HERMIONA - Narrativa Clássica Sobrenatural - Walter Scott


 

HERMIONA

Walter Scott

(1771 – 1832)

Tradução e adaptação de autor desconhecido do século XIX

 

Hermiona foi, com grande probabilidade, a primeira narrativa fantástica publicada em periódicos no Brasil. Veio a lume no Beija-Flor, do Rio de Janeiro, em 1830, sem indicação da autoria e de seu tradutor. Na verdade, Hermiona — malgrado a revista Beija-Flor aluda a “Novella Allemãa do seculo XIV” — constitui-se num excerto do romance Anne of Geierstein, do autor escocês Walter Scott, publicado em 1829.

 

Os barões de Arnheim, cujo castelo, tão forte como magnífico, era sito na margem direita do Danúbio, no distrito chamado Mata Preta (forèt noire), ocupavam-se, por gosto hereditário, que passava de pai a filho, d'estudos misteriosos, sem, contudo, desprezar os exercícios bélicos, e os divertimentos da caça, únicas ocupações dos outros nobres alemães aquela época.

 Herman d'Arnheim distinguiu-se, entre toda sua nobre descendência, pela paixão simultânea com que se entregou ao estudo das ciências secretas e manejo das armas; ele se prezava de ter magníficas estrebarias, e de possuir o melhor ginete que jamais se vira em toda Alemanha.

Não me seria possível descrever por miúdo semelhante animal: bastará dizer que era preto por inteiro, sem que da ponta do nariz à extremidade das unhas se pudesse achar um só pelo branco, razão por que, à vista do seu gênio furioso, o barão lhe pusesse o nome d'Apollión, o que ocultamente contribuiu a acreditar a má fama que havia sobre os barões d'Arnheim, acusados de entreter relações com entes da pior espécie, quando se viu que este dava ao seu cavalo de maior estima o nome de um demônio.

Aconteceu um dia que o barão, tendo ido caçar na mata, não voltou à casa senão de noite. Não havia neste momento nenhum hóspede no castelo, pois que raras vezes os donos admitiam visitas que não fossem de homens doutos, dos quais se podiam aproveitar lições. O barão estava só no seu salão, iluminado com tochas e lâmpadas. Em uma mão ele segurava um livro, cujos caracteres haveriam de ser inteligíveis para qualquer outro habitante do castelo, ou mesmo do país. A outra mão descansava sobre uma mesa de mármore, em cima da qual se achava um frasco de vinho de tokai[1]; um moço da câmara atendia em pé, em atitude respeitosa, no fundo do vasto aposento, no qual reinava uma meia escuridão, e cujo silêncio não era interrompido senão pela zunida do vento que parecia gemer funebremente entre cotas d'armas ferrugentas e bandeiras em farrapos, que faziam a guarnição da sala feudal. De repente, ouviu-se alguém que subia a escada com pressa e susto. A porta abriu-se com violência, e Gaspardo, intendente das cavalariças, ou estribeiro-mor do barão, aparecendo com as feições todas convulsas com o medo, correu para a mesa, sobre a qual o amo se encostava, gritando:

— Excelentíssimo senhor! Excelentíssimo senhor! Há um diabo na cavalariça!

— A que vem esta loucura? — perguntou o barão, pondo-se em pé, admirado, e agastado de uma interrupção tão extraordinária e fora da etiqueta.

— Entrego-me à toda vossa ira — disse Gaspardo — se não digo a verdade. Apollyon...

Ele parou.

—Fala, em nome de Deus ou do diabo, fala, doido! — gritou o Barão. — Ter-te-á o susto transtornado os miolos? Estará meu cavalo doente? Ou tem-lhe acontecido alguma novidade?

Tudo quando o estribeiro mor pôde fazei foi repetir:

 — Apollyon!

— E quando Apollyon em pessoa estaria cá, não haveria nesta aparição nada que merecesse espantar um homem corajoso.

— O diabo está ao lado d’Apollyon! — exclamou o chefe das cavalariças.

