SOBRE UM MAR DE AREIA ARDENTE - Conto de Ficção Científica - Pedro de Andrés
SOBRE UM MAR DE
AREIA ARDENTE
Pedro de Andrés
Tradução de Paulo Soriano
Agonizo
aqui, num setor da galáxia que não aparece nos mapas. Dezesseis gerações de
mutações instáveis, vidas afogadas em tanques-simuladores. Tudo por um sonho:
colonizar Odisseia, um planetoide do Setor Foxtrot. Desespero. De um destino
planejado como os novos senhores do mar num mundo aquático, agora bloqueio o
oxigênio tênue como única sobrevivente do desastre do transporte Europa.
Esvoaço sobre um mar de areia ardente, num planeta fora das rotas comerciais,
uma paisagem de dunas intermináveis. Pelo Grande Boto, alguém tem um senso de
humor fodido por aí.
Não
sei se é fruto da proximidade da morte ou se já cruzei o limiar entre mundos.
Uma voz me fala numa língua áspera. Soa tosca nos meus ouvidos, adaptados à
acústica do ambiente marinho e não ao roçar de uma brisa tórrida. Luto para
manter a consciência do meu entorno. Não sinto nada. A luz já não cega os meus
olhos, minhas pálpebras se fundem, perdidas para a eternidade. Confio-me aos
Criadores, pronta para morrer.
Flutuo
no ar, envolta por umas extremidades, que não consigo ver e que me transportam.
Fui ouvida? Agradeço o alívio da minha queratina queimada por grãos de areia
ardente. Gostaria de conhecer o meu salvador e, por enquanto, me contento com o
toque de seus dedos em minha nadadeira caudal. Águas turvas me envolvem. Talvez
sejam os meus sentidos entorpecidos. As mãos do meu redentor me seguram como se
ele quisesse certificar-se de que posso seguir em frente. São carícias? As mãos
deslizam pelas minhas espáduas enquanto ele murmura palavras que soam
extravagantes em meus ouvidos. Quando me soltam, desço até que o meu ventre
descanse na lama no fundo. Frescor. Uma corrente vigorosa alimenta meu sistema
respiratório novamente. Bendigo aos Criadores que desenharam a dupla via de
oxigenação que me permitiu viver pelo menos mais um dia.
Não
sei quanto tempo passei no lodo. Tenho alternado períodos de consciência com
períodos de sono autoinduzido. Agora sei que a água não é salina, embora seja
rica em nutrientes. Algum parasita limpou minha pele das piores lesões, que se
regenera satisfatoriamente. Meus olhos estão além da cura total. Não voltarei a
ver como antes do acidente. Através da bruma aquosa, eu posso examinar meus
braços, meu torso hidrodinâmico no qual apenas se intuem uns peitos
núbeis. Desfruto do estímulo nas
nadadeiras, capazes de me impulsionar novamente.
Espio
de vez em quando. Não há nenhum sinal do meu anônimo protetor. Não o esqueço,
mas habituei-me à ideia da minha nova solidão entre duas margens.
Estou
cada vez mais convencida de que há mais do que liquenes e lama primordial
nessas águas. Eu diria que há vestígios de detergentes naturais e sedimentos
procedentes de algum tipo de civilização. A minha especialidade, a
Exodiplomacia, não me permite uma análise detalhada como a de que os meus
colegas da Biodiversidade poderiam ter realizado. Só há uma maneira de saber.
Avanço contra a corrente, com calma. Minhas forças não voltaram totalmente, se
é que algum dia retornarão.
A
impressão é forte. Ninguém diria que semelhante urbe poderia ter surgido em um
mundo ressecado como este. No entanto, sejam quais forem seus habitantes,
puderam aproveitar o limo negro que o rio arrasta, minha nova casa, e enche
suas margens de fertilidade. Sou recebida num edifício alto, com postes e
colunas de pedra arenosa, coroado de oriflamas vermelhas e azuis brilhantes,
tão diferentes do basalto púrpura do casco da minha nave sinistrada. Conforme me aproximo, vejo os primeiros
sinais: humildes casas de adobe procedente do barro fluvial, lavouras bem
alinhadas através do sistema de canalizações para irrigação. Seus habitantes
trabalham os sulcos com parcimônia, as costas dobradas ao Sol. Têm uma tez
amarelada e usam saiotes de pano branco, talvez de linho. Através da película
aquosa, posso observá-los sem ainda me mostrar. Eles se parecem com os
Criadores, uma similitude prodigiosa. À medida que me movo entre os canais,
ouço suas conversas. Com o tempo — a única coisa que tenho em abundância —,
poderei decifrar seus padrões linguísticos e estabelecer as primeiras
comunicações. Estou feliz. Com mais conhecimento como única possibilidade de
intercâmbio, afinal, parece que vou conseguir exercer minha especialidade.
Texto integrante da
revista bilíngue (português e espanhol) “Relatos Fantásticos”, vol. II. Para
acessá-la na íntegra, clique aqui.
Comentários
Postar um comentário