O FRADE DE FOGO - Narrativa Clássica de Terror - Silva Guimarães

 

O FRADE DE FOGO

Silva Guimarães

Séc. XIX

 

Por uma tarde tempestuosa e escura, um cavaleiro percorria rapidamente a estrada que vai de N... a S... e, forçado pelo péssimo tempo que fazia então, viu-se obrigado a bater à porta de uma casinha à beira da estrada.

Depois de muito instar para que lhe dessem pousada por aquela noite, entrou em uma sala, cujas paredes estavam completamente cobertas de pinturas, as mais grotescas, de santos e homens ilustres.

A família que o hospedou compunha-se de uma velha, um velho e um homem de trinta anos, pouco mais ou menos.

Este último conservou-se sempre calado, enquanto os dois velhos estiveram na sala, mas, logo que se viu a sós com o viajante, perguntou-lhe:

— Meu amigo, não tem medo de viajar sozinho por esta estrada?

— Não — respondeu o viajante.

— Pois faz mal, porque estes sítios são mal-assombrados.

O viajante conheceu imediatamente com que espécie de homem se achava e, excitada a curiosidade por estas palavras, disse-lhe:

— Mas por que são eles mal-assombrados?

— Porque têm aparecido coisas que só Satanás lembrar-se-ia de fazer.

— Então você tem visto muita coisa má por aqui? Conte-me, porque isto deve ser muito divertido.

— Qual! É feio e muito de meter medo. Se você não tem muito sono, nem medo, faço-lhe a vontade, mas advirto-lhe que são coisas de arrepiar o cabelo.

— Pode fazê-lo, sem susto.

E o moço principiou a referir o que se segue.

*

— Há bastantes anos, e era eu ainda muito pequeno, morava por aqui um frade que não usava dos hábitos talares, nem tinha coroa, nem dizia missa, nem entrava em igrejas.

“Chegara, havia pouco, de muito longe e falava a nossa língua; dizia-se que fora expulso de um convento, porque seu comportamento era levado do diabo. A princípio, fora soldado e entrara muitas vezes em combate, pelo que era aleijado de uma perna. Era ainda moço e bonito, porém gostava muito de duas coisas que a igreja proíbe aos eclesiásticos —a libertinagem e a embriaguez.

“Raro era o dia em que o réprobo não estava embriagado a ponto de ficar de cama semanas inteiras sem mesmo comer, porque, logo que acabava de cozinhar uma, caía noutra, de sorte que parecia com as velhas que, quando principiam a rezar no rosário, não cessam senão quando acabam de rolar nos dedos conta por conta.

“Todas as aldeães daqui de baixo tinham medo do frade maldito; isto, porém, não impedia de ele fazer das suas quando a cabeça não estava muito cheia de vinho.

“Esmola e pousada eram coisas que ele desconhecia completamente.

“Um dia, o irmão de uma pobre rapariga, a quem ele perdera, foi à casa daquele filho do demônio e deu-lhe tanta pancada que o obrigou a ir para cama.

“O frade jurou vingar-se e, como tinha sido outrora soldado e fizera algumas campanhas, achou que fora ferido demais em seus brios de militar e pôs-se a meditar em seus planos.

“Como tudo o que ele tinha na cabeça era justamente tudo quanto aprendera, e jurara, como frade, não fazer nem aconselhar que fizessem, vê você perfeitamente que seu plano não era ir apresentar-se a seu ofensor e dizer-lhe: “‘—Meu amigo, há dias você deu-me umas bofetadas, coisa de muito mau gosto, mas, enfim, como sou frade, aqui apresento-te a outra face para que repitas a dose, como manda o Evangelho’.

“Qual! Pois, se ele nem se lembrava mais do Evangelho, como teria ânimo de humilhar-se, sujeitando-se a apanhar até ficar com todo o rosto inchado como uma bola? Nada! Aquilo era astuto e malicioso como a raposa.

“Foi à aldeia e arranjou dois mulatos possantes, companheiros seus do deboche, e juntos foram, numa noite, dar assalto à casa da moça.

“O irmão lá não estava e, portanto, facilmente conseguiram raptar a desgraçada e levarem-na para a casa do frade.

“Aí chegados, este mandou que eles dessem muita pancada na pobrezinha, a ponto de deixarem-na no chão desfalecida e muito maltratada.