— Doido! — gritou o Barão, lançando mão duma tocha. — Que será o que te virou o juízo? Gentes da tua laia, nascidos para servir, deveriam ter mais poder sobre sua cabeça, se não por amor de si mesmo, ao menos por respeito às nossas pessoas.

Assim falando, ele atravessou o pátio para ir ter às cavalariças, que ocupavam toda a parte inferior do edifício, e nas quais cinquenta cavalos d'escolha erão alinhados de uma banda e doutra. Ao pé de cada um deles achava-se a panóplia completa de um gendarme, em tão bom estado e tão luzida que não podia o lustro ir a mais. O barão passou apressadamente no meio das duas fileiras de cavalos, acompanhado por dois criados que este alerta inopinado acordara, e chegou ao pé do cavalo da sua paixão, que ficava à outra extremidade da cavalariça, à mão direita. O animal não rinchou, nem bateu a mão, nem sacudiu a cabeça, nem deu sinal algum daqueles com que costumava saudar a visita do amo e, se pareceu reconhecê-lo, foi porque deitou um surdo gemido, como implorando o seu valimento.

Herman alçou a tocha e viu um vulto alto, com a mão apoiada sobre a espádua do cavalo.

— Quem es tu? Que queres tu cá? —perguntou o barão.


 


 

— Eu procuro asilo e hospitalidade —respondeu o estrangeiro. — E eu te peço isto pela espádua do teu cavalo, e pelo fio da tua espada; assim. eles jamais te faltem no dia da precisão.

—Portanto, um irmão do fogo sagrado — disse o barão d'Aruheim. —Não te posso negar o que pedes em conformidade do rito dos magos. Contra quem e por quanto tempo pedes minha proteção?

— Contra aqueles que virão em minha busca antes que o galo cante — respondeu o estrangeiro —, e pelo espaço de um ano e um dia a datar deste momento.

—Meu juramento e minha honra não permitem que enjeite teu peditório. Eu, pois, te protegerei; um ano e um dia tua cabeça terá por abrigo o meu teto. Sentar-te-ás à minha mesa e beberás do meu vinho. Mas tu também deves obedecer às vozes de Zoroastro. Da mesma forma que ele diz: “O mais forte protegerá o mais fraco”, ele aconselha: “O mais sábio instruirá o de menor saber”. Eu sou o mais forte, e acharás proteção no lugar da minha morada; mas tu és mais sábio e deverás instruir-me nos mistérios mais ocultos.

 — Quereis divertir-vos à custa do vosso servo. Mas se Damnischemend souber alguma coisa que Hernan ignore, as instruções que vos der serão como de pai a filho.

— Sai, pois, do teu lugar de refúgio. Eu juro pelo fogo sagrado que vive sem alimentos terrestres, pela fraternidade que existe entre nós, pela espádua do meu cavalo e pelo fio de minha espada, garantirei a tua segurança durante um ano e um dia, enquanto meu poder para isto tiver valimento.

 O estrangeiro saiu da cavalariça e os que viram o seu aspecto estranho não se admiravam do susto que infundira em Gaspardo, que topou de improviso com ele na estrebaria sem adivinhar por onde tinha chegado. Depois de entrado no salão, aonde o Barão o conduziu com mesmo ar e cerimônias com que introduziria um hóspede respeitável, cuja visita lhe seria sumamente grata, viu-se, à luz das tochas, que era um ancião alto e de aspecto digno e venerável. Seu traje, de moda asiática, constava de um roupão preto de feitio armênio e um barrete quadrado de lã preta dos carneiros d'Astração, servindo a cor escuta dos vestidos a realçar a brancura da barba que lhe cobria o peito. O vestido era retido por um cinto de filó preto, no qual, em vez de punhal, ou de alfange, um estojinho de prata e um rolo de pergaminhos estavam retidos. O único ornamento que trazia era um rubi, de tamanho acima do ordinário, e de tanto esplendor que a luz que refletia parecia irradiar a sua substância.

