação. Meu sobrinho Cláudio não recusará desposar-te, visto que és assim ostensivamente protegida pela Virgem: tu poderás mudar de vida e esse milagre não será menor do que o primeiro.
Zulietta não recusou essa salvação inesperada e tornou-se a honrada esposa do Sr. Claudio. Quanto a Jaccopo, não esculpiu nenhuma outra imagem. Mesmo sem vestir o hábito, ficou vivendo na igreja, dedicado exclusivamente ao culto da Madona; os jejuns e austeridades consumiram-no em três anos e frei Filipo, um dia, encontrou-o morto, estendido aos pés da Virgem, com os braços em cruz. Em vão tentaram fechar-lhe os olhos e, por isso, o bispo ordenou que o enterrassem ali mesmo, na mesma posição, para que, através da lousa tumular, seu olhar continuasse voltado para a imagem. Depois, nos anos que se passaram, longos e variados, Jaccopo Luno conservou sua fama; embora os concílios não o houvessem canonizado, todos o acreditaram um intercessor eficaz e, sobre seu túmulo, as pessoas, que tinham fé, obtiveram graças inumeráveis.
Tradução de autor desconhecido.
Fonte: “Eu sei Tudo”, edição nº 30, 1919.
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