SCOLASTICA - Conto Clássico Sobrenatural - Anatole France


 

SCOLASTICA

(Excerto)

Anatole France

(1844 – 1924)

Tradução de Paulo Soriano

 

Para Maurice Spronk.

 

Naquela época — que era o século IV da Era Cristã —, o jovem Injuriosus, filho único de um senador de Auvérnia (assim se chamavam os conselheiros municipais), pediu em casamento uma jovem chamada Scolastica, igualmente filha única doutro senador. A moça lhe foi concedida.  E, concluída cerimônia de casamento, levou-a para sua casa e a fez compartilhar de seu leito. Mas ela, triste e voltada para a parede, chorava amargamente.

— Peço-te, por favor, que me digas por que assim te atormentas.

E, como ela se calava, acrescentou:

— Rogo-te, por Jesus Cristo, Filho de Deus, que me esclareças o motivo de tuas dores.

Ela, então, voltando-se para ele, disse-lhe:

— Ainda que eu chorasse todos os dias da minha vida, não teria lágrimas suficientes para derramar a imensa dor que transborda o meu coração. Resolvera manter esta fraca carne completamente pura e oferecer a minha virgindade a Jesus Cristo. Pobre de mim — por Ele tão completamente abandonada —, que não posso realizar o meu desejo! Ó dia, que eu nunca deveria ter visto nascer! Eis que eu, divorciada do esposo celestial, que me prometera como dote o paraíso, tornei-me esposa de um homem mortal.  E esta cabeça, que deveria ser coroada com rosas imperecíveis, faz-se adornada — ou melhor, emurchecida — com estas rosas já agora desbotadas. Este corpo que, no quádruplo rio do Cordeiro, deveria vestir a estola da pureza, carrega, como um fardo vil, o véu nupcial. Por que o primeiro dia da minha vida já não foi o último? Oh, como seria feliz se tivesse transporta os portais da morte antes de beber a primeira gota de leite! E se os beijos das minhas doces amas tivessem sido depositados no meu caixão! Quando estendes os braços para mim, penso nas mãos que foram transfixadas para a salvação do mundo.

E, ao terminar essas palavras, ela chorou amargamente.

O jovem respondeu gentilmente:

—Scolastica, nossos pais, que são nobres e ricos entre os auvérnios, tiveram apenas uma filha (os teus) e um filho (os meus). Eles queriam nos unir para perpetuar sua família, temerosos de que, após a sua morte, um estranho viesse herdar os seus bens.

Mas Escolástica disse-lhe:

— O mundo nada vale; as riquezas nada valem; e esta mesma vida não vale nada. Esperar a morte é viver? Vive apenas quem, em eterna bem-aventurança, bebe a luz e goza da angélica alegria de ter consigo Deus.

Nesse momento, tocado pela graça, Injuriosus exclamou:

— Ó doces e claras palavras! A luz da vida eterna brilha em meus olhos! Scolastica, se queres dar cumprimento ao que prometeste, permanecerei casto como tu.

Um tanto tranquilizada e sorrindo já por entre as lágrimas, ela disse:

—Injuriosus, é difícil para um homem fazer, a uma mulher, uma tal concessão.  Mas se fizeres com que permaneçamos imaculados neste mundo, eu te darei uma parte do dote que me foi prometido por meu marido e Senhor Jesus Cristo.

Então, armado com o sinal da cruz, ele disse:

— Farei o que desejas.

E, dando-se as mãos, adormeceram.

E, desde então, compartilharam o mesmo leito em incomparável castidade. Após dez anos de provações, Scolastica morreu.

Segundo o costume da época, ela foi levada para a basílica em trajes de gala, com o rosto descoberto, ao som dos salmos, seguida por todo o povo.

Ajoelhado ao lado dela, Injuriosus disse, em voz alta, as seguintes palavras:

— Agradeço-te, Senhor Jesus, por me teres dado forças para manter intacto o teu tesouro.

A estas palavras, a morta levantou-se do leito funerário, sorriu e murmurou baixinho:

—Meu amigo, por que tu dizes o que te não perguntaram?

Então, caiu novamente no sono eterno.

Pouco depois, Injuriosus acompanhou-a ao túmulo. Foi enterrado não muito longe dela, na basílica de Saint-Allire. Na sua primeira noite de descanso sepulcral, uma roseira milagrosa, que emergiu do esquife da esposa virginal, enlaçou os dois túmulos com seus braços floridos. E, no dia seguinte, as pessoas viram que os sepulcros estavam unidos com correntes de rosas. Conhecendo, por este sinal, a santidade do bem-aventurado Injuriosus e da bem-aventurada Scolastica, os sacerdotes de Auvergne indicaram os dois sepulcros à veneração dos fiéis.

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