AS RUÍNAS DA GLÓRIA - Conto Clássico de Terror - Fagundes Varela
AS RUÍNAS DA
GLÓRIA
Fagundes Varela
(1841 – 1875)
A
pouca distância da cidade de São Paulo, a um lado da estrada que vai para
Santos, havia um pequeno botequim, ou, para melhor dizer, um desses
estabelecimentos que os franceses chamam cabaret, destinados
propriamente para beber e palestrar.
Era
seu dono um alemão que, há mais de vinte anos, se achava no Brasil, homem de
cinquenta a sessenta anos, rubro, corpulento, porém fleumático como o são quase
todos os filhos dessa bela terra de Schiller. Por uma noite do mês de outubro
achava-me eu e dois amigos nesse botequim. A chuva caía a cântaros sobre a
terra, o trovão rugia no espaço e a ventania sacudia com violência as vidraças
da salinha onde estávamos.
Nossa
conversação era alegre e expansiva, os cachimbos fumegavam cheios de excelente werwick
e o ponche crepitava diante de nós, fazendo voltear fantasticamente a sua chama
de um belo azul-pálido.
Tínhamos
por costume, eu e meus dois amigos, passar o dia todo em casa e sair à noite —
à busca de aventuras, como dizíamos.
Líamos,
nesse tempo, fervorosamente todas as obras sombrias e exaltadas que aviventam a
imaginação e povoam a alma de quimera e sonhos irrealizáveis.
Semelhantes
ao herói da Mancha, nosso cérebro tinha-se embebido dessas ilusões sinistras e
o contínuo excitamento da imaginação nos acostumava a viver em um mundo de
visões e fantasias.
Eu
era um ardente apologista do autor de Manfredo, amava a noite e as trevas e, em
falta de Yung-Frau, invocava os meus espíritos do topo de uma colina.
Alberto
procurava divisar nas trevas da noite as sombras dos guerreiros. Recitava a
maior parte dos poemas de Ossian e gostava das neblinas, do vento e da
tempestade.
Finalmente,
José era apaixonadíssimo do desvairado fantasista alemão Krespel; Deunner,
Trabacchio e o medonho Copelius de contínuas estavam a seus olhos, entre
círculos de chamas avermelhadas como ele dizia.
A
trindade era perfeita, pelo que se vê.
Conversamos
alegremente, disse eu, tínhamos bebido nossa boa quantidade de ponche e, depois
de muito palestrar, dispúnhamo-nos a sair.
—
Vamos — dizia Alberto, de pé, no meio da sala.
—
Vamos — repetimos nós.
—
Porém, vejam, senhores — disse-nos o alemão, do seu canto — a chuva continua
cada vez pior e é uma temeridade...
—
Qual temeridade, por algumas gotas de água no lombo não nos devemos amedrontar;
vamo-nos embora.
—
Acendamos os cachimbos — disse José — e partamos sem demora.
Dito.
Nesse
momento a porta abriu-se, uma rajada de vento entrou pela sala e um vulto
apareceu no limiar.
—
Quem está aí? — gritou o alemão.
—
Eu! — respondeu uma voz rouca.
E
o homem entrou para a sala.
Sua
figura era alta e magra, seu rosto macilento como o de um cadáver, seus
movimentos pausados e lentos.
Sobre
o nariz curvo como o bico de um abutre estavam acompanhados uns óculos azuis,
através de cujos vidros se viam brilhar os olhos, dois carbúnculos. A boca era
fina e cerrada, a barba lisa e pontiaguda.
Não
sei o que havia de frio e tumular naquele homem que nos impressionou; dir-se-ia
o fúnebre hóspede da balada alemã, o visitante sinistro que, coberto da poeira
da campa, deixava o cemitério para ir bater à porta de um castelo em noite de
festa.
—
Que quer o senhor? — perguntou-lhe o alemão.
—
Velas e uma garrafa de vinho — respondeu o desconhecido depositando o dinheiro
sobre a mesa. Depois voltou-se e principiou a contemplar-nos atentamente.
Palavra
que o seu olhar me derramava uma sensação inexplicável pelo corpo; era como a
lâmina de um florete que me ia tocar no coração.
A
voz do alemão veio tirá-lo de sua contemplação.
—
Eis aqui o que pediu, disse ele.
