A MALDIÇÃO DE JACK - Conto de Terror - Giulianno Liberalli
A MALDIÇÃO DE
JACK
Giulianno Liberalli
Todos
que adoram histórias de Halloween conhecem a lenda de Jack-o´-lantern,
trapaceiro e um dos símbolos mais conhecidos do Dia das Bruxas. O homem com a
cabeça de abóbora se tornou uma referência da comemoração desse dia e é uma
imagem reconhecida em quase todo o mundo. Segundo a lenda, Jack, um grande
egoísta, convidou o Diabo para tomar uma bebida, mas ele não queria pagar a
conta, então convenceu o Diabo a se transformar em uma moeda e o aprisionou no
bolso junto com uma cruz de prata. Para libertá-lo, impôs uma condição: de que
não o perseguisse por um ano. Quando passou esse tempo, na noite de 31 de
outubro, Jack o enganou novamente, convencendo-o a subir em uma árvore para
pegar frutas e o prendendo com uma marca sagrada na madeira. Para libertá-lo, fez
outro acordo: de que não fosse perturbado por dez anos e que sua alma não fosse
para o Inferno. O Diabo concordou e pouco tempo depois Jack morreu, porém não
foi aceito no Céu por causa das suas maldades e nem no Inferno, pois fazia
parte do acordo que o Diabo não o recebesse. E como punição por ter enganado o
demônio duas vezes, foi condenado a vagar pelo limbo apenas com uma lanterna,
procurando seu caminho pela eternidade.
Essa
é a versão que ficou conhecida, mas a história de Jack não terminou assim.
Depois
de ter aprisionado o demônio na árvore, Jack disse que o libertaria se ele
prometesse não o perturbar por mais dez anos. O Diabo concordou, mas Jack ficou
com medo da vingança do Pai das Mentiras e decidiu deixá-lo preso ali até a sua
morte, e só assim ele seria livre. Enfurecido, o Diabo o alertou de que, caso
ele se libertasse, iria atrás dele em uma noite de 31 de outubro e o levaria
para as profundezas, lá ele seria punido pela sua ousadia como nenhuma alma
jamais havia sido torturada antes. Como era um local distante da cidade, Jack
não se preocupou com a possibilidade de alguém aparecer para libertá-lo, mesmo
assim, por precaução, passava ali sempre, verificando se a árvore estava
intacta e se o Diabo continuava aprisionado. Esse foi seu ritual ano após ano,
e tudo estava sempre em ordem, até que um mês depois do Natal o pior aconteceu.
Quando
estava chegando, viu que ali perto tinha uma residência de madeira em
construção, correu para o local, mas da árvore só havia sobrado o toco, alguém
a tinha derrubado para usar seu tronco. Perto dela tinha um machado quebrado ao
meio e um cadáver em decomposição. A conclusão era óbvia: o Diabo havia sido
libertado e viria atrás dele no dia 31 de outubro.
Desesperado,
Jack começou uma busca por qualquer coisa que o protegesse da fúria do demônio.
Após meses sem conseguir nada, um homem de uma aldeia vizinha mandou que ele
procurasse por uma bruxa muito poderosa que vivia em uma floresta próxima. Ele
pediu por um feitiço que o protegesse da vingança do Diabo e a bruxa fez um
pacto com ele, um feitiço o esconderia do demônio na noite fatídica, mas em
troca Jack teria que levar para ela o coração do homem que a traíra, um
poderoso comerciante da cidade que enriquecera graças a ela, mas que nunca
havia lhe pagado. Jack concordou e foi enfeitiçado.
Na
noite de 31 de outubro, ele bebia em uma taverna e ficou pálido quando viu o
Diabo procurando por ele, mas o feitiço funcionou, o demônio foi embora e nada
aconteceu. Porém ele se acovardou quando chegou o momento de cumprir a sua
parte e não conseguiu matar o comerciante para a bruxa. Ela se revoltou com sua
traição, lançando nele uma maldição. Ela o condenou à imortalidade para ser
caçado pelo Diabo todos os anos no Halloween. Nessa noite sua cabeça se transformaria
em uma imensa abóbora iluminada, cuja luz seria como um farol para atrair o
Senhor das Trevas. Para fugir, ele teria que substituir sua cabeça por outra,
que duraria por um ano somente, até a próxima noite de 31 de outubro. Quase
quatrocentos anos depois, ele continuava fugindo, matando e trocando de
identidade para se salvar do tormento eterno. Ninguém conseguia impedir o
ataque do amaldiçoado Cabeça de Abóbora, muito menos revidar, pelo menos era o
que Jack pensava.
31 de outubro de 2020 –
Dia das Bruxas.