O Barão ofereceu refresco ao estrangeiro, mas este respondeu:

—Não posso romper o pão, nem levar uma pinga d'água aos beiços, antes que o vingador tenha chegado à vossa porta.

O Barão, depois de ordenar que renovassem o azeite das lâmpadas, e que acendessem novas tochas, mandou os criados a deitar, e ficou só na companhia do estrangeiro. À meia noite as portas do castelo foram abaladas como por um furacão, e ouviu-se uma voz como de um pregoeiro a pedir que lhe remetessem seu prisioneiro Damnischemend, filho d'Ali. O porteiro sentiu, então, que se abria uma janela e reconheceu a voz do amo, que falava à pessoa que acabava de pronunciar a intimação[2]. Mas a escuridão não deu lugar para que enxergasse alguém entre os interlocutores e, se a linguagem de que usavam não lhe era de tudo incógnita, o colóquio achava-se tão lardeado de termos estranhos, que não soube compreender um só vocábulo. Cinco minutos apenas tinham decorrido, quando o pregoeiro levantou novamente a voz em alemão e disse:

— Pois bem, eu adio o exercício dos meus direitos a um ano e um dia; mas quando eu voltar àquela época para exigir aquilo que me é devido, não haverá já meio algum para mo esconder ou mo negar.

Desd’aquele momento o persa Damnischemend permaneceu no interior do castelo d'Arnheim e jamais saiu para fora da Ponte levadiça. Seus trabalhos e passatempos pareciam concentrar-se na livraria, ou no laboratório do barão, e este, as mais das vezes, tomava parte nas suas ocupações. Os habitantes do castelo não tinham outra queixa do persa, ou mago, senão que ele se eximia de todo dever religioso, pois que jamais ouvia missa, confessava-se ou assistia a qualquer ato piedoso. Verdadeiramente, o capelão declarava que estava satisfeito do estado da consciência do estrangeiro, mas havia largo tempo que se suspeitava que o bom do padre não obtivera um lugar assaz pingue e pouco trabalhoso, senão debaixo da condição, mais que razoável, que aprovaria os princípios de todos aqueles que os barões houveram por bem hospedar, e os declararia ortodoxos. Aliás, observou-se que Damnischemend era pontual em praticar suas devoções particulares. Jamais faltou a se prosternar ao primeiro raio do Sol nascente, e ele, com as próprias mãos, tinha fabricado uma lâmpada de prata das mais formosas proporções, que colocou em cima dum pedestal de mármore a modo de uma coluna truncada, em cuja base insculpira hieroglifos. Ninguém, à exceção talvez do barão, sabia com que substância ele alimentava aquela luz que, de resto, se avantajava por brilhante, pura e duradoura a qualquer chama conhecida, menos a do mesmo Sol; e era opinião geral que, na ausência deste glorioso astro, ela era o objeto do culto secreto de Damnischemend.

O que ainda observaram nele foi a severidade dos seus hábitos. O extremoso da sua gravidade, a temperança do seu viver e os seus jejuns reiterados a miúdo. Exceto em alguns casos extraordinários, ele não falava a ninguém senão ao barão; mas, como não lhe faltava dinheiro, e que gastava com mão larga, os criados, ao mesmo tempo que o veneravam, não o olhavam com receio, nem ódio.

A primavera sucedeu ao inverno; após ela, o verão deu seu tributo de flores, e o outono de frutos, os quais já se achavam prontos a caírem de maduros, quando o moço da câmara, que algumas vezes os atendia no laboratório, ouviu o persa, que dizia ao Barão:

— Bom será, filho, que notes bem minhas palavras, pois que minhas lições já estão a findar, não havendo poder humano que me possa salvar por mais tempo do meu destino!

— Alas, mestre! — exclamou o barão. — E será possível que eu perca vossas instruções, no preciso momento em que, com seu auxilio, eu esperava chegar ao tope da sabedoria?