 “Logo que o frade viu a moça desmaiada, entrou para casa com seus dois companheiros e caíram no vinho com vontade.

“Quando, ao amanhecer, os dois retiraram-se, viram a infeliz ainda no chão e sem movimentos.

 “Chamaram-na pelo nome, levantaram-na, porém a moça estava dura e fria.

 “Era já cadáver!

“Puseram-na deitada na escada e, chamando então o frade, gritaram-lhe:

“‘Eis um presente que te deixamos na escada da porta. Venha buscá-lo e depois arranja-te como quiseres.’

 “E retiraram-se.

“O frade, sem quase poder suster-se de pé, foi cambaleando abrir a porta, e, tropeçando no cadáver de sua vítima, caiu de bruços sobre ele, deixando escapar de seus lábios impuros e satânicos uma praga ou blasfêmia só dignas dele.

“Levantou-se, pegou no corpo e atirou-o para uma vala que havia do lado da casa, dizendo:

 “‘Que o diabo se encarregue de levar teu corpo daqui, como já encarregou-se de tirar-te a vida.’

“E pôs-se a rir como um possesso.

 “Entrou para a casa e adormeceu.

 “Quando, no dia seguinte, acordou, viu um comprido manto negro estendido na vala; aproximou-se e viu que eram os corvos que já estavam dando caça ao cadáver.

“‘Ah, nem mesmo o diabo quis apossar-se de ti! Deixou que os corvos devorassem teu corpo! E eras virtuosa e santa, maldita embusteira! Pois arranja-te agora com todos os diabos.’

“E ia dirigindo-se para casa quando dois corvos lhe saltaram no rosto, e com os bicos aduncos arrancaram-lhe cada olho.

“Imediatamente, uma nuvem correu no céu; o dia tornou-se noite por alguns instantes e um raio, mandado expressamente por Deus, caiu-lhe por cima da cabeça, matou-o, incendiou a casa e estendeu mortos os corvos que devoravam o corpo da moça.

“Pouco depois, o dia tornou a ficar claro: tudo desapareceu, e só a casa é que ardia em intenso fogo, como uma grande fogueira, destas que se fazem nas noites de São João.”

*

E o moço calou-se por alguns instantes; depois, continuou:

— Agora, sim. Agora é que é terrível.

— Vamos, meu amigo — disse-lhe o viajante. — Nada de interrupções.

— Pois bem — continuou o primeiro —, noites depois, logo ao escurecer, um frade de fogo surgia, gritando, do lugar em que estivera edificada a casa, e, dividindo-se em pequenas moléculas, estas abrangiam, dispersando-se, um espaço imenso de terreno, volvendo sempre em círculo.

“Depois, ajuntavam-se aos poucos e compunham um corpo horrível, hediondo e repugnante, que lançava altas chamas que erguiam-se em espiral e que voavam, impelidas pelo vento, desfazendo-se em átomos que se perdiam no infinito.

“Todos aqueles que se aproximavam dali morriam imediatamente asfixiados; o mato ficou inteiramente queimado por aqueles sítios; o rio secou e, só à noite, o espectro de fogo era quem dominava aqueles lugares.

“Por muitos anos, o frade de fogo apareceu todas as noites, dando gritos e implorando as preces dos vivos e crentes.

“Parece que Deus, enfim, atendeu aos rogos dos inocentes e afastou dali o terrível fantasma.

“Mas as suas culpas eram grandes; por isso ele obrigou-o, contudo, a dividir-se em corpos que todas as noites saem do mesmo lugar amaldiçoado e que aparecem ali como pirilampos que voam, voam como luzes pequenas correndo por todo o campo em diferentes direções, acompanhando sempre os viajantes noturnos.

“Estas luzes dirigem-se em grande parte para o cemitério da aldeia; ali correm em todos os sentidos e conservam-se até hoje, como se pode verificar logo que a noite fica bem escura.”

 

Fonte: A Chrisalida/SP, edição de 15 de março de 1869.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O SINALEIRO - Conto Clássico de Terror - Charles Dickens

A MÃO DO MACACO - Conto Clássico de Terror - W. W. Jacobs

A MÃO SANGRENTA - Narrativa Clássica Verídica de Horror - Lorde Halifax

O LADRÃO DE CADÁVERES - Conto Clássico de Horror - Robert Louis Stevenson