UM HOMEM COM DUAS VIDAS - Conto Clássico Sobrenatural - Ambrose Bierce


 

UM HOMEM COM DUAS VIDAS

Ambrose Bierce

(1842 – c. 1914)

Tradução de Paulo Soriano

 

Eis a estranha história de David William Duck, por ele mesmo contada. Duck é um velho homem que mora em Aurora, Illinois, onde é universalmente respeitado. Ele é comumente conhecido, no entanto, como "Duck Morto"[1].

“No outono de 1866, eu era um soldado raso da Décima Oitava Infantaria. Minha companhia era uma das que estavam estacionadas no Forte Phil Kearney, comandadas pelo Coronel Carrington. Todos estão um tanto familiarizados com a história daquela guarnição, particularmente com o massacre impingido, sem sobreviventes, pelos Sioux a um destacamento de oitenta e um soldados e oficiais, como resultado da desobediência às ordens de seu comandante, o bravo — malgrado imprudente — capitão Fetterman. Quando isto ocorreu, eu me esforçava por entregar correspondências oficiais importantes para o Forte CF Smith, no Big Horn. Como o país fervilhava de índios hostis, viajei à noite e me escondi o melhor que pude antes do amanhecer. Para melhor fazê-lo, fui a pé, armado com um rifle Henry, trazendo comigo ração para três dias na mochila.

“Para o meu segundo esconderijo, escolhi o que parecia, na escuridão, um estreito desfiladeiro que se infiltrava numa cadeia de colinas rochosas. Continha múltiplos altos carvalhos, que se destacavam nas encostas dos outeiros. Atrás de uma dessas árvores, num tufo de sálvia, estendi minha esteira e logo adormeci. Eu mal havia fechado os olhos — embora, na verdade, ainda não fosse meio-dia — quando um disparo de rifle me acordou. A bala incrustou-se no carvalho acima de mim.  Um grupo de índios havia-me perseguido e quase me cercara. Mas o tiro fora disparado com uma pontaria execrável por um sujeito que me avistara da encosta acima. A fumaça de seu rifle o traiu e, assim que eu me pus de pé, ele se ergueu e rolou pela encosta. Então, curvando-me, corri, esquivando-me — entre os tufos de sálvia — de uma tempestade de balas disparada por inimigos invisíveis. Os patifes não se ergueram, nem saíram em disparada em meu encalço — o que me pareceu um tanto estranho, pois eles deviam estar cientes, pelo meu rastro, que tinham de lidar com um homem apenas. A razão daquela inércia logo ficou clara. Eu sequer havia percorrido cem jardas quando cheguei aos confins de minha fuga: a cabeça da ravina que eu tinha confundido com um desfiladeiro. Terminava numa saliência côncava de rocha, quase vertical e desprovida de vegetação. Naquele beco sem saída, fui pego como um urso num cercado. A perseguição era desnecessária: eles só tinham que esperar.

"Então, aguardaram. Por dois dias e duas noites, agachado por detrás de um rochedo encimado por uma alfarrobeira, e com o penhasco às minhas costas, padecendo da agonia de sede e sem esperança alguma de salvação, lutei à longa distância, atirando ocasionalmente na direção da fumaça dos rifles inimigos, como estes faziam comigo. Claro que eu não ousava fechar os olhos à noite e a falta de sono torturava-me intensamente.

“Recordo-me da manhã do terceiro dia, que eu sabia que seria o último. Lembro-me, um tanto indistintamente, que, em meu desespero e delírio, saltei para o campo aberto e pus a disparar sem que visse contra quem atirava. E nada mais me lembro daquela batalha.

“Recordo-me apenas de ter saído de um rio ao cair da noite. Eu não tinha um trapo de roupa e nada sabia quanto ao meu paradeiro, mas, durante a noite inteira segui, com frio e com os pés doloridos, em direção ao Norte. Ao raiar do dia, encontrei-me no Forte CF Smith, meu destino, mas sem os documentos que levara. O primeiro homem que encontrei foi um sargento chamado William Briscoe, que eu conhecia muito bem. Você pode imaginar o seu espanto ao me ver naquela condição, e o meu assombro, quando ele me perguntou quem diabos era eu.

“— Dave Duck — respondi. — Quem mais poderia ser?

“Ele me encarou como uma coruja.

“— Parece mesmo — disse ele, e observei que se afastou um pouco de mim.  — E daí? — acrescentou.

“Contei o que me acontecera no dia anterior. Ele me ouviu, perscrutando-me ainda. Então, disse:

“— Meu caro amigo, se você é Dave Duck, devo informá-lo de que o enterrei há dois meses. Estava com um pequeno grupo de batedores e encontrei seu corpo, cheio de buracos de bala e há pouco escalpelado — um tanto mutilado também, lamento dizer —, exatamente onde você diz ter lutado. Venha à minha barraca e eu lhe mostrarei a sua roupa e algumas cartas que tirei de sua pessoa; o comandante leu as missivas.

“Ele cumpriu essa promessa. Mostrou-me a roupa, que vesti resolutamente; e as cartas, que coloquei no bolso. Sem fazer-me qualquer objeção, conduziu-me ao comandante, que ouviu a minha história, e ordenou friamente a Briscoe que me levasse ao xadrez. No caminho, eu disse:

“— Bill Briscoe, você realmente enterrou o cadáver que encontrou nessas roupas?

“— Claro que sim — ele respondeu. — Exatamente como eu lhe disse. Era Dave Duck, sem dúvida alguma. A maioria de nós o conhecia. E agora, seu maldito impostor, é melhor dizer-me quem realmente é.

“— Eu daria tudo para sabê-lo — respondi.

“Uma semana depois, escapei do xadrez e saí da região o mais rápido que pude. Voltei duas vezes, procurando aquele lugar fatídico nas colinas, mas não consegui encontrá-lo.”



[1]Ou “Pato Morto”.  Em inglês, “Dead Duck”.

Comentários

  1. Amigo, vou ler este ! Tranquilão aqui no domingo de manhã. E pode publicar o conto do Velho, aquele que escrevi!

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  2. eu acho que já tinha lido esse conto, mas os contos bons a gente relê e como são tão bons, eles em releituras se tornam melhores ainda.

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  3. Barão amigo, este daria um roteiro porreta para a nova revista de faroeste da mesma editora da Calafrio (em sua terceira fase pela terceira editora, InkBlood). Eles acabaram de lançar um gibi de faroeste, histórias avulsas de bang bang. Faroeste puro com doses de terror.

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  4. olha, o Bierce realmente era genial; pode-se interpretar que o protagonista tenha saído com seu corpo glorioso, imortal. Não duvido que tenhamos uma versão física ou semifísica ao morrermos, e esse corpo glorioso, hiperespacial, possa viver por algum tempo no mesmo mundo físico onde seu corpo perecível, material, morrera. O Bierce realmente é um gênio. Arrisco dizer que ele é melhor que Lovecraft e Poe, embora esses dois últimos sejam mais populares, por assim dizer.

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  5. o local deve ser um local com energias místicas que de algum modo duplicou o corpo físico do personagem, fez um clone ou cópia idêntica do físico.

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