— Não esmoreças, filho — respondeu o sábio. — Eu quero legar à minha filha a tarefa de vos adiantar nos vossos estudos, e ela virá cá para este fim. Mas lembrai-vos que, se quereis que vosso nome se perpetue, haveis de a considerar somente como coadjutora das lições. Se a formosura de uma moça vos fizer esquecer que ela deve somente vos instruir, haveis de descer para a sepultura com vossa espada e vosso escudo, como último descendente macho da vossa geração; e, dai-me crédito, outros males ainda surgirão desta união. Semelhante alianças jamais obtém felizes resultados. E disto se vê em mim um tocante exemplo; mas silêncio, o moço nos observa.

Todos os habitantes do castelo, que tinham pouco em que se ocupar, notavam com grande atenção tudo quanto se passava, e quando viram aproximar-se o tempo em que o persa deixaria de achar ressalva no castelo, alguns se ausentaram sob vários pretextos sugeridos pelo medo, e os outros expectavam, com tremor, alguma terrível catástrofe. Aliás, seus receios foram baldados, pois que, quando o solene dia chegou, Damnischemend, muitas horas antes da meia noite, montou a cavalo, e saiu do castelo como qualquer outro pacífico viajante. O barão despediu-se do mestre com grandes provas de saudade e mesmo de tristeza. O sábio persa o consolou, falando-lhe um bom bocado ao ouvido; entretanto, escutou-se esta frase:

— Ela estará convosco ao primeiro raio do Sol. Tratai-a com ternura, mas sem vos demasiar neste sentimento.

Ele disse, e se foi, e jamais foi visto no castelo d'Arnheim; jamais se soube do destino que levara.

No dia imediato à partida do persa, o barão conservou-se muito melancólico e, contra seu costume, ficou no salão, sem visitar a livraria ou o laboratório, nos quais já não podia desfrutar a companhia do mestre. Ao outro dia, ele, ao apontar d’alva, chamou o moço da câmara, e ocupou-o em arranjar com muito cuidado o seu traje, do qual ordinariamente não se lhe dava. Como ele estava à flor da idade, e que era de bela e afidalgada presença, não houve razão para que não fosse satisfeito do resultado de sua toalete, finda a qual esteve esperando que o Sol aparecesse no horizonte para pegar de cima da mesa a chave do laboratório, que o moço supunha fora lá depositada de propósito no dia antecedente.

O barão, atendido pelo moço, dirigiu-se ao laboratório e, chegado à porta, parou um instante, e pareceu refletir se despediria o jovem, e logo depois hesitou a abrir, como quem receava ver alguma coisa extraordinária. Por fim, armando-se com resolução, ele deu a volta à chave, empurrou a porta e entrou. O moço o seguia, e ficou assombrado à vista de um objeto mui estranho, se bem que amável, e encantador aos olhos.

A lâmpada de prata já não estava no pedestal, e em lugar dela figurava uma jovem e linda senhora, vestida à persiana, sendo o carmesim a cor dominante dos trastes. Mas ela não trazia nem mitra, nem turbante, nem outro qualquer toucado. Os louros cabelos estavam amarrados por uma fita azul, retida na testa por um broche d'ouro, no centro do qual se via um magnífica ópalo, que, entre os reflexos furta-cores, distintivo desta pedra preciosa, deitava um leve raio avermelhado, à semelhança duma faísca de fogo.

Esta jovem senhora era apenas de altura mediana, porém mui perfeita e elegante nas proporções. O vestido oriental, com as amplas calças ligadas acima do tornozelo, realçavam pezinhos os mais mimosos que fosse possível encontrar. E, através das mangas transparentes, divisavam-se os braços e mãos tão alvos e simétricos que era uma maravilha. A vivacidade e espirito dominavam no animado semblante, e os expressivos olhos pretos, com as regulares arqueadas sobrancelhas, pareciam prognosticar as observações maliciosas que a boquinha cor-de-rosa, meio risonha, se preparava a expressar.

