POR QUE É QUE OS MORTOS NÃO VOLTAM - Conto Clássico Sobrenatural - Anônimo do séc. XIX
POR QUE É QUE OS
MORTOS NÃO VOLTAM
Anônimo do séc. XIX
Eu
acabava de morrer em consequência de uma moléstia causada por dois excessos:
excesso de trabalho e excesso de prazer. Tinha eu, posso confessá-lo, uma
amante a quem amava loucamente. Para proporcionar-lhe todos os gozos do
bem-estar material, mandei-me de corpo e alma a um trabalho árido e fatigante,
que no fim de certo tempo trouxe-me uma riqueza relativa. Então atiramo-nos
ambos no seio de uma vida de delícias, que me levou em pouco tempo à tumba,
cujas portas o trabalho me tinha aberto.
Quando me puseram no caixão, compreendi que
três dos meus sentidos, o tato, o cheiro e o gosto estavam aniquilados, ao
passo que a vista o e ouvido começavam a crescer em mim de uma maneira
extraordinária. Assim ouvia eu claramente tudo quo se cochichava em torno de
mim, e, apesar da tampa quo me cobria, meus olhos viam os menores objetos que me
cercavam o caixão.
Não
levaram muito tempo a porem-me em marcha para a igreja, e depois para o
cemitério: meu modesto enterro era acompanhado por um certo número de amigos ou
camaradas reputados tais, e cujo ar pouco triste começou logo a desagradar-me. Mas,
refletindo que aquela ocasião não tinha a lastimar em mim um ser que lhes fosse
particularmente caro, compreendi sua diferença e consolei-me.
“Mas
ela — pensava eu —, não a vejo... sim, compreendo; sua dor é muito viva para
que possa permitir-lhe quo me acompanhe; ela lá fica chorando aquele a quem
amava... Que triste destino dei eu a essa pobre mulher: manchei sua honra,
perdi sou futuro, e, no entanto, ela me ama ainda: bem ouvi, quando deixei
minha querida em casa, os seus soluços, que fizeram tremer meu coração já
morto...”
Era
este o principal objeto de minhas reflexões. Pensei nisso todo o tempo quo
durou a cerimônia da inumação; e quando começou a cair a torra sobre mim, foi
ainda para esse objeto quo se dirigiram minhas ideias.
Era
como um remorso, que perturbava meu último sono, e quo impedia que meus olhos
se fechassem para sempre.
Com
eííeito.eu devia ter disposto as coisas de maneira que por minha morte aquela
pobre moça não ficasse despida de recursos. Devia, a preço de grandes
sacrifícios, assegurar-lhe a existência e evitar-lhe uma nova falta. Sem dúvida,
o pouco quo eu lhe deixara punha-a por um aro acoberta do necessidade; mas,
passado este ano, como viveria ela de seu trabalho? Pobre e fraco é o trabalho
de uma mulher.
Esse
pensamento atormentou-me durante quinze dias.
Depois
de quinze dias, tomei o meu partido.
Uma
noite, quando tudo na natureza se tinha tornado silencioso e calmo, saí trêmulo
e dirigi-me para a porta do cemitério.
A
noite era pura e fresca; numerosas estrelas cintilavam num céu calmo que a Lua,
que apenas despontava, tibiamente alumiava. Passei através dos ciprestes e dos
salgueiros até a grade que fechava a morada da morte. Vi uma sombra semelhante
à minha e que, como ou, parecia preparar-se para sair. A sombra veio a mim.
—
Aonde ides? — perguntou-me com voz, cuja doçura angélica era indefinível.
—
Vou sair — respondi-lhe. — E quanto a vós?
—
Eu... vou ver minha família que chora, o consolá-la, se Deus me permitir.
— É também para consolar um vivo que deixo a
habitação dos mortos.
Saímos juntos, apesar da grade, que parecia
dever opor-nos obstáculo.
—
Adeus — disse-me a senhora — e quo o Senhor permitia que consigais vosso
intento.
Separamo-nos.
Dentro
em pouco, estava eu no limiar daquela casa, onde passara meus dias felizes. Uma
emoção indizível se apoderou de mim; parecia-me que uma faísca do vida tocava o
novo meu ser. Estremeci de prazer. Via, talvez, fazer-se um milagre: uma
palavra ia ressuscitar-me!
