LA BELLE DAME SANS MERÇI - Conto de Terror - Eugenio SArt
LA BELLE DAME
SANS MERÇI
Eugenio SArt
Tradução de Paulo Soriano
Contemplam
os dias
sua
beleza espectral
caminha
tocada por um esplendor
imortal
os
ossos quebrados
e
o olhar ferido
eu
a vejo afastar-se cruzando a luz
ao
país do esquecimento
la
belle dame sans merçi
la
belle dame sans merçi
la
belle dame sans merçi
Eu
a vejo partir
Interpretada por Loquillo
É
altiva, atlética e arrogante como certos animais que possuem aquela beleza
selvagem e exótica, que nos faz contemplá-los arrebatados, atingidos pelo sopro
do mistério. Veste-se elegantemente — com lúbrica sobriedade —, tem nobreza no
porte e contempla a vida a partir de uma dureza distante que a distancia do
resto do mundo.
Mal
me fala ou me olha nos olhos. Creio que, na verdade, ela não fala muito, nem
comigo, nem com ninguém. Tudo são gestos, suaves movimentos, a elegância das
panteras impressa em sua musculatura compacta e longilínea. Para que dizer
alguma coisa?
O
pacto já foi feito de antemão e todas as palavras já foram ditas.
Já
sobra tudo que não seja violência.
Limita-se
a vir uma vez por mês, chamando à minha porta com uma simples batida no meio da
noite, sempre nos dias de semana, e entra em minha casa assim que eu abro, como
se a casa fosse sua.
Não
espera amabilidades. Não deixa que a ajude a tirar o casaco ou pendurá-lo no
cabide, nem que lhe prepare um chá, ou que eu a convide para sentar-se ou beber
algo em uma estéril espera. Tampouco espera conversas ociosas ou que diga
coisas para matar o tempo e ficar bem com ela.
Não
temos essa espécie de relação.
Ela
mesma se encarrega de pendurar o próprio casaco, tirar os caríssimos sapatos de
saltos altos de marca, o lenço de pescoço que custa o que muitos ganham em um
mês, os anéis coalhados de pedras proibitivas e os brincos, que costuma deixar
em um cinzeiro ornamental, no console do salão.
Sem
olhar para mim, altiva, até com certo desprezo, ela entra na masmorra para que
seja acorrentada ao teto e agrilhoada, e que eu passe a preparar os ganchos, a
abrir o armário com todas as tétricas ferramentas da minha profissão.
E
então, enquanto ela se pendura, entregue às argolas presas ao teto, e amarrada
por correntes, eu prego os ganchos em sua pele e passo a golpeá-la para fazê-la
sangrar.
Ela
sai de madrugada, enxugando o sangue, quando suas feridas já se fecharam,
malgrado não completamente. Algumas vezes, eu a perfurei com a faca
reiteradamente, cortei-lhe o braço, rasguei-lhe a língua, arranquei-lhe os
olhos; outras vezes, esfolei-a lentamente, lacerando-lhe a pele em tiras até
fazê-la gritar e gemer, completamente despelada sob o silêncio da mordaça.
Sempre,
sempre acaba morta.
Este
é um requisito iniludível, ela fez-me saber.
E
sempre acorda de novo, após a morte... e os cortes em sua pele se fecham e seu
rosto se levanta, velado pela melena escura, profundamente negra, brilhante
como a plumagem de um corvo.
Então
se veste e vai embora.
E,
antes de fechar a porta, deixa o dinheiro sobre o console.
Muito,
muitíssimo dinheiro. Tanto que eu poderia praticamente viver com o que me paga.
Minha
relação com a violência vem de muito tempo.
Para
ser como eu, é preciso abrigar muita raiva dentro de si mesmo e, quando chegar
a hora, não fazer muitas perguntas, simplesmente agir, direcionar essa ira ao
lugar e pessoa certas.
Não
sinto orgulho de muitas das coisas que tive que fazer na vida para ganhar o meu
pão. Eu estava com os de Franco, nos últimos tempos da ditadura, a soldo da
Polícia Secreta, de madrugada, em masmorras infectas, extraindo, a golpes,
informações de pobres diabos que me pediam o favor matá-los. Depois veio a
transição e só contrataram meus serviços como leão-de-chácara de bordel e
cobrador de dívidas. A polícia já não deixava as pessoas fazerem as coisas
d’outros tempos, advertiam-nas, às vezes e prendiam-nas e lhes davam um puxão
de orelha, ou duas bofetadas, para que se enquadrassem. As coisas mudaram.
E
fui ficando velho, mas, ainda assim, conservo alguma força, algum vigor. Sou
grande, corpulento, de grandes punhos. Já fui boxeador. Eu não era bom porque
dava cotoveladas, mordia, quase sempre me desqualificava e deixava o outro cara
inutilizado para o esporte. Fiz isso com alguns. E eu gostava de fazer isso.
