A METAMORFOSE - Conto Fantástico - Emilio Vilaró


 

A METAMORFOSE

Emilio Vilaró

Tradução de Paulo Soriano

 

Embora não pareça, a metamorfose é um processo solitário, longo, lento e doloroso.

* * *

Ao acordar, percebi que, definitivamente, algo em mim estava mudando. Sem dúvida, o processo de minha transformação havia começado. A pele estava muito mais dura e menos flexível. Eu já havia notado isto há algum tempo, mas naquele dia verifiquei que já era um estado geral.

A esta mudança acrescentava-se uma pequena dor, que antes era parcial e temporária. Mas, agora, estava se tornando permanente, difusa e mais intensa. É tão constante que meu nível de resistência aumentou. Às vezes, eu não a sinto novamente, até que passe ao nível seguinte.

Falei com minha esposa... não sobre o sonho — “de minha transformação futura", que, há muito tempo, eu lhe contava —, senão sobre a dor, referindo-me a esta como se fosse um incômodo normal, do qual simplesmente teria de tratar, pois não queria vê-la preocupada.

Fomos ao médico. O diagnóstico foi o de que a pele estava, realmente, ficando mais dura. Provavelmente — comentou o médico —, por causa das longas horas de exposição ao Sol, em razão de meu trabalho como representante de vendas. Partimos com a mesma convicção do médico, que assim assegurou: "esses sintomas vão desaparecer em poucos dias". Recomendou-me a aplicação de uma pomada suavizante em todo o corpo ou, pelo menos, nas partes mais ressecadas. Que voltássemos para casa com a certeza de que tudo isso não tinha a menor importância.

Retornamos ao médico um mês depois, quando algumas crostas ou escamas apareceram no ombro e em uma das pernas. O médico arrancou algumas — o que me causou uma grande dor — e receitou uma pomada mais forte. Desta vez, ele não comentou ou prometeu melhoras.

Nunca mais voltamos a ele.

* * *

Agradeci a Isabel por aceitar, finalmente, que a minha enfermidade não era uma doença convencional, e que não valia a pena o esforço para curá-la.

O que eu lhe dissera, tantas vezes, agora estava acontecendo: realizava-se o meu eterno sonho — ou melhor, pesadelo —, no qual prenunciava-se que, um dia, eu passaria por uma verdadeira metamorfose.

Eu lhe havia explicado que as mudanças e a dor seriam normais, pois, em meu sonho, eu me convertia numa espécie de casulo. Mas o sonho se acabava de uma forma confusa e não me permitia saber, final, em que animal eu me convertia.

* * *

Comecei a exalar um cheiro horrível. Isabel lavava a minha pele, por sob as escamas, quando elas supuravam. Isso me dava algum alívio, reduzindo o mal cheiro e a dor.

É bem minguada a nossa família, e ela é distante em grau de parentesco e geograficamente. Isso, em nossa situação, é motivo de agradecimento. Simplifica as coisas.

* * *

Um conhecido veio nos visitar. Acreditei que, com o tempo, faria uma boa e duradoura amizade com ele. Ao se despedir, ele nos disse que morávamos em um bairro malcheiroso. Sua indireta não me ofendeu, pois era evidente que o cheiro vinha da nossa casa, não do bairro. Incomodou-me, sim, que ele não se me tenha dirigido diretamente, ou que não estivesse interessado na minha real situação. Isso deve ter sido óbvio para ele: eu mantinha cobertas as partes visíveis do meu corpo, assim povoadas por escamas. Via-se, pois, claramente, que havia algo de errado comigo.

Como temos poucos amigos na cidade onde moramos, devido às transferências permanentes que o meu trabalho exige, e tendo em conta a experiência anterior, foi necessário evitá-los. Os poucos que vieram, quando viram a minha situação, deixaram de nos visitar.

Decidimos que não nos tornaríamos objeto de pesquisa médica, de museu, zoológico ou circo. Ninguém mais deveria me ver assim, ou saber da minha condição.

Deixamos de sair e receber visitas, dando diferentes versões sobre a minha saúde. Inventamos a desculpa de que eu tinha ido a outra cidade, para mudar um pouco o cenário e ver se eu melhorava.

Informei à empresa — na qual, além de visitante comercial, eu era fiscal de área — que havia adoecido, pedindo que pusessem um substituto, enquanto eu convalescia. Após a forte temporada de vendas nesta região, eles poderiam esperar alguns meses, até que eu me recuperasse.

