O SÁBIO E A SERPENTE - Conto Cruel - Mário Terrabatava


 

O SÁBIO E A SERPENTE

Mário Terrabatava

 

— Foi aqui — disse a menina “cabloca”, de cabelos anelados. — Foi aqui mesmo que vi a danada!

— Tem certeza?  — indagou o velho naturalista. 

— O senhor acha que eu sou tonta? Ela vem bem pra cá, pra debaixo da cajazeira que caiu, mas sai pra tomar banho de sol. Todo dia ela faz isso, bem quentinha e feliz, no lombo da cajazeira...

— Seus pais sabem disso?

— Sabem, mas não ligam – disse a menina “esprivitada”, de ruços cabelos  anelados e olhos cor de mel.

— Onde está a cobra? — perguntou o naturalista, ambientalista, ecologista ou coisa similar.

A menina esperta — com seus lábios grossos de negra, olhos puxados de índia e tez bem clarinha de branquela — meteu a mão na cintura e balançou o corpinho esquálido, num gesto arisco, típico das mulheres desaforadas de nosso imenso sertão, respondendo:

— Você é mouco? É doido? Quantas vezes já lhe disse que é aqui? É aqui que a cobrinha de papo roxo se entoca. Quer saber mais que eu?

E levantou o galho seco, repleto de fungos, da cajazeira derribada.

Se há algo mais rápido que o pensamento humano, tal é o bote de uma víbora peçonhenta.

A rodilha da serpente funciona como uma mola eficaz. O único impulso significa a morte certa. E estavam eles nos confins do Brasil. Nos estertores de  um Brasil profundamente esquecido.

O nobre ambientalista viu a criança gritar em desespero, porque a cobra lhe dera o beijo silencioso e fatal. O soro milagroso estava a alguns poucos quilômetros, bem à mão, à margem das palafitas do Solimões.

A cobra magnífica, em extinção, talvez único exemplar de uma rara espécie, se recolhia para o novo e último golpe. Golpe certeiro, direcionado novamente à criança; mas foi colhido em pleno ar pela mãos sóbrias do experiente cientista alemão.

Salvar a criancinha afoita ou livrar uma espécie da extinção? O bom cientista viu que todos os homens estavam destinados — inclusive ele mesmo — a agonizar um dia. Então, com muita calma, consciente de seus nobres princípios ecológicos, deixou a menina à própria sorte. Pobre criança! Bendita serpe! Extraordinária fama!

Hoje, sabe-se que a cobra era uma víbora prenhe, que deixou descendência, bem protegida, graças ao empenho do ilustre pesquisador tedesco. Uma espécie salva da extinção, quiçá reintroduzida em seu ambiente natural.

Como isto aconteceu há um bom tempo, hoje não há quem chore por uma mestiça desaparecida e comida pelos urubus. Quem o fará? As lágrimas secaram e o tempo já passou.

Mas, enquanto o pesquisador colhia o seus louros em São Paulo e Berlim, por haver livrado da extinção uma rara víbora peçonhenta, os abutres, com movimentos finos e argutos, desfaziam em pó a horrível carcaça em que a criança — a “cabloca esprivitada” — em plena selva, se havia convertido.

Ele, o sábio, o notável pesquisador, fizera uma escolha inteligente!

As víboras e os abutres, se pudessem, agradeceriam por tal decisão.


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