O pedestal sobre o qual estava em pé, para melhor dizer empoleirada, decerto teria sido uma base bem perigosa para uma pessoa menos leve, mas esta, fosse qual fosse o modo por que tinha sido ali transportada, parecia estar tanto a seu cômodo como o beija-flor que descansa um instante no flexível ramo de um jasmineiro.

 O primeiro raio do Sol nascente, que entrava por uma janela fronteira ao pedestal, aumentava os encantos da bela vivente estátua, que se conservava tão imóvel como se fosse realmente de mármore. Ela não manifestou que dava fé da presença do barão, senão porque as palpitações da sua respiração se aceleraram, enquanto corava e sorria-se ao mesmo tempo.

Apesar dos motivos que o barão d'Arnheim havia de ter para supor que ia a encontrar algum objeto da natureza deste, assim mesmo a pessoa que via tinha prendas e encantos tanto acima da sua expectação, que ficou um bom pedaço de tempo imóvel e falto de respiração. De repente, ele se lembrou que era seu dever acolher no seu castelo, com polidez e agrado, a bela estrangeira e tirá-la da situação precária em que se achava. Ele, pois, avançou para ela com os beiços meio abertos para lhe dizer o quanto estava a bem-chegada, e os braços estendidos para a ajudar a descer do pedestal que tinha quase seis pés d'alto; mas, ela por ágil, e viva, aceitou somente o apoio da mão do barão, e saltou no chão com tanta ligeireza que não poderia ir a mais se fosse gênio aracnídeo[3], pois que só com a momentânea pressão da mãozinha, o barão deu fé que era ente de carne e ossos o que tocara.

— Eu vim em conformidade da ordem que recebi — disse ela, olhando ao redor de si. — Podeis contar que tendes em mim uma mestra atenciosa, e lisonjeio-me que vossos progressos, como discípulo exato e laborioso, farão muita honra à vossa venerável professora.

Depois da chegada desta pessoa encantadora a par de singular, várias alterações se efetuaram no interior do castelo. Uma matrona de alto nascimento, e de poucos bens, viúva respeitável de um conde do Império Germânico, aceitou o convite do Barão d'Arnheim, seu parente, e veio reger a casa deste, para evitar que a morada d'Hermiona no castelo, tal era o nome da bela persiana, não originasse injuriosas suspeitas.

A condessa Waldstetten teve tanta contemplação com o Barão que consentiu a assistir a todas as lições que este recebia da bela mestra, que tinha substituído de um modo tão inaudito o mago ancião, a dar credito à digna matrona os trabalhos deles no laboratório, se bem que de uma natureza mui extraordinária, e produzindo às vezes efeitos tão estrondosos que a enchiam de espanto, assim mesmo não tinham nada de repreensível, pois eles jamais se ocupavam de ciências ilícitas, e se limitavam às indagações daqueles mistérios inocentes que é permitido ao homem perscrutar.

Um juiz de maior autoridade em tais matérias, o mesmo bispo de Bamberg, pagou uma visita ao Castelo d'Arnheim, com o intuito de assentar uma opinião sobre a ciência de uma senhora que fazia tanta bulha em todos os países regados pelo Reno. Este teve uma entrevista com Hermiona, e achou-a convencida das verdades da religião, e tão amestrada no conhecimento dos dogmas e doutrinas, que disse que ela era um lente de teologia em trajes de uma dançarina do oriente; e quando lhe perguntaram a sua opinião sobre o saber dela nas línguas e ciências, ele respondeu que o fim da sua visita a Arnheim tendo sido o assentar um juízo sobre a realidade de tanta fama, que lhe parecera exagerada, ele agora devia confessar que ainda não chegava à metade do que merecia.

Semelhante testemunho, por irrecusável, pôs termos aos rumores sinistros que a chegada da bela estrangeira ao castelo tinha levantado, e tanto mais que as suas maneiras afáveis obrigavam todos aqueles que a tratavam a serem seus partidistas.