A
festa do Dia das Bruxas começou a se tornar popular no Brasil em meados da
década de 80, graças às músicas de sucesso como Thriller de Michael
Jackson ou The Number of The Beast do Iron Maiden e filmes que influenciaram
gerações, como o clássico Halloween de John Carpenter, marcando essa data como
o prenúncio de que coisas ruins aconteceriam por atrair energias negativas,
entidades e criaturas sobrenaturais perigosas que são largamente cultuadas pela
mídia atualmente. O que muitos não sabem é que algumas delas circulam entre
nós, um fato que Edivaldo e seus amigos descobririam que era real naquela
noite.
Edivaldo
ajudava os amigos da faculdade na decoração do salão de festas para o
Halloween, era seu último ano e estava perto da formatura, depois retornaria
para sua cidade natal para exercer a advocacia, tinha um lugar prometido na
empresa do pai, um veterano da mesma profissão. Não via problema algum em
continuar o negócio da família, pois lhe renderia um bom dinheiro e a carteira
de clientes já estava pronta.
—
Então, Nilson, vai demorar muito para colocar essa faixa?
—
Deixa de ser chata, Marta. Eu e o Edivaldo estamos ralando desde cedo e você só
está colando figurinhas em balões. Está entediada, é?
—
Só quero terminar logo para poder me arrumar, a fantasia é simples, mas a
maquiagem demora bastante.
—
Nilson, pede para seu amigo estrangeiro esquisitão dar uma força, ele só fica
ali arrumando as mesas e olhando para cá como se quisesse alguma coisa.
—
O Fingal? Ele é caladão, mas é gente boa, Edivaldo. Chama, acho que ele vai
gostar de colaborar.
Edivaldo
foi até o rapaz estrangeiro, era pálido e alto, tinha chegado à faculdade no
começo do ano passado, o pessoal da turma dele dissera que viera da Irlanda e
estava fazendo intercâmbio. Ele tinha um jeitão engraçado, o que lhe rendera
alguns apelidos como Espantalho, mas todos diziam que era muito atento às aulas
e educado.
—
Oi, Fingal, pode nos ajudar ali para terminarmos mais depressa?
—
Sea, quer dizer, sim. Eu vou gostar. — concordou cheio de entusiasmo.
Não
demorou muito e o salão estava pronto para receber os alunos mais tarde.
Passava um pouco das nove da noite e o salão se encontrava cheio, quase toda a
faculdade devia estar ali dentro, fantasiada e se divertindo ao som do rock
pesado de bandas como Iron Maiden, Ramones e Metallica. Edivaldo e os amigos se
encontraram perto da entrada, ele fantasiado de Coringa; Marta vestida como a
personagem Morte de Neil Gaiman, graças à maquiagem a pele parecia ser branca
como cera; Nilson de vampiro, com uma capa que havia pegado emprestado do
pessoal do teatro; e Fingal se juntou ao grupo com um macacão, chapéu e botas
marrons. Todos riram quando ele explicou que tentara parecer um espantalho de
verdade, ou um fear tuí em irlandês. Entre danças, brincadeiras e
risos, a turma caiu dentro na comemoração ao Halloween.
Mais
tarde, depois que a festa acabou, eles voltavam para o dormitório passando por
uma grande área aberta, a faculdade ficava alguns quilômetros afastada da
cidade. Entre os prédios das aulas e as residências tinham alguns terrenos de
construção vazios, muitos alunos gostavam de usar como área de descanso ao ar
livre, para estudar e praticar esportes, mas à noite ficava sinistro, pois
tinha pouquíssima iluminação. Era um desses caminhos que eles faziam.
—
Ai, ai. Nunca gostei de andar por aqui de noite, Edivaldo.
—
Que isso, Marta? Está com medo? Mas hoje você é a Morte, então os outros é que
tem que ter medo de você.
—
Pessoal, o Fingal não estava com a gente? — Marta olhava para os lados, mas
nada de ver o colega estrangeiro.
—
Estava, ficou lá atrás, acho que parou para dar uma mijada. — Nilson caminhava
como se estivesse passeando em um parque, agitando a capa e dançando.
—
Então, Edivaldo, vai se formar e nos abandonar. Será advogado e encherá os
bolsos de dinheiro.
—
Isso aí, graças ao meu pai e a firma que ele abriu. O velho construiu um
tremendo negócio e vou sair daqui com emprego certo, ainda por cima patrão.
—
Deve ser muito bom viver sem ter que se preocupar com contas e outras coisas.
Nilson
ficou um pouco para trás, Edivaldo ia com Marta na frente. De repente ela olhou
para o lado e exclamou:
—
Olha! O Fingal está vindo aí! Mas ele está correndo... O que houve?
