LA BELLE DAME SANS MERÇI - Conto de Terror - Eugenio SArt


 

LA BELLE DAME SANS MERÇI

Eugenio SArt

Tradução de Paulo Soriano

 

Contemplam os dias

sua beleza espectral

caminha tocada por um esplendor

imortal

os ossos quebrados

e o olhar ferido

eu a vejo afastar-se cruzando a luz

ao país do esquecimento

la belle dame sans merçi

la belle dame sans merçi

la belle dame sans merçi

Eu a vejo partir

 José María Sanz e Igor Pascual

Interpretada por Loquillo

 

 

É altiva, atlética e arrogante como certos animais que possuem aquela beleza selvagem e exótica, que nos faz contemplá-los arrebatados, atingidos pelo sopro do mistério. Veste-se elegantemente — com lúbrica sobriedade —, tem nobreza no porte e contempla a vida a partir de uma dureza distante que a distancia do resto do mundo.

Mal me fala ou me olha nos olhos. Creio que, na verdade, ela não fala muito, nem comigo, nem com ninguém. Tudo são gestos, suaves movimentos, a elegância das panteras impressa em sua musculatura compacta e longilínea. Para que dizer alguma coisa?

O pacto já foi feito de antemão e todas as palavras já foram ditas.

Já sobra tudo que não seja violência.

Limita-se a vir uma vez por mês, chamando à minha porta com uma simples batida no meio da noite, sempre nos dias de semana, e entra em minha casa assim que eu abro, como se a casa fosse sua.

Não espera amabilidades. Não deixa que a ajude a tirar o casaco ou pendurá-lo no cabide, nem que lhe prepare um chá, ou que eu a convide para sentar-se ou beber algo em uma estéril espera. Tampouco espera conversas ociosas ou que diga coisas para matar o tempo e ficar bem com ela.

Não temos essa espécie de relação.

Ela mesma se encarrega de pendurar o próprio casaco, tirar os caríssimos sapatos de saltos altos de marca, o lenço de pescoço que custa o que muitos ganham em um mês, os anéis coalhados de pedras proibitivas e os brincos, que costuma deixar em um cinzeiro ornamental, no console do salão.

Sem olhar para mim, altiva, até com certo desprezo, ela entra na masmorra para que seja acorrentada ao teto e agrilhoada, e que eu passe a preparar os ganchos, a abrir o armário com todas as tétricas ferramentas da minha profissão.

E então, enquanto ela se pendura, entregue às argolas presas ao teto, e amarrada por correntes, eu prego os ganchos em sua pele e passo a golpeá-la para fazê-la sangrar.

Ela sai de madrugada, enxugando o sangue, quando suas feridas já se fecharam, malgrado não completamente. Algumas vezes, eu a perfurei com a faca reiteradamente, cortei-lhe o braço, rasguei-lhe a língua, arranquei-lhe os olhos; outras vezes, esfolei-a lentamente, lacerando-lhe a pele em tiras até fazê-la gritar e gemer, completamente despelada sob o silêncio da mordaça.

Sempre, sempre acaba morta.

Este é um requisito iniludível, ela fez-me saber.

E sempre acorda de novo, após a morte... e os cortes em sua pele se fecham e seu rosto se levanta, velado pela melena escura, profundamente negra, brilhante como a plumagem de um corvo.

Então se veste e vai embora.

E, antes de fechar a porta, deixa o dinheiro sobre o console.

Muito, muitíssimo dinheiro. Tanto que eu poderia praticamente viver com o que me paga.

Minha relação com a violência vem de muito tempo.

Para ser como eu, é preciso abrigar muita raiva dentro de si mesmo e, quando chegar a hora, não fazer muitas perguntas, simplesmente agir, direcionar essa ira ao lugar e pessoa certas.

Não sinto orgulho de muitas das coisas que tive que fazer na vida para ganhar o meu pão. Eu estava com os de Franco, nos últimos tempos da ditadura, a soldo da Polícia Secreta, de madrugada, em masmorras infectas, extraindo, a golpes, informações de pobres diabos que me pediam o favor matá-los. Depois veio a transição e só contrataram meus serviços como leão-de-chácara de bordel e cobrador de dívidas. A polícia já não deixava as pessoas fazerem as coisas d’outros tempos, advertiam-nas, às vezes e prendiam-nas e lhes davam um puxão de orelha, ou duas bofetadas, para que se enquadrassem.  As coisas mudaram.

E fui ficando velho, mas, ainda assim, conservo alguma força, algum vigor. Sou grande, corpulento, de grandes punhos. Já fui boxeador. Eu não era bom porque dava cotoveladas, mordia, quase sempre me desqualificava e deixava o outro cara inutilizado para o esporte. Fiz isso com alguns. E eu gostava de fazer isso. Gostava.