Aliás, em breve foi fácil notar que havia grande alteração no modo em que as entrevistas da engraçada professora e do discípulo se passavam. Verdadeiramente, nunca elas tinham lugar senão na presença da condessa, ou de outra qualquer senhora respeitável, que pudesse certificar a inocência e reserva das lições; mas já o laboratório, ou biblioteca não erão os lugares exclusivos onde se davam. Já os jardins e bosques pareciam próprios a fornecer o seu entretenimento; até se armavam partidas de caça e pescarias; as tardes eram destinadas à dança, e tudo isto dava claramente a entender que o apego ao estudar das ciências cedia naquele instante à busca do prazer[4], e não era difícil encaminhar a significação desta mudança, se bem que o barão e a formosa mestra tinham à mão, para conversar, uma linguagem que ninguém entendia, e, portanto, tinham tête-à-tête no tumulto da mais numerosa companhia, e ninguém se deu por achado quando, no cabo d'algumas semanas, proclamou-se formalmente que o barão d'Arnheim dava seu nome à bela persiana.

As maneiras desta jovem senhora eram de tal modo amáveis e sedutoras, sua conversação era tão animada, e seu espirito, apesar de brilhantíssimo, tão realçado pela docilidade e modéstia, que sua origem incógnita não suscitou tanta inveja da sua fortuna, como se devia expectar em um caso tão fora do costume. Além disto, a sua generosidade era extremosa, e lhe ganhava os corações de quantos se chegavam a ela, parecendo sua riqueza inesgotável, pois que distribuiu entre as suas amigas tamanha porção de joias que não imaginavam como ainda lhe restavam bastantes para se enfeitar. Ora, esta liberalidade, e tantas boas qualidades, ornada com a singeleza de caráter, formavam um delicioso contraste com o profundo saber que todos sabiam que possuía; isto, e a sua total ausência de presunção, faziam que as amigas lhe perdoassem a superioridade; assim mesmo, algumas singularidades, talvez exageradas pela malevolência, pareciam determinar uma linha de separação entre a linda Hermiona e as outras mortais entre as quais ela vivia.

Na dança, ela não tinha igual pela ligeireza e agilidade, que se assemelhavam a de um ente aéreo, podendo entregar-se àquele divertimento sem se sentir nunca fatigada, a ponto de cansar o mais intrépido dançador. O jovem duque de Hochsprigen, que tinha fama de incansável na dança, depois de valsar meia hora com Hermona, atirou consigo em cima de um sofá, todo exausto, declarando que não acabava de dançar com uma mulher, sim com um duende.

Dizia-se igualmente ao ouvido que. quando ela brincava no labirinto e bosques do jardim com as jovens amigas, ela se mostrava animada daquela sobrenatural agilidade que desenvolvia na dança. No momento em que a julgavam entre elas, viam-na desaparecer, saltar cercas, barreiras, grades, com tal rapidez que o olho mais atento não podia adivinhar como se achava do outro lado, e quando a enxergavam bem longe, aquém de qualquer trincheira, eis que dali a um instante a companhia a achava no seu seio.

Em tais ocasiões, quando os seus olhos cintilavam, que a cor das faces fechava, e que o grau d’animação de toda sua pessoa se exaltava, as gentes asseveravam que o ópalo da cabeça, enfeite que jamais largara, deitava com maior força a espécie de faísca, ou de jato de fogo avermelhado; da mesma forma, quando, nos serões da noite, Hermiona se entusiasmava na conversação além do costume, a pedra preciosa parecia realçar o esplendor e lançar aquele raio luminoso do próprio seio, e não o refletir d'algum corpo luminoso. Também as criadas contavam que, quando a ama tinha algum ataque passageiro d’ira, único vicio que nela se notara, elas observam uma chama de um vermelho fechado surgir da joia misteriosa, como se esta participasse das emoções da dona. As mulheres que assistiam ao toucador asseveravam que nunca largava a tal joia, senão no curto tempo consagrado ao pentear, e durante este pequeno momento ela se mostrava mais séria, manifestando grande receio que não chegasse qualquer líquido à pedra; até se notou que. na ocasião de tomar água benta à porta da igreja, ela jamais tocava na testa para persignar, com medo, assim o supunham, de molhar um enfeite de que fazia tal apreço.