Nenhum
dos dois entendeu nada quando o estudante irlandês os agarrou pelos braços e
começou a puxá-los.
—
Vamos, corram! Rápido!
—
Ei, Fingal. Ficou maluco, irlandês?
—
Estamos em perigo!
Marta
puxou seu braço e encarou o estudante.
—
Você deve ter bebido demais, fica por aqui mesmo. Vamos, meninos. Edivaldo, o
que foi?
Seu
amigo tinha parado de correr e apontava para algo atrás deles. Quando ela
olhou, Nilson segurava um imenso facão, como o que usam para cortar mato, tinha
uma expressão sinistra e sorria.
—
Nilson, que brincadeira é essa?
—
É a noite de Halloween, meus amigos, e está na hora de encerrar minha
existência neste corpo e conseguir outro para continuar mais um ano caminhando
pelo mundo.
—
Eu sabia, é o amaldiçoado. Precisamos correr! — Fingal tentava tirá-los de lá
desesperadamente.
—
Ah! Adorei o teatro dos dois, sério. Justo você, Fingal? Agora, Nilson, guarda
esse facão. Alguém pode se machucar com isso! — Edivaldo falou no tom mais
sério que pôde, mas sentia que algo estava realmente errado ali.
—
Muito bem, eu tenho pouco tempo. Vamos parar de enrolar, certo?
Nilson
ergueu o facão com o braço direito, com a mão esquerda segurou seus cabelos
firmemente e golpeou o próprio pescoço com tanta força que a arma quase lhe
arrancou a cabeça de uma vez. Os três estudantes não conseguiam mover um
músculo e nem gritar, o horror de ver o próprio colega se mutilar ali, bem na
frente deles, os paralisou. A situação piorou quando ele arrancou o facão e
tornou a golpear. Dessa vez a cabeça saiu de vez e ele ficou segurando-a na
direção deles. Marta vomitou, Fingal e Edivaldo a apoiaram.
Subitamente
uma gargalhada começou a ecoar pelo ar. Onde antes havia a cabeça de Nilson,
começou a brotar alguma coisa do seu corpo, como um balão se enchendo com uma
bomba de ar. À medida que crescia, viam que era uma imensa abóbora brotando
pelo pescoço, nela surgiram fissuras que aumentaram até formarem uma bocarra e
dois grandes olhos luminosos. A risada macabra ficou cada vez mais alta, de repente
parou de crescer e a cabeça de Nilson desapareceu de sua mão como fumaça.
—
Tique-taque! O relógio está correndo e o Diabo está vindo me buscar. Preciso
trocar logo de cabeça para ganhar mais um ano de vida. Meu caro Edivaldo, você
foi o feliz sorteado. O restante, bem, não precisarei de vocês, e quando os
encontrarem amanhã, eu direi que fui o único sobrevivente do ataque de um
maníaco apaixonado pelo Halloween que decidiu bancar o Michael Myers. Ora, eu
também gostei do filme! Muito inspirador!
A
criatura tornou a gargalhar histericamente e começou a se aproximar deles.
Fingal arrancou um tufo de mato do chão e jogou na cabeça horrenda com terra e
tudo. O monstro gritou, esfregando o rosto com as mãos.
—
Vamos para aquele prédio em construção ali, anda! — Fingal puxou Edivaldo e
Marta.
Eles
correram para o local vazio e se esconderam na escuridão.
—
Como você fez aquilo? — Marta perguntou um pouco mais, recuperada do choque.
—
E o que é aquilo? Que história é essa daquela coisa de querer a minha
cabeça?
—
Aquele, Edivaldo, é o Jack-o´-lantern. O homem que enganou o Diabo e foi
condenado a vagar pela Terra para sempre matando na noite de Halloween. Este
ano ele escolheu você, deve ser porque você vai se formar, saindo da faculdade,
e sua família tem dinheiro. Assim ele passaria outro ano com folga, até
escolher outra vítima.
—
Conheço a lenda, sim. Ele ficou perdido no limbo, nem o Céu e nem o Inferno o
aceitaram e tal, mas é história de faz-de-conta!
—
Essa é a versão que ficou famosa, ele mesmo a espalhou por anos para disfarçar
a verdade.
—
Como sabe disso?
—
Meu avô, Gael, me contou que existia uma lenda obscura na Irlanda sobre um
homem que enganou uma bruxa para conseguir proteção contra o Diabo. Ela exigiu
um favor em troca e ele não cumpriu, assim foi amaldiçoado a ter a cabeça
transformada em uma abóbora luminosa todo Halloween, como um farol que atrai o
Diabo. Se ele conseguir outra cabeça antes da meia-noite, o sinal apaga e Jack
ganha mais um ano para fugir do Inferno. Pensávamos que era história para
assustar crianças, até meu pai ter presenciado um ataque dele e só escapou por
não ter sido visto, desde então sabemos que a maldição é real.