O
desconhecido tomou as velas e a garrafa, pô-las embaixo do capote e saiu.
—
Quem é este homem? — perguntei ao dono da casa.
—
A falar-vos a verdade, não sei; há perto de um ano que ele anda por estes
arredores, aparece várias vezes por aqui, e tenho ouvido dizer que se hospeda
nas ruínas da Glória.
—
Nas ruínas da Glória! — exclamou José.
—
Sim, é talvez um mendigo, ou vagabundo.
—
A propósito — disse Alberto — vamos às ruínas da Glória... Este sujeito me
interessa, é uma dessas personagens "hoffmânnicas", que prometem um
belo romance! Há naquele tipo todos os requisitos para um livro de lenda,
talvez um Castil belga, de Victor Hugo; vamos à Glória!
—
Está dito, vamos descobrir o ninho desta ave noturna; vamos.
E
nós nos levantamos a um tempo.
Alguns
instantes depois estávamos na estrada e caminhávamos em direção às ruínas da
Glória.
A
Glória foi antigamente um desses templos vastos e sombrios, que nos países
cristãos muitas vezes sói encontrar-se longe do bulício das cidades, no seio
das montanhas, nas planícies ou nas margens dos rios.
Não
era propriamente um convento, um mosteiro, porque nenhuma ordem de monges
habitara aí, porém, ao lado da igreja, os grandes salões, os corredores
prolongados, os quartos, as celas não tinham sido feitos por luxo ou
superfluidade. Dizem que havia ali noutras eras um seminário onde os moços que
desejavam seguir a carreira eclesiástica se recolhiam e estudavam dirigidos por
um bispo santo e ilustrado que aí morava.
Poucas
ou nenhumas são as informações que tenho a respeito da Glória; mais tarde, com
a morte do bispo, o seminário desfez-se e a habitação ficou deserta.
Longe
da cidade, em lugar ermo e agreste, bem difícil era cuidar-se do antigo
seminário; o edifício foi-se arruinando com o correr dos tempos, de maneira que
hoje não é mais do que um resto de demolidas paredes, uma torre erguida entre
plantas bravias e um montão de pedras.
No
tempo em que se passava esta história havia ainda uma parte do edifício poupada
pelo tempo; eram dois salões ainda bem conservados, apesar do limo e da umidade
das paredes, algumas câmaras ao rés-do-chão, e uma grande varanda no fim de um
corredor cujas paredes ameaçavam cair a cada momento.
Dito
isto, continuemos a narração. A chuva tinha cessado o seu ímpeto; porém, o céu
era sombrio como uma lousa de mármore preto sobre um túmulo — servindo-me da
expressão de Lamennais — e o vento corria gelado e desabrido, intrometendo-se
pelas dobras de nossos capotes.
Estávamos
já perto do portão coberto de lianas e trepadeiras selvagens que precede as
ruínas.
Bebemos
cada um alguns goles de Kirschenwaser por causa do frio, empurramos depois a
porta e entramos no campo vasto e despido que está diante da arruinada igreja.
Como
tudo era triste! parecia-me que entrávamos para uma região nua e gelada onde a
vegetação tentava erguer-se debalde, onde o vento corria sem empecilhos. Lá no
fundo, por entre as brumas da noite, a torre erguia-se muda e silenciosa como
um imenso fantasma; os vultos confusos das árvores desenhavam-se por detrás
dela, agitando-se ao vento da tempestade.
De
quando em quando surgia uma chama esverdeada; parecia lamber as ruínas e depois
desaparecia; atrás vinha outra, depois outra torcia-se, girava e, também, se
esvaecia, para dar lugar a novas que se erguiam.
Lembrei-me
das legendas dos Lutins e Farfadets e confesso que me senti um pouco
impressionado; minha emoção aumentou quando contemplei a torre, cuja cúpula de
porcelana molhada pela chuva se iluminava de pálido brilho aos fogos errantes
da noite.
—
Vê, Alberto, como é triste assim aquela torre! Dir-se-ia o rei das florestas
com seu diadema de fosforescências.
—
É verdade, respondeu-me Alberto, lembra-me...
E
o meu amigo começou a recitar aquela balada de Goethe intitulada "Der
Koenig".