Rumores tão singulares não empataram que o barão casasse com ela, e desenvolvesse na cerimônia todo o esplendor da sua pequena corte feudal, parecendo desde então que os jovens esposos iniciavam uma vila de felicidade raríssima de se achar em cima da terra. No cabo de doze meses, a formosa baronesa deu à luz uma menina que resolverão apelidar Sybilla, por ser este o nome da mãe do Barão d'Arnheim, e como a criança gozava de perfeita saúde, retardou-se a cerimônia do batismo até o momento em que a jovem mãe poderia assistir a ela. Fizeram-se numerosos convites por aquele dia, em que uma imensa companhia se reuniu no castelo.

Entre as pessoas convidadas havia uma fidalga anciã, bem conhecida para fazer na sociedade o papel que os menestréis atribuem, nas suas novelas, a qualquer fada má.

A baronesa de Steinfeldt era conhecida em toda a vizinhança por sua insaciável curiosidade e insolente soberba. Depois de dois dias de residência no Castelo d'Arnheim, ela, com o socorro de uma sua criada, cujo peculiar cargo era indagar da vida alheia, já estava ao fato de tudo quanto se acreditava, dizia, ou presumia acerca da baronesa Hermiona. Na mesma manhã destinada para o batismo, quando toda a companhia reunida no salão somente esperava a dona da casa para ir ter à capela, suscitou-se uma disputa de precedência entre a condessa de Waldstetten e a tal fidalga de gênio achincalhador e orgulhoso. O barão d’Arnheim, escolhido por arbitro, pronunciou a favor da condessa.

A Baroneza de Steinfeldt ordenou, no mesmo momento, que lhe trouxessem o seu palafrém, e que todo seu acompanhamento montasse a cavalo.

 — Eu — gritou ela — deixo uma morada na qual uma boa cristã jamais deveria ter entrado. Eu deixo uma casa cujo dono é feiticeiro, a mulher um duende que não ousa molhar afronte com água benta, e a camarista-mor uma sujeita que, por um vil interesse, fez-se alcoviteira entre um bruxo e um demônio incarnado.

Ela marchou imediatamente com a raiva no coração e o furor pintado no semblante.

O barão avançou alguns passos e preguntou se, entre os cavaleiros e fidalgos ali presentes, algum havia que quisesse puxar para a espada em abono das infames mentiras que a baronesa vociferara contra ele mesmo, contra sua esposa e sua parente. Todos recusaram defender a baronesa em causa tão péssima, e declararam por uma voz, que estavam convencidos que falara com calúnia e falsidade.

— Sejam, pois, consideradas como mentiras as palavras que nenhum homem honrado quer sustentar. Porém, todos hoje presenciaram se a baronesa d'Arnhteiin cumpre com os deveres do cristianismo.

A condessa de Waldstetten fazia ao Barão sinais com certo ar de ansiedade enquanto ele faltava; e quando ela se pôde aproximar, os mais próximos ouviram que lhe dizia em tom diminuto:

— Andai com prudência! Nada de experiência temerária! Alguma cousa há de misterioso neste ópalo ou talismã. O melhor é não fazer caso do que aquela fúria diz.

O barão, naquele momento, estava mais irado do que as pretensões que afixava à sabedoria o deveriam consentir. Aliás, é preciso confessar que tamanha desfeita, em semelhante ocasião, bastava para abalar a paciência do homem mais pacato e a filosofia do mais sábio. Ele respondeu, pois, com zanga:

— Vós também desteis em doida? — e perseverou no que tinha resolvido fazer.

A baronesa d'Arnheim apareceu neste instante. O recém bom sucesso tinha-lhe deixado aquele grau de palidez justamente preciso para tornar mais interessante o engraçado semblante. Depois de saudar com graciosa dignidade a brilhante sociedade, ela principiava a se informar da baronesa de Steinfeldt, quando o marido a interrompeu, convidando todos a que fossem para a capela e, oferecendo o braço à esposa, fechou a pomposa marcha. A lustrosa companhia enchia a capela, e todos os olhos se fitaram sobre o barão e a baronesa quando eles entraram, precedidos por quatro donzelas, que carregavam a criança sobre um andor esplendidamente decorado.