—
Mas e o Nilson, o que aconteceu com ele?
—
Está morto desde o ano passado.
—
O quê?
—
Lembram que ele viajou no Halloween anterior para os Estados Unidos? O Jack
pode assumir a aparência e o jeito da pessoa como disfarce quando pega a cabeça
dela, mas algumas coisas da essência dele aparecem. Umas semanas atrás eu
passei pelo quarto dele de noite, ele estava sozinho, dançando e cantando uma
música folclórica da Irlanda, muito antiga. Desde quando ele sabia falar em
irlandês antigo? Passei a observá-lo desde então, esperando pelo Halloween para
ver se era verdade, se Jack tinha matado Nilson nessa viagem, e minhas
suspeitas se confirmaram, infelizmente.
—
O que podemos fazer?
—
Ele marcou você, Edivaldo, porém falta pouco para meia-noite. Se ele não
conseguir trocar de cabeça, o Diabo o pega e fim, direto para o Inferno.
De
repente escutaram risos vindos do lado de fora, seguidos da voz sobrenatural de
Jack. O lugar ficava mais iluminado à medida que ele chegava.
—
Deram sorte até agora! Estou quase aí, meu amigo! — Ele ria e arrastava o facão
pelo chão enquanto os perseguia.
—
Se ele quer tanto a minha cabeça, talvez a gente tenha uma chance. Venham aqui.
Jack
estava possesso, faltavam minutos para a meia-noite e nunca tivera dificuldades
em conseguir sua cabeça nova, essa estava lhe dando muito trabalho. Corria
pelas salas escuras e vazias com o facão na mão. No segundo andar ouviu alguém
chorando, quando entrou em uma sala, viu sua vítima encolhida no chão com o
rosto escondido nas mãos. Aproximou-se do rapaz de terno vermelho e deu sua
sentença.
—
Enfim, chega de brincadeira, palhaço! Hora de perder a cabeça!
Mas
quando o puxou, ele mostrou seu rosto, era Fingal.
—
Surpresa, monstro!
—
Mas o quê...?
Por
detrás dele, Marta surgiu e cobriu sua cabeça com a jaqueta. Ao mesmo tempo,
Edivaldo tirou o facão da sua mão e o enterrou nas costas de Jack. Ele deu um
urro pavoroso, caindo de joelhos, e tentou alcançar a lâmina. Os amigos
correram para a saída e deram de cara com um vulto imenso parado na porta, a
cabeça parecia com a de um monstruoso bode e os olhos vermelhos faiscavam.
Carregava um imenso tridente na mão esquerda, o fedor de enxofre era insuportável.
Para ele os estudantes não existiam, seu alvo era outro. Nem precisaram olhar a
hora para saber que tinha passado da meia-noite.
—
Jack, meu amigo Jack. Finalmente. Quatro séculos de perseguição, foi divertido,
mas acabou. A danação o espera.
—
Não! Eu faço qualquer acordo!
—
Basta!
O
demônio entrou na sala e tudo ficou vermelho de repente, os amigos não tinham
coragem para olhar lá dentro e ver o que acontecia, mas os gritos e os sons
pavorosos que escutaram nunca mais sairiam das suas mentes. Logo ficou tudo
escuro de novo, da porta viram que a sala estava vazia e onde Jack estava só
restou uma mancha escura no chão, como se algo tivesse sido queimado ali até
não restar nada além de fuligem.
Os
três amigos só podiam lamentar em segredo a morte de Nilson, nenhuma autoridade
acreditaria no que tinham testemunhado naquela noite. Com o tempo ele foi
considerado desaparecido, disseram que tinham ido para os dormitórios depois da
festa e não souberam mais dele depois. Correu uma investigação por um tempo até
ser arquivada por falta de indícios do seu paradeiro, a situação acabou gerando
uma lenda urbana sobre um possível assassino de estudantes no Halloween.
Somente Edivaldo, Marta e Fingal sabiam da verdade que não poderiam dividir com
ninguém pelo resto das suas vidas sobre o que aquelas lanternas representavam.
Nos anos seguintes, passavam bem longe de qualquer abóbora luminosa que vissem
pelo caminho quando era Halloween.
Nas
profundezas do Inferno, os gritos de Jack ecoariam pela eternidade. O demônio
tinha uma conta de quatrocentos anos para cobrar dele e fazia questão de que
Jack pagasse por sua ousadia muito, muito devagar.
Texto Publicado na
antologia Contos de Halloween (2021) da Arkanus Editorial.
Muito bom a história de terror
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