A
poesia era triste e funérea; quando Alberto acabou de recitar, todos estávamos
trêmulos e impressionados; olhávamos uns para os outros, receosos, e depois
transportávamos os olhares para a sombria torre que se erguia ao longe e na sua
tenebrosa mudez pareceu ter-se vestido com toda a majestade sinistra do Rei dos
Aulnes.
—
Para diante! — gritou José.
E
nós nos encaminhamos para as ruínas. Ao chegar junto delas, uma coruja
ergueu-se arrebatada e foi pousar, piando lugubremente, sobre as denegridas
muralhas.
—
Mau, mau — murmurou José.
Paramos.
Estávamos junto ao vestíbulo.
—
Então? Ninguém entra? — perguntou Alberto. Eu e José ficamos quietos e mudos.
—
Ah! Têm medo! Pois eu vou.
Dizendo
isto, afastou com uma bengala as plantas bravias que interceptavam a passagem e
desapareceu pelo vestíbulo arruinado.
Nós
ficamos algum tempo a olhar um para o outro; depois, José me disse:
—
Ele volta já: eu o conheço; vendo que o não acompanhamos, não terá ânimo de
continuar.
Depois
de esperarmos algum tempo, como Alberto não aparecia, eu disse a José:
—
Vamos, que diabo de medo tens tu?
—
Espera, retorquiu-me ele.
—
Deixo-te só se não vens — e adiantei-me para o vestíbulo. José seguiu-me.
Passando
o vestíbulo, subimos um pequeno degrau, de pedra — um corredor frio e tenebroso
apresentava-se diante de nós; José parou:
—
Ah! Tu não entras? — disse eu. — Espera.
E
enfiei-me pelo corredor; meu companheiro deu um salto e uniu-se a mim.
Seguimos
pelo corredor adentro; o ar era bramido e de um cheiro estranho, o chão
escorregadio, as trevas cercavam-nos profundamente e nós caminhávamos tateando.
Três
minutos tínhamos talvez andado quando pelo ar mais frio e desembaraçado, por
esse zunido agudo e contínuo que julgamos ouvir no silêncio, percebemos que
estávamos em um salão: então eu parei, José segurou-se a meu braço.
—
Fiquemos aqui — disse eu —, gritemos por Alberto; há já bastante tempo que nos
deixou.
Três
vezes repetimos, gritando o nome de nosso amigo, e nossa voz retumbou
lugubremente pelos desertos recintos, os morcegos agitaram-se no ar batendo as
longas asas, porém, ninguém respondeu.
—
E esta? Chamemos novamente por ele.
—
Alberto! Alberto!
Mesmo
silêncio; a noite era fria e tempestuosa, as aves noturnas piavam dolorosamente;
porém, nosso amigo não respondia.
Uma
ideia sinistra passou-me pela cabeça.
—
Vamos para diante, José; vamos para diante — repeti aceleradamente.
Então
principiamos a errar pelas trevas; o recinto parece que amplificava cada vez
mais suas paredes, porque nós andávamos e não encontrávamos um termo!
O
chão era úmido e escorregadio, o ar estava prenhe de um aroma estranho, um
cheiro de ruínas, um odor de sombria antiguidade.
—
Oh! Gritemos de novo — disse eu, trêmulo e assustado.
—
Alberto! Alberto! — clamamos com todas as forças dos pulmões.
Porém,
nada! Apenas um gemido abafado e doloroso chegou a nossos ouvidos.
—
Deus! — clamamos horrorizados.
Afastei
um passo. José tremia convulsivamente agarrado em mim.
De
repente, uma luz surgiu ao longe e o vulto de um homem atravessou lentamente o
fundo do aposento. Reconheci imediatamente o desconhecido do botequim; porém,
longe de nos tranquilizar, a sua presença veio aumentar o nosso terror.
Com
efeito, era-lhe medonha a figura naquele momento.
O
esverdeado cadavérico do rosto crescia ao clarão mortiço da vela, seus óculos
azuis davam aos olhos um aspecto de duas negras concavidades, a cabeça calva e
reluzente semelhava uma fronte de morto! A funérea solenidade do seu andar, a
imobilidade do rosto fazia-me recordar todas as lendas que ouvira na minha
infância.
Depois
de haver atravessado lentamente o fundo do salão, chegando perto de um
corredor, voltou o rosto para trás, exalou um gemido e desapareceu.