 Ao entrar na capela, o barão molhou o dedo na pia e ofereceu água benta à esposa, que a tomou, conforme o costume, tocando com o dedo o do esposo; mas este, como que para refutar as calúnias da raivosa baronesa de Steindeldt e, com certo ar de brincadeira e bom humor, talvez pouco decentes naquele momento e naquele lugar, sacudiu na testa da bela testa d’Hermiona as gotas que ficavam pegadas no dedo; uma pinga caiu sobre o ópalo. A pedra lançou um jato de chama, semelhante a uma estrela cadente, e logo perdeu o brilhantismo e os reflexos furta-cores, ficando semelhante ao cascalho mais ordinário. A baronesa caiu simultaneamente sobre o marmóreo soalho com um ar d’agonia. As pessoas presentes correram em seu socorro, a levantarão do chão, e a carregaram para seu aposento, mas neste intervalo houve tal mudança nas feições, e o pulso esmoreceu de tal forma, que todos aqueles que a cercavam a consideraram como já morta. Apenas esteve na sua câmara, ela pediu que a deixasse sozinha com o marido. Ele demorou uma hora com ela e, saindo do quarto, fechou a porta à chave, e se dirigiu à capela onde se conservou por espaço de mais de uma hora prostrado ao pé do altar.

Entretanto, a maior parte dos convidados ao batismo tinha-se retirado no maior assombro. Alguns que tinham ficado, por polidez ou por curiosidade, conheciam perfeitamente a inconveniência de deixar uma mulher moribunda sozinha e fechada. Mas, apesar disto, e do susto que as circunstâncias da inopinada doença infundiam, ninguém se aventurou a perturbar as devoções do barão. Por alguns físicos[5] que se tinham mandado buscar, e tendo chegado, a condessa de Waldstetten pediu a chave ao barão. Foi preciso repetir três ou quatro vezes primeiro que percebesse. Finalmente, ele entregou a chave, dizendo que todo socorros era já inútil, e que pedia que todos os estrangeiros saíssem do castelo.

Poucos desejaram se demorar, quando na câmara aberta não se achou sinal algum da baronesa, que não havia duas horas ali se transportara, a não ser um punhado de cinzas, sobre a cama, em cima da qual se depositara, tão esbranquiçadas e leves como as que resultariam de papel queimado. Aliás, fizeram-se solenes exéquias; nenhum ato religioso se omitiu, e cantaram-se muitas missas para a alma da muito alta e poderosa senhora dona Hermiona, baronesa d'Arnheím.

No cabo de três anos, dia por dia, o barão foi sepulto nas catacumbas d'Arnheim, com o capacete e escudo, como último herdeiro macho da sua casa.

 

Fonte: “Beija-Flor”/ RJ, 1830, nº 8.

Ilustração do miolo: Ricardo de los Ríos (1846 – 1929).



[1] Vinho da Hungria, tão estimado que ele é reservado para a mesa imperial. Somente por presentes diplomáticos, ou contrabando, é que se podem recuperar algumas garrafas para a satisfação dos gastrônomos. (Nota do original.)

[2] No original, summação.

[3] No original, acreo.

[4] No original, ao alicio do prazer.

[5] Ou seja, médicos.

Comentários

  1. Esse aqui também vou ler. Nossa, como eu gosto de contos.

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  2. Muito bom. Um prazer poder ler a suposta primeira narrativa fantástica publicada no Brasil.

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    Respostas
    1. Dir-se-ia melhor "provável"; "suposta/suposto" — termo tão comum no Direito anglo-americano — dá-nos uma sensação de dubiedade e intranquilidade; — o que não é a hipótese. Muito grato pelo comentário. Grato mesmo!

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