Gostava.
Olho
para minha imagem no espelho, o nariz quebrado, a mandíbula quadrada, as rugas
nítidas — profundas — na face, o espaço entre as grossas sobrancelhas dobrado
em si mesmo, como se caísse sobre elas, e vejo o que o tempo faz com todos que
viveram o suficiente.
Envelhecer
é um massacre, dizia Bukowski.
Também
não tive filhos ou familiares que possam lamentar minha perda ou me acompanhar
nesse trânsito da existência.
As
mulheres, como outros seres humanos, foram apenas formalidades para mim.
Até
que ela chegou.
Não
sei, sinceramente, como ela faz aquilo, como fecha suas feridas, como se cura e
recupera vigor, deve ser algo antigo, algo inato ou adquirido, que não pode ser
planejado ou refletido. Não sei por que ela é como é ou por que se comporta
como se comporta. Mas eu sinto a razão pela qual deixa que seja feito tudo o
que eu faço e por que, de vez em quando, ela me pede para virar o parafuso e
que eu seja um pouco, apenas um pouquinho, mais cruel do que da última vez,
mais implacável, mais duro com ela.
No
início, eram apenas golpes. Coloquei meu soco-inglês e a rebentava com socos
nas costelas, no estômago, no rosto, nos seios, em todo o seu corpo,
sacudindo-a como se fosse um saco de ginástica, ouvindo o estalar das fraturas,
o esmagamento dos órgãos sob a carne machucada, as maçãs do rosto, as
sobrancelhas, o esfacelamento lento de todos os músculos e ossos de seu corpo.
Então pediu-me que usasse algo mais contundente, como um bastão ou um porrete.
Depois vieram os cortes, com o cortador, com uma faca ou com uma navalha e
depois os ganchos, as chaves de fenda, as torções, as fraturas, as ablações, as
tenazes, as lancetas, ir cortando-a lentamente e separando sua pele das fáscias
e do tecido conjuntivo dos músculos. Um processo tão doloroso que muitos morrem
quando chegam a este ponto.
Ela
não; ela só morreu nas primeiras vezes.
Depois,
passou a suportar.
Então
me pediu que esvaziasse seus órgãos sexuais, que lhe cortasse os seios.
Eu
fiz o que me pediu. Certa feita, eu estava a ponto de vomitar.
Daqui
a pouco, já não mais saberei o que fazer. E creio que ela tampouco saberá. Eu
já a estrangulei, enfiei-lhe a cabeça num saco plástico ou na banheira, usei
ratos, serpentes, torniquetes, prensas de carpintaria, máquinas de trepanação,
perfuradoras, líquidos abrasivos, ácidos...
Mas
creio que a entendo.
Ela
precisa sentir tudo isso para poder lidar com o resto de sua vida disforme,
essa vida noturna e faminta, de varandas e telhados à noite, de coberturas de
prédios, becos, criptas e clubes de madrugada, nos quais encontra suas vítimas.
De
alguma forma, ela sente que, quando chega à minha casa, paga pelo que fez e
pelo que será forçada a fazer para sobreviver, para obter alimento; então ela
ajusta as contas consigo mesma por todos os crimes, pelas mortes, pelas pessoas
inocentes de quem arrebatou a as vidas.
Talvez
já tenha sido uma boa pessoa, como creio que já fomos todos em algum momento de
nossas vidas, e anseia por esse tempo que muitos já olvidaram.
Às
vezes, quando eu lhe rasgo um mamilo, quando a dor se faz extrema, ele se
permite entreabrir a boca e então eu vejo os brancos caninos assomando. Não
importa se você os arranca, eles brotam novamente.
Mas
quando a sua dor é extrema, quando a vejo assim, espectral, belíssima, tão
forte e tão frágil ao mesmo tempo, prestes a desmaiar e chorar, alquebrada pela
dor, às vezes, sinto um vazio no estômago e gostaria de pedir-lhe que fizesse
comigo uma vez, apenas uma vez, o que eu faço com ela.
Porque
eu... Eu sei que não sobreviveria.
E
porque morrer é bem melhor do que se sentir tão morto quanto eu me sinto.
E
ela sabe disso. Ela o entende.
E
talvez por isto até me mate, sem chegar a converter-me, quando eu deixar de lhe
ser útil.
Eu
gostaria.
Triste
regressar
De
onde ninguém volta
Reflita
em seu rosto a transparência
Da
morte
É
uma miragem que nos seduz
Um
calafrio que permanece
Eu
a vejo afastar-se cruzando a luz
ao
país do esquecimento
La
belle dame sans merci
Eu
a vejo partir
Texto integrante da
revista bilíngue (português e espanhol) “Relatos Fantásticos”, vol. II. Para
acessá-la na íntegra, clique aqui.
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