Parecia-me
que as trevas se condensavam em torno de nós. A figura do desconhecido,
entretanto, não me saía dos olhos e eu julgava ainda ouvir aquele doloroso
gemido que lhe escapava do seio.
Oh!
É talvez um desgraçado! — disse eu comigo. Para que hei de temê-lo? Vítima do
mundo e dos homens, vem talvez, deslembrar seus martírios na triste quietação
destas ruínas!... porém, onde está Alberto, meu Deus?...
—
Voltemos, voltemos — dizia José — talvez ele já saísse.
—
Custe o que custar! — clamei eu desesperado. —Devesse eu morrer, é preciso
buscá-lo! Vamos.
—
Mas, para onde? Para onde? — dizia José. —Não vês que tudo é escuro, que não
conhecemos estes lugares?...
—
Pois então gritemos, repliquei.
—
Para quê? Não nos temos cansado de gritar? Olha, Alberto já saiu.
—
Ah! Ocorre-me uma ideia — exclamei, puxando José pelo braço.
—
Qual?...
—
Chamemos o desconhecido — disse eu com mais força —; o caso é sério e devemos
banir estes terrores infantis.
E
sem esperar mais tempo, pus-me a gritar.
—
Ó, Senhor! Ó, senhor destas ruínas! Olá!...
—
Olá...
Poucos
minutos depois, a luz apareceu e o sombrio habitador das ruínas apresentou-se
no limiar de uma porta, mudo, impassível como uma estátua; através, porém, de
seus óculos, os olhos vivos e penetrantes como pontas de floretes estavam fixos
sobre nós.
Senti-me
esmorecer-me um momento; porém, lembrando-me de Alberto, a resolução voltou.
—
Senhor — disse eu —, um nosso companheiro... um amigo que veio conosco
desapareceu aqui, nós o buscamos; porém, é impossível achá-lo sem vosso auxílio;
socorrei-nos, pois.
O
desconhecido abanou lentamente a cabeça, e disse com voz rouca e pausada:
—
Moços, fizestes mal, muito mal em vir aqui a estas horas; há trinta anos que um
drama de lágrimas e de sangue reproduz-se aqui todas as noites entre o pio das
aves e o sibilo do vento! Fizestes mal, muito mal em vir aqui!...
Senti-me
possuído de um terror inexprimível a estas palavras e José agarrou-se, lívido,
a meu ombro. Entretanto, era preciso ver o fim de tudo isto, saber de Alberto;
venci a minha repugnância e continuei:
—
Mas atendei, senhor; é impossível agora partirmos sem o nosso companheiro;
ajudai-nos a procurá-lo, nós vos seremos reconhecidos.
Nesse
momento, um turbilhão de vento úmido e gelado entrou pelo vasto recinto e o
trovão fez-se ouvir surdo e medonho no céu.
—
Vedes? — murmurou o velho. —A tempestade principia a sua orquestra; em breve
tempo os acordarão para cantar a monodia dos túmulos!... Muitos são os que
repousam aqui! Muitos!... Entre eles, há vinte anos que minha filha dorme no
seu leito de pedra, vestida ainda com as suas roupagens de noiva e a sua coroa
de ciprestes! Tenho chorado lágrimas de sangue, tenho me arrebentado em soluços
há dez anos sobre os ladrilhos de sua sepultura para que ela me diga uma dessas
palavras ternas e doces que repetia outrora nos braços de seu noivo, para que
ela me perdoe! Porém, tudo é baldado!
E
o desconhecido calou-se; eu estava impressionado, não mais de terror, porém de
uma tristeza sombria, de uma compaixão sem termos.
No
entretanto, a tempestade crescia e o vento uivava dolorosamente nos arvoredos
lá de fora.
—
Bem — disse o desconhecido, lentamente, do vão da porta —, vamos procurar o
vosso companheiro; quero ficar só, quero que saiais o mais depressa possível;
vamos.
Começamos
então a errar pelos aposentos sombrios do arruinado edifício; adiante ia o
desconhecido com a vela na mão, lento e pausado; eu o seguia; José era
arrastado por mim, lívido e convulso.
Depois
de termos atravessado em vão alguns aposentos e corredores, depois de havermos
gasto talvez um quarto de hora nessa sombria procissão, um gemido doloroso e
pungente, como partido de um leito de morte, chegou a nossos ouvidos.