Alguns dias depois, recebemos uma carta informando que haviam encontrado e contratado um representante em nossa área, e que, quando eu estivesse recuperado, deveria contatá-los, e ver se haveria alguma vaga para mim.

* * *

Isabel ajudou-me a instalar-me no celeiro, que era anexo à nossa casa, mas que nunca havíamos usado antes. Nela, ficaria mais confortável e tranquilo, já que ninguém passava por lá.

* * *

Esse processo está demorando muito. Eu sofro indescritivelmente. Causa-me dores no corpo e debilidade de ânimo. Sempre fui muito forte. Tenho sido capaz de suportar a dor muito bem. Mas, agora, ela é permanente e nunca arrefece.

O mais doloroso é ver Isabel sofrer.  Ver os esforços que faz para não fugir ou trair a repulsa que sente pela minha aparência e cheiro. Como agradeço o fato de ela estar sempre meu lado! De toda essa situação, o que não muda, nem se transforma, é ela. O que é constante, nesse processo, é que nunca estou sozinho.

Se a única coisa que faço é amá-la, pergunto-me o que eu fiz para que ela me ame tanto...

* * *

Lembro-me de que, quando toda esta situação começou, fizemos comentários o livro de Kafka, "A Metamorfose". Como foi rápido o processo de transformação.  O personagem Gregório Samsa acordou uma manhã e já estava mudado. Sem dor — isto é, somente com um sono inquieto —, que maravilha! Completamente contrário à minha situação.

Acontecera-lhe a transformação como se por um passe de mágica ou um toque de feitiçaria. Como se resultado de um conjuro ou um feitiço. Abracadabra, torne-se um gato!

Como um ser humano pode mudar tanto e, em poucas horas, se tornar um inseto, sem sofrer nenhuma dor? Se a metamorfose de um homem fosse a de transformar-se em um enorme morcego, não se sofreria nesse processo?

E o mais incrível: como ele poderia se lembrar, perfeitamente, de sua vida passada como pessoa? Uma larva se converte em borboleta em uma noite, sem sofrer dor e se lembrando de sua vida quando era lagarta. É impossível!

Meu caso é diferente. É lento, mas quase previsível. Primeiro aparece uma pequena escama, como uma seta. Vai crescendo, nascida de uma semente ou esporo, e outras vão, pouco a pouco, eclodindo. No começo, elas são minúsculas, mas cobrem todo o campo, ou seja, meu corpo. Quando não há mais campo para crescer, as escamas se compactam, amontoam-se e me cobrem, formando uma couraça densa que me produz um intenso e permanente calvário. Isabel, depois de cada crescimento, enxuga-me o suor e, ignorando o odor, deita-se ao meu lado.

Não consigo mais me ver: as escamas cobrem todo o meu corpo, até mesmo os olhos. Devo parecer um pangolim e mal consigo me mexer.

— Como estou?

— Você parece um delicioso abacaxi, ou um tatu protegido por milhares de escamas preciosas.

—Isabel, eu lhe causo nojo, não é mesmo?  Não sei se, quando transformar-se completamente, vou esquecer-me de quem eu era. Não sei em que vou me converter, e nem se me lembrarei de você.

“Só lamento não lhe ter podido dar o filho que tanto queríamos. As ilusões que nós forjamos. Seria militar! Isto não podemos realizar. Sinto muito, Isabel”.

Isabel começou a chorar.

—Deveríamos procurar um bom médico — disse ela, sem muita convicção.

— Não estou doente, Isabel. Como a medicina interromperia o processo de minha metamorfose? Se um girino tivesse um médico de cabeceira e quisesse evitar o processo de se tornar um sapo, o que faria a ciência para o impedir? Isto seria possível? O médico cortaria as pernas quando elas saíssem?

“O que me preocupa e gostaria de saber é: qual inseto, batráquio ou borboleta será minha forma final?

“Ainda poderei reconhecê-la, Isabel? Se eu vier a ser uma borboleta, poderei pousar em sua mão e beijar sua pele?

“Eu a amo, e a tenho amado tanto que, se a mudança ainda me permitir vê-la, eu adoraria fazê-lo!  Se um dia você vir uma borboleta passar pela sua face, não a espante: serei eu querendo beijá-la”.

