O GALPÃO - Conto Clássico de Mistério - Horacio Quiroga


 

O GALPÃO

Horacio Quiroga

(1879 - 1937)

Tradução de Paulo Soriano

 

Se pudéssemos julgar o valor dos sentimentos por sua intensidade, nenhum seria tão rico quanto o medo. O amor e a cólera, profundamente transtornantes, não comungam da faculdade absorvente daquele. O medo, por natureza, é o sentimento mais íntimo e vital, porquanto é o que melhor defende a vida. Instinto, lógica, intuição, tudo se sublima de repente. O frio medular, a angústia relaxante até converter em massa inerte nossos músculos e o horrível iminente dizem-nos unicamente que temos medo, medo. Isto é tudo. Por outro lado, sua reação, quando felizmente chega, é o maior estimulante de energia física que se conhece. Um amante desesperado ou um homem ardendo em ira forçarão o corpo humano a entregar o último átomo de força. Mas a todos consta que, se para aqueles o paroxismo de sua paixão é capaz de fazê-los correr cem metros em dez segundos, o simples medo os fará correr cento e dez.

Carassale chegou a estas conclusões num bate-papo, quando éramos quatro em um café da estação: o que fizera a dedução; Fernández, rapaz de face maculada por opalinas cicatrizes granulares e nariz grosso, em cuja raiz brilhavam dois olhos bem contíguos; Estradé, quase sempre estudante de engenharia, mas grande corredor quando não sabia o que fazer, e eu.

Fernández conhece pouco Carassale. Conferi às considerações deste último um tom dogmático — imposto por razões de brevidade —, do qual o discreto amigo está bem distante. Ainda assim, Fernández o olhou com juvenil e alegre impertinência.

— Você é medroso? — perguntou.

— Acho que não, não muito. Às vezes, nada temo; outras, sim.

— Mas é medo, não?

— Sim, é medo.

Todavia, bem se sabe que os mais afortunados, que se dizem ungidos de graça, não o são no amor e na coragem. Mas Fernández era ainda muito jovem para ter discrição no amor, e já bem velho para ser sincero na coragem. Estradé apoiou Carassale.

— Sim, eu também. De minha parte, à exceção dos medos formidáveis, como os de uma criança que, abraçada à mãe, sente que forçam as fechaduras da quinta assaltada, creio que os medos reais pervertem muito menos a inteligência que os absurdos.  Uma de minhas mais terríveis lembranças provém disto. Enfim...

— Não, não. Conte-nos.

— Seria necessário que vocês tivessem passado o meu medo.  Mas, de todo modo, aí vai:

“Vocês sabem que eu sou uruguaio. De San Eugenio, no Norte. Vou lá — ou melhor, ia — todos os verões. Tenho ali duas irmãs ainda solteiras, que vivem com a minha tia. Creio que agora a família construiu algo conveniente, mas na época a casa era mísera. O quarto que eu ocupava naquela ocasião ficava isolado, longe do bloco principal, graças a uma dessas anomalias das casas de vilarejo, em razão das quais a cozinha fica isolada e perdida no fundo. De modo que, como eu costumava voltar tarde da noite, e meus passos nunca foram leves, preferia penetrar pela barraca, lindante com casa de família, como é natural. Eu entrava, assim, por trás, sem incomodar ninguém. Meu tio frequentemente agia do mesmo modo, mas para fazer a ronda noturna final.

“A travessia era bastante longa. Primeiro, o armazém; em seguida, o depósito; depois, o espaço para as carroças e, por fim, um galpão com couros.

“Certa noite, voltei a casa a uma hora da manhã. Não é preciso fazer-lhes prova do silêncio de um San Eugenio a essa hora, sobretudo naquela época. Havia uma Lua magnífica. Atravessei o armazém e o depósito às escuras, pois conhecia de sobra o caminho. Mas no galpão era diferente. Alguns couros às vezes caíam e as extremidades salientes doutros roçavam-nos a cara muito mais que o necessário.

“Abri a porta, fechei-a e, como sempre, parei para acender um fósforo. Mal brilhou, a luz apagou-se. Fiquei imóvel, o coração sustado. Lá dentro, não havia o menor sopro de vento, e nem minha mão esbarrara-se em qualquer coisa. Estava absolutamente isolado na escuridão. Mas eu tive a nítida impressão de que haviam apagado o meu fósforo. Alguém havia soprado a chama.

“Tenso, virei suavemente a cabeça para a esquerda e, depois, para a direita. Eu não via nada: as trevas eram absolutas. Apenas lá no fundo, ao nível do chão, filtravam-se, entre as tábuas, finas faixas de luz.

“No recinto, todavia, estava o sopro que me apagara o fósforo. Por quê? Com um esforço de serenidade, pude reagir e abrir de novo a caixa para acender outro. Eu o tive pronto sobre a lixa. E, se soprassem de novo? Compreendi que o frio — o terrível frio na medula — me subiria até o cabelo se me apagassem o fósforo novamente. Afastei a mão. Já havia admitido a possibilidade de que à minha frente, ao meu lado, atrás de mim, na escuridão, estivesse um ser que, em fúnebre familiaridade comigo, já se inclinara para soprar de novo e impedir-me que enxergasse!

“Não podia permanecer ali. Rompi a angústia, avançando às apalpadelas. Imaginem a sensação que experimentei ao tocar a mão em algo como a extremidade do couro. Tropecei, arranhei a cara, mas, depois de vinte metros percorridos com essa lentidão de medo, que já está a ponto de ser uma disparada delirante, cheguei à porta oposta e saí, com um profundo suspiro. Entrei em meu quarto, li até às três e meia da manhã, atento, sem querer, ao mínimo ruído. Foi uma das noites mais difíceis que já tive...”

— Entretanto — interrompeu Carassale —, a sensação foi efêmera.

— Nem tanto. Na noite seguinte, o meu tio foi morto com uma punhalada, ao entrar no galpão. O homem, que o esperava, havia-me soprado o fósforo para que eu não pudesse vê-lo.

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