Meus
cabelos se eriçaram; José deu um grito e puxou-me para trás.
—
Oh! — murmurou o velho. — É do leito dela que saiu aquele gemido! Sim, porque é
aí que ela dorme! Oh! Deve-lhe doer muito a ferida que tem no seio, que verte
continuamente ondas de sangue!... Muito!
Assim
falando, caminhou para o lugar donde partira o gemido! Era no fundo de um
pequeno aposento, de uma porta que dava para um jazigo.
Chegando
aí, ergue a vela à altura da cabeça para melhor ver; por detrás dele, mergulhei
ávidos olhos no jazigo; um homem estava de bruços no chão e sua respiração
soava estrepitosa.
Recuei
um passo.
—
Aproximai-vos, aproximai-vos, vinde vê-lo; é o vosso amigo! Através dos frios
ladrilhos, que segredos não terá ele murmurado à minha filha?
Cheguei-me
de novo e contemplei atentamente o vulto; era Alberto, não havia duvidar-se.
Tomei-o
nos braços, ergui-o: estava lívido e banhado em suores frios, seus dedos
crispados pareciam cerrar fortemente alguma coisa.
—
Alberto! —exclamei, procurando pô-lo de pé; ele abriu os olhos, correu-os em
torno, desvairado, como se procurasse alguém e depois tornou-os a cerrar,
exalando um suspiro.
—
Ajudai-me a levá-lo — disse eu a José — e saímos.
Poucas
horas depois, tínhamos conseguido chegar a casa; Alberto ressonava febril em
seu leito; José tinha ido ver o médico e eu velava o doente.
***
Três
dias tinham decorrido depois dessa noite sinistra; à cabeceira de Alberto, de
quando em quando aparecia a figura calma e pálida do Dr. V., que examinava
atentamente o doente e depois retirava-se para conversar comigo e José.
O
delírio e a febre não tinham abandonado o pobre mancebo; de contínuo, no seu
desvairar, ele repetia palavras suplicantes, parecia invocar uma personagem
desconhecida, depois supunha apertar no seio alguma imagem querida e,
encontrando o vácuo; caía desmaiado sobre o travesseiro.
Dessa
noite fatal uma impressão profunda tinha-me ficado n'alma; aquele velho
estranho, suas palavras fantásticas, tudo estava vivamente gravado em minha
imaginação.
José
estava ocupado; Alberto, livre um momento de seu delírio, parecia dormir;
aproveitei a ocasião para conversar com o Dr. V. e ver o seu modo de pensar a
respeito de todos esses fatos extraordinários.
Era
o Dr. V. um homem de cinquenta anos, sua mocidade tinha-se passado debaixo do
céu brumoso da Alemanha para onde o mandara seu pai estudar.
Apesar
de ter no cérebro um mundo de inteligência e de conhecimentos, o Dr. V. tinha
um modo de pensar estranho e admitia as crenças as mais absurdas.
A
Alemanha é o país das alucinações da inteligência — disse-o Gerard de Nerval —;
dos abismos da ciência germânica partem vapores que atordoam o espírito. O
doutor tinha-se embebido de todos esses sonhos nebulosos de todos esses
sistemas extraordinários de excentricidade que povoam a terra de Schiller e de
Goethe.
—
Muitas vezes ouvi eu o som da rabeca gemedora de Krespel — dizia-me ele — e o
eco dos sinos de cristal debaixo do sabugueiro; Klein Zach é uma realidade na
Alemanha, e os Copelius encontrei-os aos centos.
—
Bem, doutor — disse-lhe eu, depois de haver ainda uma vez contado a história da
noite das ruínas —, dizei-me francamente o vosso modo de pensar a respeito
disto; não julgais que em todo este drama há alguma coisa de além-túmulo?
—
Quem sabe? —murmurou o doutor, limpando amorosamente os vidros dos óculos com o
lenço de assoar. Quem sabe?...
—
Porém, dizei-me, a aparição dos espíritos não repugna a razão, não é contrária
à ideia de bondade e justiça que depositamos em Deus?