Olho para minha imagem no espelho, o nariz quebrado, a mandíbula quadrada, as rugas nítidas — profundas — na face, o espaço entre as grossas sobrancelhas dobrado em si mesmo, como se caísse sobre elas, e vejo o que o tempo faz com todos que viveram o suficiente.

Envelhecer é um massacre, dizia Bukowski.

Também não tive filhos ou familiares que possam lamentar minha perda ou me acompanhar nesse trânsito da existência.

As mulheres, como outros seres humanos, foram apenas formalidades para mim.

Até que ela chegou.

 

Não sei, sinceramente, como ela faz aquilo, como fecha suas feridas, como se cura e recupera vigor, deve ser algo antigo, algo inato ou adquirido, que não pode ser planejado ou refletido. Não sei por que ela é como é ou por que se comporta como se comporta. Mas eu sinto a razão pela qual deixa que seja feito tudo o que eu faço e por que, de vez em quando, ela me pede para virar o parafuso e que eu seja um pouco, apenas um pouquinho, mais cruel do que da última vez, mais implacável, mais duro com ela.

No início, eram apenas golpes. Coloquei meu soco-inglês e a rebentava com socos nas costelas, no estômago, no rosto, nos seios, em todo o seu corpo, sacudindo-a como se fosse um saco de ginástica, ouvindo o estalar das fraturas, o esmagamento dos órgãos sob a carne machucada, as maçãs do rosto, as sobrancelhas, o esfacelamento lento de todos os músculos e ossos de seu corpo. Então pediu-me que usasse algo mais contundente, como um bastão ou um porrete. Depois vieram os cortes, com o cortador, com uma faca ou com uma navalha e depois os ganchos, as chaves de fenda, as torções, as fraturas, as ablações, as tenazes, as lancetas, ir cortando-a lentamente e separando sua pele das fáscias e do tecido conjuntivo dos músculos. Um processo tão doloroso que muitos morrem quando chegam a este ponto.

Ela não; ela só morreu nas primeiras vezes.

Depois, passou a suportar.

Então me pediu que esvaziasse seus órgãos sexuais, que lhe cortasse os seios.

Eu fiz o que me pediu. Certa feita, eu estava a ponto de vomitar.

Daqui a pouco, já não mais saberei o que fazer. E creio que ela tampouco saberá. Eu já a estrangulei, enfiei-lhe a cabeça num saco plástico ou na banheira, usei ratos, serpentes, torniquetes, prensas de carpintaria, máquinas de trepanação, perfuradoras, líquidos abrasivos, ácidos...

Mas creio que a entendo.

Ela precisa sentir tudo isso para poder lidar com o resto de sua vida disforme, essa vida noturna e faminta, de varandas e telhados à noite, de coberturas de prédios, becos, criptas e clubes de madrugada, nos quais encontra suas vítimas.

De alguma forma, ela sente que, quando chega à minha casa, paga pelo que fez e pelo que será forçada a fazer para sobreviver, para obter alimento; então ela ajusta as contas consigo mesma por todos os crimes, pelas mortes, pelas pessoas inocentes de quem arrebatou a as vidas.

Talvez já tenha sido uma boa pessoa, como creio que já fomos todos em algum momento de nossas vidas, e anseia por esse tempo que muitos já olvidaram.

Às vezes, quando eu lhe rasgo um mamilo, quando a dor se faz extrema, ele se permite entreabrir a boca e então eu vejo os brancos caninos assomando. Não importa se você os arranca, eles brotam novamente.

Mas quando a sua dor é extrema, quando a vejo assim, espectral, belíssima, tão forte e tão frágil ao mesmo tempo, prestes a desmaiar e chorar, alquebrada pela dor, às vezes, sinto um vazio no estômago e gostaria de pedir-lhe que fizesse comigo uma vez, apenas uma vez, o que eu faço com ela.

Porque eu...  Eu sei que não sobreviveria.

E porque morrer é bem melhor do que se sentir tão morto quanto eu me sinto.

E ela sabe disso. Ela o entende.

E talvez por isto até me mate, sem chegar a converter-me, quando eu deixar de lhe ser útil.

Eu gostaria.

 

Triste regressar

De onde ninguém volta

Reflita em seu rosto a transparência

Da morte

 

É uma miragem que nos seduz

Um calafrio que permanece

Eu a vejo afastar-se cruzando a luz

ao país do esquecimento

 

La belle dame sans merci

Eu a vejo partir

 

 

Texto integrante da revista bilíngue (português e espanhol) “Relatos Fantásticos”, vol. II. Para acessá-la na íntegra, clique aqui.

 

 


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