O DEVORADOR DE CADÁVER - Conto Clássico de Terror - Koizumi Yakumo
O DEVORADOR DE
CADÁVER
Koizumi Yakumo
(1850 – 1904)
Tradução
de Paulo Soriano
Os contos de terror de Koizumi
Yakumo — nome nipônico de Lafcadio Hearn (1850 — 1904), escritor
greco-nipo-irlandês —, inspirados nas antigas e legendárias tradições
fantasmagóricas do Japão, caracterizam-se pela brevidade, simplicidade e
objetividade orientais. “O Devorador de Cadáver” (“Jikininki”) é uma das
narrativas de terror escritas por Hearn para o livro “Kwaidan: Histórias e
Estudos de Coisas Estranhas”, publicado pouco antes de seu falecimento. Segundo
o autor, a maioria das histórias que compõem o volume fora traduzida — ou, provavelmente,
reelaborada — de antigos textos em japonês. Hearn, filho de mãe grega e pai
irlandês, nasceu na Grécia e viveu na Irlanda, Estados Unidos, Martinica e,
finalmente, Japão. Adquiriu a nacionalidade japonesa pelo casamento com Koizumi
Setsuko, filha de um samurai, em 1896.
Certa
feita, Muso Kokushi, sacerdote da seita Zen, que viajava sozinho pela província
de Mino, perdeu o caminho em um distrito montanhoso onde não havia ninguém que
pudesse orientá-lo. Por um longo tempo, o sacerdote vagou sem rumo. Começava
ele a desesperar-se por encontrar um abrigo para passar a noite quando
vislumbrou, no topo de uma colina iluminada pelos últimos raios do Sol, um
daqueles pequenos eremitérios chamados anjitsu, construídos por monges
solitários. Embora parecesse estar em condições ruinosas, Muso apressou-se,
ansiosamente, em alcançá-lo. Descobriu que o eremitério era habitado por um
sacerdote idoso, a quem rogou que lhe concedesse o favor de refúgio por uma
noite. Rudemente, o ancião negou-lhe o abrigo, mas indicou a Muso uma certa aldeia,
num vale adjacente, onde poderia encontrar alojamento e comida.
Muso
encontrou o caminho da aldeia. Esta consistia em menos de uma dúzia de casas
rústicas. O sacerdote foi gentilmente recebido na residência do líder do
vilarejo. Quarenta ou cinquenta pessoas achavam-se reunidas no cômodo principal
quando Muso chegou. Indicaram-lhe um pequeno quarto separado, onde prontamente
lhe ofereceram alimento e roupas de cama. Vergado pela fadiga, Muso deitou-se
bem cedo. Mas, pouco antes da meia-noite, seu sono foi interrompido por um
choro alto que vinha do cômodo contíguo. Então, as portas corrediças deslizaram
e um jovem, que trazia uma lamparina acesa, entrou no quarto, saudou-o
respeitosamente e disse:
—
Venerável senhor, é meu doloroso dever informar-vos que sou agora o responsável
por esta casa. Ontem, eu era apenas o filho mais velho. Mas quando aqui
chegastes, vergado pelo cansaço, nós vos não queríamos incomodar. Não vos
participamos, pois, que meu pai havia morrido poucas horas antes. As pessoas a
quem vós vistes reunidas na sala ao lado são os habitantes desta aldeia. E aqui
estão para prestar as últimas homenagens ao falecido. Mas agora devem partir
para outra aldeia a três milhas daqui, pois, segundo os nossos costumes,
ninguém deve permanecer na aldeia durante a noite quando alguém morre. Fazemos
as oferendas e orações apropriadas e, depois, retiramo-nos, deixando o cadáver
sozinho. Na casa onde jaz o defunto, coisas estranhas sempre acontecem. Por
isso, cremos que seria melhor que fôsseis conosco. Na outra aldeia, achareis um
bom alojamento. Mas, como sacerdote, é possível que não tenhais medo de
demônios e espíritos malignos. E, se não vos traz incômodo a companhia de um
defunto, sois muito bem-vindo para desfrutar de nossa pobre morada. No entanto,
devo advertir-vos de que ninguém, a não ser um sacerdote, se atreveria a
pernoitar aqui.
Muso
respondeu prontamente:
—
Sou profundamente grato por vossas amáveis intenções e vossa generosa
hospitalidade. Todavia, lamento que não me tenhais contado sobre a morte de
vosso pai assim que cheguei. Com efeito, embora um tanto cansado, não teria
dificuldade em cumprir o meu dever de sacerdote, realizando o serviço religioso
antes de vossa partida. E é o que farei, assim que vos retireis. Permanecerei
com o defunto até a manhã. Ignoro a que vos referis ao mencionar o perigo que
se corre quando se fica aqui sozinho. Mas não temo fantasmas ou demônios.
Portanto, eu vos peço que não vos inquieteis com a minha sorte.
O
jovem pareceu satisfeito com tais garantias. Assim, expressou a sua gratidão
com as palavras adequadas. Os demais membros da família, assim como os aldeões
reunidos na sala contígua, tendo sido informados das promessas do sacerdote,
foram prestar-lhe os agradecimentos. Depois, disse o dono da casa:
—
Agora, venerável senhor, malgrado muito deploremos vos deixar sozinho, devemos
nos despedir. Segundo as normas de nossa aldeia, nenhum de nós pode permanecer
aqui depois da meia-noite. Nós vos imploramos, amável senhor, que cuideis de
vosso honorável corpo enquanto não estivermos aqui para vos servir. Se, por
acaso, ouvirdes ou virdes alguma coisa estranha durante a nossa ausência, por
favor dizei-nos quando voltarmos pela manhã.