—
A crença no mundo tenebroso — respondeu-me o doutor — tem existido em todos os
povos, em todas as gerações. Santo Agostinho, na "Cidade de Deus", e
Legendre, no seu "Tratado da Opinião", dizem que negar o prestígio
dos demônios e dos espíritos é não crer na Escritura Santa; a Bíblia nos fala
da aparição de Samuel e muitos outros fatos sobrenaturais; Suetônio conta que,
depois de assassinado, Calígula errava em seu palácio à noite, sob a forma de
uma larva gemedora. Além disto a razão nos atesta claramente que depois desta
vida haverá um lugar de recompensa e outro de punição; ora, quem nos diz que a
felicidade dos bons não será uma vida nova em um planeta de delícias, e o
castigo dos maus errarem continuamente por esse mundo em que viveram até que,
na consumação dos séculos, quando estiverem purificados dos seus delitos,
mergulhem-se no seio da divindade de que são aparências?
Confesso
que gostei desta tirada panteísta do doutor. Tive sempre uma inclinação
irresistível pelas doutrinas de Espinosa.
Restava-me,
entretanto, uma dúvida.
—
Admito a vossa hipótese; porém, dizei-me que culpa têm os vivos em tudo isto
para serem perseguidos pelas sombras e aparições?...
—
Os espíritos — replicou o doutor, sorvendo uma pitada de rapé —, os espíritos
também são muitas vezes emissários da divindade; ora, é para punir um malfeitor
que eles aparecem, ora para um aviso celeste, ora, enfim, para aliviar muito
sofrimentos. Assim, aparecem aos assassinos, as sombras de suas vítimas; aos
virtuosos, o espectro do finado que lhes vem pedir orações; aos mancebos, a
imagem de suas noivas ou amantes, mortas na flor dos anos...
Nesse
momento, um gemido triste e prolongado partiu do seio de Alberto; eu e o doutor
voltamo-nos vivamente para o leito do doente.
Alberto
tinha-se solevantado no travesseiro e, com a boca espumante, os braços
estendidos, os olhos inflamados e sanguinolentos, olhava fixamente para o fundo
do aposento e murmurava:
—
Vem! Vem!...
—
Meu Deus! Doutor, o que será isto, vede como está! —exclamei eu.
—
Oh! Dá-me um pano de tua branca vestimenta, anjo de asas douradas e diadema de
luz!... Leva-me contigo para o país dos sonhos eternos. Vem, porque minha alma
chora de amores por ti!
Dizendo
estas palavras, o moço escondeu o rosto abraseado nas mãos e caiu esmorecido
sobre o leito.
—
Vedes? —disse o doutor com voz sinistra. Vedes?
—
Sabe Deus só o que vai por aquela cabeça.
Uma
dor amarga e sem limites passou-me pela alma; encostei a fronte sobre a mão e
comecei a pensar.
Seriam
onze horas da noite, tudo estava quieto e silencioso; uma bugia ardia junto do
leito do doente, o resto perdia-se na sombra.
De
repente, um calafrio correu-me pelo corpo; ergui-me pálido.
—
Que tendes? —perguntou-me o doutor.
—
Não ouviste um ruído de passos ali no fundo? — disse eu, apontando.
—
Não — respondeu-me o médico.
Nesse
momento, o ruído fez-se ouvir de novo, porém mais pronunciado, mais distinto.
O
doutor, até ali impassível, franzia o sobrolho e levantou-se.
—
Por Deus que agora ouvi eu! — exclamou, tomando a vela e dirigindo-se para o
fundo do aposento.
Eu
o segui.
Tudo
estava sossegado; nada demais havia ali.
—
Vede, no entanto: eu ouvi bem distintamente um arrastar de passos.
—
E eu.
O
doutor voltou lentamente, colocou a vela sobre a mesa e pôs-se a meditar;
pensativo, sentei-me também. Alberto ressonava suarento e febril, e a vela
ardia muda e silenciosa no seu castiçal de bronze.
Alguns
dias passaram-se depois disto; o delírio tinha abandonado Alberto, porém o moço
estava lívido e descarnado e sua razão parecia ter-se abalado profundamente.
Uma
noite, tinha o Dr. V. ido à sua casa fazer algumas determinações; José o
acompanhou e eu apenas achava-me ao lado do doente. Depois de me haver
tristemente contemplado com seus olhos amortecidos, meu pobre amigo tomou-me a
mão e disse:
—
Eu sei que não me levantarei mais daqui, por isso é preciso que te conte tudo,
tudo antes de morrer...