* * *

—Isabel, não sei se me ouve; eu a ouço, mas entendo cada vez menos o que você diz.

—Também tenho dificuldade em compreendê-lo, apesar de ouvi-lo.

—Não me sinto bem. Eu mal consigo andar. Você deveria ajudar-me a seguir para o bosque. Eu sinto que o bosque é o lugar onde devo me estabelecer. Por favor, leve-me até ele.

“Estive pensando naquela pequena caverna que encontramos durante uma caminhada, não muito longe daqui. Seria fácil para você tapá-lo com um pouco de barro, deixando uma pequena rachadura por onde respirar. Não preciso e não consigo me alimentar. Não consigo engolir a água que você me oferece. Estou pronto para evoluir.

“Sinto que estou chegando à fase final. Ao meu momento de solidão.”

* * *

Foi nosso último passeio. Levamos muito tempo para chegar à caverna. Como admiro minha esposa!  Eu via que ela sofria pelo esforço permanente que fizera, pela perda do companheiro e por não saber o que aconteceria a partir daquele momento.

Ela cobriu o chão da pequena caverna — quase um buraco — com muitas folhas e eu me deitei sobre elas com a cabeça voltada para o fundo. Não houve cerimônia ou despedida. Eu a ouvi chorar. Ela cobriu a entrada com paus, pedras e barro — ou assim pensei.

* * *

Eu havia tomado uma boa decisão, pois não podia permitir que ela sofresse tanto, vendo o meu sofrimento. É melhor terminar assim, o lugar escolhido é perfeito. Não consigo me mexer e não preciso mais comer ou beber. A dor, se eu estivesse morrendo, não seria pior.

* * *

Ouço que arranham o barro na entrada. Sinto que um animal está mordendo os dedos de um dos meus pés, está avançando sob as folhas, procurando presa maior e mais tenra. Acho que logo morrerei.

Há uma luta, uivos do animal. Alguém está tratando dos meus artelhos. Ouço que a entrada é selada novamente. Desta vez, o fechamento da abertura é mais demorado — teria sido Isabel? Depois, a solidão retorna. Se foi você, Isabel, pergunto-lhe, meu amor: quantas horas zela você diante deste buraco?

* * *

Talvez seja apenas uma impressão, mas algo está mudando em mim. Devo estar perdendo peso, pois estou ficando menor, como se estivesse secando e encolhendo. Algumas partes do corpo vão se despegando das escamas do casulo. Iludi-me, tentei acelerar o processo. Todavia, tentar separar-me delas foi muito doloroso e desmaiei. Minha mente é cada vez mais espessa. Agora me é mais difícil pensar.

* * *

Os meses de inverno passam, a dor intensa vai cedendo, tenho mais espaço dentro do recinto. Posso me tocar: agora sei que forma tenho.

Minha mente está em branco e eu não sei o que fazer ou quem eu sou. Sinto que devo romper o recipiente em que me encontro. Não consigo fazer tudo de uma vez, preciso descansar e tentar de novo. Onde estou, o que sou, que vida me espera lá fora, quando eu vier a sair? Posso pensar, mas não sei em quê; ou melhor, posso pensar no futuro, mas não me lembro de nada do passado, nem de como cheguei aqui, nem de quem sou.

Rompo a precinta, a minha couraça, o casulo. Golpeio as paredes do buraco que me encerram. Não tendo êxito, decido atacar a parte por onde entra alguma luz.

Saio, olho em volta, nada reconheço, mas sei o que tenho que fazer. Tudo o que vejo me é desconhecido e apenas uma coisa me chama a atenção: um rastro bem visível no chão, um pequeno caminho. Quem o deixou, já fez este percurso tantas vezes que, apenas com o olfato, eu consigo segui-lo. Sinto que devo fazê-lo. Eu limpo meu corpo das escamas restantes e começo a descer.

Vejo um celeiro, uma casa, uma mulher. Não sei quem é. O seu cheiro me atrai e quero aproximar-me dela.

Ele me toma entre os braços, olha para o meu pé, retira-me as duas escamas restantes da testa.

Eu a abraço e ela me leva para a banheira, onde me lava com carinho, chama-me de “meu pequeno e desejado filho” e me dá um beijo.

 

Ilustração: Adriano Machado.

Texto integrante da revista bilíngue (português e espanhol) “Relatos Fantásticos”, vol. II. Para acessá-la na íntegra, clique aqui.

 

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