Todos,
em seguida, deixaram a casa, exceto o sacerdote, que foi para o quarto onde
jazia o cadáver, estendido em meio às habituais oferendas, à luz de uma pequena
lâmina budista — a tomyo. Proferindo os termos rituais, o sacerdote
realizou as cerimônias fúnebres, entrando, depois, em estado de meditação.
Assim permaneceu, em silêncio, durante várias horas. Nenhum ruído se elevava na
aldeia deserta. Mas, quando o silêncio da noite se fazia mais profundo, uma
forma vaga e ampla entrou silenciosamente. Naquele mesmo instante, Muso se viu
impedido de falar ou mover-se. Ele viu que a Forma se apoderava do cadáver,
como se tivesse mãos, e o devorava mais rapidamente do que um gato devora um
rato. Começou pela cabeça e depois prosseguiu, comendo tudo: o cabelo, os ossos
e até mesmo a mortalha. E a Coisa monstruosa, após consumir todo o corpo,
voltou-se para as oferendas e igualmente as devorou. Depois, foi embora tão
misteriosamente quanto havia chegado.
Quando
os aldeões voltaram na manhã seguinte, encontraram o sacerdote a aguardá-los na
porta da casa. Todos o cumprimentaram. E, quando entraram, e olharam ao redor,
não manifestaram surpresa alguma com o desaparecimento do cadáver e das
oferendas. Mas o dono da casa disse a Muso:
—
Venerável senhor, certamente vistes coisas desagradáveis durante a noite...
Estávamos todos preocupados convosco. Mas, agora, estamos muito felizes por
encontrar-vos são e salvo. Com grande satisfação teríamos ficado convosco, se
tal nos fosse possível. Mas as regras da nossa aldeia, como vos disse ontem à
noite, nos obrigou a abandonar a casa após o óbito, deixando o corpo sozinho.
Sempre que esta regra foi infringida, sobreveio algum portentoso infortúnio.
Mas, se à norma rendemos observância, descobrimos que o cadáver e as oferendas
desaparecem durante a nossa ausência. Talvez tenhais vós visto a causa.
Então
Muso falou sobre a Forma sombria e terrível que penetrara na câmara mortuária
para devorar o cadáver e as oferendas. Ninguém pareceu surpreso com a
narrativa. O dono da casa observou:
—
O que vós acabais de nos dizer, venerável senhor, coincide com o que se tem
dito sobre o assunto desde os tempos ancestrais.
Muso,
em seguida, perguntou:
—
O monge da colina costuma realizar os serviços fúnebres para os vossos mortos?
—
Que monge? — perguntou o jovem.
—
O monge que, ontem à noitinha, me indicou esta aldeia — respondeu Muso. —
Cheguei ao anjitsu, que fica na colina. Ele me recusou abrigo, mas me
ensinou como chegar aqui.
Os
ouvintes se entreolharam com uma expressão de espanto. Após um instante de
silêncio, o dono da casa disse:
—
Venerável senhor, na colina não há monge ou anjitsu algum. Há muitas
gerações que nenhum monge reside nesta região.
Muso
nada mais disse sobre o assunto, pois era evidente que os seus amáveis
anfitriões acreditavam que ele houvera sido iludido por algum trasgo. Mas, após
se despedir, e obter todas as informações necessárias para prosseguir o seu
caminho, decidiu procurar o eremita da colina para assim verificar se realmente
havia sido enganado. Achou o anjitsu sem dificuldade. E, desta feita, o
ancião o convidou a entrar. Quando Muso entrou, o eremita prostrou-se
humildemente diante dele, exclamando:
—
Ah, que vergonha! Estou muito envergonhado! Estou extremamente envergonhado!
—
Não deveis sentir vergonha por haver-me negado abrigo — disse Muso. — Vós me
indicastes a aldeia, onde fui muito bem acolhido e eu vos agradeço por este
favor.
—
A ninguém eu posso oferecer abrigo — respondeu o eremita —, e não me envergonho
pela minha recusa. Eu me constranjo porque vós me vistes em minha verdadeira
forma... pois fui eu quem devorou o cadáver e as oferendas, diante de vossos
próprios olhos, na noite passada. Sabei, venerável senhor, que sou um jikininki,
um devorador de carne humana. Tende, pois, piedade de mim, permitindo que eu
vos confesse o secreto pecado que me reduziu a esta condição.
“—
Há muito, muito tempo, era eu sacerdote nesta desolada região. Não havia outro
sacerdote num raio de muitas léguas. Naquela época, os montanheses traziam para
cá os corpos dos seus mortos, às vezes vindos de grandes distâncias, para que
eu prestasse os serviços sagrados. Mas eu realizava os serviços e os rituais
apenas visando ao lucro. Pensava apenas na comida e nas roupas que a minha
sagrada profissão me proporcionava. E por causa deste ímpio egoísmo renasci,
imediatamente após a minha morte, como um jikininki. Desde então, tenho
sido obrigado a alimentar-me de cadáveres das pessoas que morrem neste
distrito. Devo devorar cada um dos que morrem da maneira como vós presenciastes
na noite passada. Agora, reverendo senhor, eu vos peço que realizeis um
sacrifício segaki em meu favor. Ajudai-me com vossas orações. Eu vos
imploro para que prestamente me liberteis deste hediondo estado de
existência...”
Mal
o eremita formulou este pedido, desapareceu. No mesmo instante, o eremitério
também desapareceu. E Muso Kokushi encontrou-se a sós, ajoelhado sobre a grama
crescida, junto a um antigo sepulcro coberto de musgos, que tinha a forma
chamada go-rin-ishi, e que parecia ser o túmulo de um sacerdote.
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