—
Morrer! Alberto, não digas isso! — exclamei, aproximando-me mais do leito.
—
Não me procures iludir — prosseguiu ele —; a voz que me murmurou esta sentença
ainda a tenho eu no ouvido; escuta-me.
Ele
acomodou-se um momento no seu leito e continuou:
—
Naquela noite em que fomos às ruínas, afastei-me de ti e de José, bem te
lembras: enfiei-me pelos corredores e aposentos e depois de errar alguns
momentos, senti uma curiosidade irresistível, uma atração insuperável chamar-me
para um ponto das ruínas; caminhei; de repente, uma espécie de harmonia misteriosa,
doce, baixinha, chegou-me ao ouvido e um clarão tépido e brando veio de longe
ferir-me os olhos; adiantei-me mais; então, divisei um vulto de mulher que me
estendia os braços. Oh! Ela era bela como um anjo de Deus; seus longos cabelos
de reflexos dourados escapavam em ondas de uma grinalda de ciprestes que tinha
na cabeça, seus olhos eram puros e meigos, sua tez branca como a neve, de um
lado do seio suas alvas roupagens estavam caídas, e uma onda negra de espumoso
sangue corria em borbotões de uma larga ferida, e ensopava-lhe a vestimenta.
"Fiquei
estático no meu lugar, imóvel como se fosse ferido do raio. Então a sombra
moveu imperceptivelmente os lábios e sua voz harmoniosa me chegou aos ouvidos:
“— Vem! —dizia ela.
—
Eu ouvi, meu amigo! Eu ouvi — disse Alberto, incendendo os olhos —; não foi
ilusão; tão certo como estou neste leito de morte e como daqui só sairei para o
cemitério, eu a ouvi!
“Segunda
vez mais lânguida, mais triste ela me disse:
“—
Vem!... Então um calafrio de felicidade correu-me pelo corpo, minhas artérias
bateram com violência e eu estendi o braço dando um passo. Tudo desapareceu e
eu apenas encontrei o vácuo, caí... quando despertei tu me erguias."
Alberto
respirou um momento e com voz cansada continuou:
—
Agora todas as noites eu a vejo bela, ensanguentada sempre! Eu a vejo e amo-a.
porque ela é um anjo, porque ela me chama! Eu não posso mais viver, há uma voz
que me murmura n'alma que, quando o gelo da morte me cair sobre os olhos, eu
serei eternamente feliz; oh! eu não quero mais viver!
Dizendo
isto, Alberto caiu desanimado sobre o travesseiro. Um momento depois, dormia um
profundo sono. À noite chegou o doutor.
—
Como vai o moço? disse.
—
Melhor, falou sossegadamente comigo e depois adormeceu; notei-lhe apenas um
desânimo e uma tristeza sem termos.
—
Bem, vamos vê-lo.
E
o Dr. V. encaminhou-se para o leito de Alberto, ouviu-lhe a respiração,
passou-lhe a mão pela testa, tomou o pulso e, voltando-se para mim, disse:
—
Sabes uma coisa? Vosso amigo está salvo.
Imensa
foi a alegria que senti dentro d'alma a estas palavras; parecia-me que tiravam
um grande peso de sobre meu peito, que despertava de um pesadelo.
Uma
hora depois o doutor retirou-se, dizendo que, como não havia mais perigo, era
desnecessária a sua presença ali essa noite, que no dia seguinte voltaria.
Como
Alberto dormia sossegadamente, deixei um criado junto a seu leito e fui para um
quarto descansar um pouco.
Depois
de haver dormido longo tempo, fui despertado pelo criado, que me sacudia
ansiosamente de um lado para outro, repetindo o meu nome.
—
Que diabo é isto? —gritei eu sentando-me na cama.
—
Oh, senhor, levante-se; levante-se depressa que o Sr. Alberto morre!
Pular
da cama, enfiar meu sobretudo, atravessar a casa e ir ao quarto de Alberto foi
um momento.
Quando
cheguei, o meu amigo estava mais lívido que a morte, o suor corria-lhe em
abundância na fronte, seus olhos ardiam de uma chama terrível.