Subi precipitadamente os três andares: a porta
externa do nosso pequeno aposento estava entreaberta. Entrei. A antecâmara
estava vazia e sombria. No quarto, porém, havia duas mulheres, e uma delas era
Corina! Quis gritar, mas estava sem voz. Não pude senão ver e ouvir.
Eis
o que vi e ouvi.
Corina
e sua companheira, alumiadas por uma lâmpada colocada junto a elas, ocupavam-se
em esvaziar os meus moveis, e pareciam fazer o inventário do que neles se
achava: as joias eram postas de um lado; a roupa branca, de outro. Encarei
Corina: pareceu-me, fria e indiferente. A que a acompanhava era uma de suas antigas
amigas, de quem eu nunca tinha gostado. Chamavam-na Constança, por uma
imperdoável antífrase: era moça faladeira e metida a dar conselhos que derivavam
de seu próprio procedimento, o que os tornava um tanto perigosos. Parecia, neste
momento, muito atarefada em classificar o conteúdo da minha amada, e não se
interrompia senão para comunicar a Corina as reflexões que este exame lhe
sugeria.
—
Ele não tinha nada de rico — disse, com uma careta desdenhosa.
—
É verdade: tínhamos gasto muito este ano.
—
E acreditava que ele não punha alguma coisa de parte?
—
Ora! Pois não... ele... Olha, aqui estão as camisas novas em folha.
— Olha cá, isto aqui cheira mal...
—
Sem dúvida cheira a defunto! Há quinze dias que se não abrem estas janelas. Mas
tu me fazes falar. Vamos, despacha-te, que tenho pressa de ir-me embora.
—
Oh, parece que estamos com medo!
—
Medo de quê? É verdade que eu não seria capaz de vir aqui sozinha.
—
Que queres, Constança? Quando a gente amava, isto faz sempre algum efeito.
—
É verdade. O certo é que eu chore. Durante dois dias, todas as lágrimas de meus
olhos.
—
E depois?
—
Depois, acabei por consolar-me. Não se pode viver com os mortos.
Senti
a faísca do vida quo me eletrizava apagar-se repentinamente, e alguma coisa
como um suspiro de saudade voou de meu coração para o seu.
Corina
e sua amiga saíram pouco depois, levando cada uma um embrulho do que tinham
achado de mais precioso. Já eu, tinha sofrido bastante, mas uma espécie de ímã
me prendia junto a Corina, segui-a.
Depois
de um momento de silêncio, e quando elas se achavam numa rua solitária, Corina
inclinou-se misteriosamente ao ouvido de sua companheira e disse-lhe:
—
Já sabes que Ernesto falou comigo?
—
Deveras? É um bom rapaz e tem uma boa posição. O que foi que respondeste?
—
Nem sim, nem não.
—
Mas...
—
Bem sei que não é possível chorar toda a vida.
—
E demais, tu não podes ficar assim.
—
Quanto a isto, é verdade.
—
Pois então!
—
Não sei... penso que não há remédio senão decidir-me.
Não
ouvi nem mais uma palavra.
Alguns
instantes depois, achava-me à entrada do cemitério: a sombra que tinha saído
comigo chegava também nesta ocasião.
—
Já de volta? — perguntei-lhe eu.
—
Que quereis? — respondeu-me a sombra com uma voz sepulcral. — Tinha dois irmãos
e achei-os brigando por causa da minha herança. Tinha uma irmã: achei-a feliz e
tranquila como antes da minha morte. Aquela gente não precisava de mim. E vós?
Não
pude responder coisa alguma.
—
Vamos! Deixemos, pois, os vivos no seu mundo de egoísmo e vamos juntar-nos
àqueles a quem loucamente deixamos — disse, impelindo-me para a minha tumba, e
dirigiu-se também para a sua.
Aqui
está a pedra desta tumba a fechar-se para sempre.
Entretanto,
se ela tivesse amado! Bem o sinto: este amor teria feito um prodígio e eu teria
voltado à vida.
Ó,
vivos, não sabeis amar: é um morto que vo-lo diz.
Fonte: “O Moderado”/RJ,
edição de 23 de fevereiro de 1862.
Barão amigo, este conto está sensacional, uma maravilha ! Obs.: a correria do final de ano tem me prejudicado nos meus escritos, mas voltarei a trabalhar neles assim que entrar de férias. Do seu velho amigo, Arquiduque do Sul.
ResponderExcluirmuito bom, esse conto esta incrivel
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