—
Alberto! Alberto! O que tens? —disse eu, arrojando-me ao leito e tomando-lhe a
mão.
—
Vou morrer, meu amigo! — murmurou ele, com voz fraca e arquejante.
—
Oh, não! Tu não morrerás! — exclamei eu. —Guilherme, vai à casa do Dr. V.,
dize-lhe que venha a toda a pressa, a correr.
—
É inútil, murmurou Alberto, é inútil... Sinto já o hálito da morte passar-me
pelo rosto, sacudir-me os cabelos!...
—
Pelo contrário, meu amigo, o doutor disse que em poucos dias ficarias bom.
—
Não me dês esperanças — disse ele, passando a mão pelo rosto onde a morte
principiava horrivelmente a sua obra de demolição. —Não há medicina que me
cure! Hoje eu a vi pela última vez, seu rosto estava mais belo do que nunca,
porém o sangue que lhe corria do seio era mais abundante! Ela me chamou com
ânsia... Preciso ir... Há alguma coisa que me diz dentro d'alma... que em
poucos minutos estarei com ela!
Aqui
a voz do meu amigo foi se tornando cada vez mais fraca e rouquenha. Ele pendeu
a cabeça ao meu ombro, e eu sentia seu peito ofegar convulsivamente.
Um
instante depois, ele ergueu de novo a cabeça; seu semblante estava
horrivelmente descomposto! Então, com essa voz triste e sumida, voz de
moribundo, falou assim:
—
Entretanto... quantas saudades... não levo eu deste mundo! Quanta amargura...
não tenho agora na alma!
E
as lágrimas, precursoras da morte, gota a gota caíram de seus olhos.
—
Oh, não ter-vos junto de mim... nesta hora suprema!... Oh, meu pai!... Oh, minha
mãe!... não poder vos abraçar e...
Alberto
calou-se de novo, sua cabeça caiu sobre meu ombro, de novo a voz dele, surda,
murmurou estas palavras:
—
Adeus... adeus...
Depois,
cerrou-me a mão fracamente e pareceu descansar um pouco.
Alguns
minutos passaram-se e a mão de Alberto, que eu guardava entre as minhas,
tornou-se gelada: afastei-lhe rapidamente a cabeça do seio, ele rolou inerte
sobre o leito. Estava morto!
Nesse
momento, a lamparina que ardia em um canto exalou seu último clarão e
apagou-se. Ouvi, então, um ruído semelhante ao de um vestido de mulher; depois,
uma sombra branca, lenta, atravessou diante de mim até o leito de Alberto, e
ouvi o estalar de um beijo sobre a face pálida e fria de meu desgraçado amigo;
depois, resvalando no ar, desapareceu a sombra.
Saí
doido do aposento. O dia entrava pelas janelas.
—
Como vai Alberto? — perguntou-me José, quando saía do seu quarto, esfregando os
olhos.
—
Já não existe! —disse eu soluçando.
—
Morto! — exclamou José, e lançou-se desesperado em meus braços.
***
Dois
anos tinham-se passado; de meus antigos companheiros, um dormia à sombra dos
ciprestes do cemitério; outro tinha partido; para onde, não o sabia eu.
Por
uma tarde de estio eu tinha ido passear ao hospício de alienados de São Paulo.
Entre os desgraçados, que aí viviam, deparei com um, cujo aspecto causou-me uma
impressão extraordinária.
Seu
olhar era sinistro e medonho, seus dentes, cerrados continuamente, rangiam como
os de um animal feroz.
—
Quem é este homem? — perguntei a um guarda que me seguia.
—
É um ente estranho — respondeu-me o guarda. Dizem que, em um acesso de furor,
dera uma facada em uma filha jovem em véspera de casar-se. Principiou a sua
loucura por fugir dos homens e da sociedade, morou há três anos em as ruínas da
Glória...
—
Ah, esperai! — clamei eu, contemplando fixamente o louco.
Era
o desconhecido; sim, era o hóspede das ruínas; porém, horrivelmente mudado. Ao
conhecê-lo, todo o drama sombrio do passado passou-me pela cabeça, as lágrimas
rebentaram-me aos olhos e eu escapei-me, correndo como um doido; do hospício dos
doidos.
Fonte: Diário de
Minas/MG, edição de 8 de agosto de 1867.
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