A AUTÓPSIA DE SOPHIE RENARD - Conto de Terror - Paulo Soriano
A AUTÓPSIA DE
SOPHIE RENARD
Paulo Soriano
Por
mais que as autoridades se esforçassem em manter sigilo sobre as macabras
circunstâncias associadas à morte do Dr. Llewellyn, o público logo ficou
sabendo, em detalhes, dos horrores impingidos à vítima do homicídio e das
atrozes mutilações de seu cadáver. E isto graças às involuntárias indiscrições
da Sra. Gwrhyr, a velha governanta. Foi ela quem, ao retornar da missa vespertina
de um domingo cinzento e frio, encontrou o corpo vilipendiado do jovem patrão.
Conquanto passasse os sábados e domingos nas casas dos parentes na vizinha
Ponthir, sentira uma necessidade imotivada de retornar a Caerllion naquela
mesma manhã. “Uma compulsão”, dissera ela ao investigador de polícia.
A
polícia bem advertiu a boa senhora das consequências que lhe adviriam se não
mantivesse silêncio sobre tão delicado assunto, mas o fato é que a Sra. Gwrhyr,
como boa católica romana, não poderia deixar de confessar-se ao padre Machen. O
velho pároco, porque quase surdo — embora ele mesmo não soubesse disto —,
exigia dos seus parcos paroquianos, quando lhe faziam as cada vez mais raras
confissões, um grande esforço: eram todos obrigados a elevar o tom de voz a
níveis que não eram minimamente adequados ao sigilo dos confessionários.
Assim,
algumas beatas abelhudas — algo muito comum em lugares diminutos como Caerllion, onde o legista residia — ficaram sabendo que
o Dr. Llewellyn fora encontrado morto sobre a mesa de mármore de sua sala de
estar. Conservava, nos olhos bem abertos, uma expressão vívida e perturbadora. O
peito e o abdome do doutor, que exibiam uma longa incisão forma de ípsilon, haviam
sido abertos e — depois da remoção de vísceras — costurados com linhas próprias
a uma autópsia. Muitos de seus órgãos — inclusive o cérebro — foram
cirurgicamente retirados, pesados e acondicionados em potes de formol. Os
instrumentos empregados naquele macabro procedimento — tesouras cirúrgicas,
pinças de dissecção, bisturis, costótomos, serras etc. —, todos eles tisnados
de sangue, foram dispostos em fila, com meticuloso cuidado, sobre o mármore, ao
lado do corpo. Num criado-mudo, chegado à mesa, havia uma balança de necropsia.
E, sobre a pedra fria, aos pés do cadáver, se via uma inscrição, feita a dedo,
com o sangue do médico assassinado à guisa de tinta:
Je
n'étais pas morte.[1]
O
que deixou a polícia galesa atônita — e disto as beatas mexeriqueiras não
tomaram conhecimento — foi a confirmação de um fato absolutamente impossível: as
digitais encontradas na mesa e nos instrumentos de autópsia pertenciam a uma
pessoa morta há cerca de dois meses. Uma exumação foi feita. Como era inverno,
o corpo ainda estava fresco. As impressões digitais colhidas do cadáver
correspondiam, perfeitamente, às constantes da ficha dactiloscópica mantida nos
arquivos da polícia — a dona das digitais, uma enfermeira estrangeira, havia
sido detida dois anos antes por revidar violentamente a uma investida de um
vagabundo bêbado — e eram as mesmas encontradas sobre a mesa de mármore e nos
instrumentos do crime. Como foram parar lá, era algo que desafiava a astúcia
dos mais brilhantes investigadores galeses. Afinal, os mortos não saem de seus
túmulos para matar pessoas vivas. Alguém se lembrou de que o sepulcro da
estrangeira, quando da exumação, apresentava irrefutáveis sinais de violação. E
— pura loucura! — de dentro para fora. Outros aludiram aos rumores sobre
uma misteriosa mulher loura e nua que, na noite anterior à descoberta do corpo,
teria sido vista a sair da casa do médico falecido. Mas, como as testemunhas
eram crianças travessas, a informação não foi levada em conta. Diversas
suposições foram feitas. Mas conjectura alguma afluiu em auxílio à polícia, que
se viu obrigada a arquivar o caso sem estabelecer suspeitos.
*
Dois
meses antes, o Dr. Llewellyn realizara uma autópsia que o abalou profundamente.
O cadáver era o de uma mulher. Uma jovem de deslumbrante beleza, mesmo na
morte. E tão lindo era aquele corpo inerme que obrigou o doutor a uma revelação
de que jamais cogitara em toda a sua vida profissional:
—
Desculpe-me por isto, Sophie Renard — disse o médico, antes de mergulhar o
bisturi nas carnes frias da beldade. — Farei o possível para deixar o seu rosto
intacto. Se você não estivesse morta, eu me apaixonaria por você.
Terminada
a autópsia, o médico, perplexo, escreveu no atestado de óbito:
“Causa
da morte: desconhecida”.
Sim.
Cada órgão fora examinado à exaustão. Aquele corpo era perfeitamente saudável e
nele não havia qualquer sinal de traumatismo ou de envenenamento. E daquela
mulher não evoluía o olhar transcendente, gélido e insubstancial, que tão
profundamente caracteriza as miradas opacas, perdidas, dos cadáveres. Ao
contrário, parecia mergulhar profundamente no imo do cirurgião, com um poder
incrivelmente eloquente e devastador. Queriam dizer alguma coisa. Algo de trágico e terrivelmente assustador. Enquanto
viveu, o médico, por mais que lutasse contra tal opressão, jamais deixou de
ver, em sonhos, o olhar vivo e perscrutante da bela morta. Acordado, sentia que
a sombra fria e apavorante do cadáver o acompanhava para onde quer que fosse.
*
Um
fato singular, que acometeu de terror o jovem médico, aconteceu cerca de um mês
e meio após a autópsia da jovem dama.
Certa
manhã, no consultório de Casnewydd, o Dr. Llewellyn viu entrar em seu gabinete
de exames ninguém menos que a jovem cuja autópsia havia feito.
Se
não tivesse um coração saudável, o médico teria morrido imediatamente, tão
assustadora que fora aquela visão.
Mas
não, não se tratava de Sophie Renard. Tratava-se de
Marie-Thérèse
Renard, sem dúvida gêmea da dama falecida. Tudo havia sido uma grande
coincidência: a jovem francesa viera em busca de uma cura para uma grande
insônia, seguida de torpores, paralisia noturna e sonhos inquietantes.
Mais
calmo, o médico desculpou-se — era apenas um clínico geral e, às vezes, legista
— e limitou-se a aviar uma receita de sonífero. Recomendou-lhe, contudo, a
assistência de um colega estudioso da mente humana — este enigma que parecia
ainda insondável à luz da ciência do limiar do séc. XX —, e não hesitou em
convidar a beldade loura a um café.
A
moça de profundos olhos azuis acedeu e, em pouco tempo, já eram namorados.
*
No
dia da morte do médico, à tardinha, Marie-Thérèse o visitou em Caerllion. Já
estivera lá antes e se de admirara da profusão de substâncias e medicamentos
exóticos que o médico mantinha em sua farmácia. Mas, desta feita, não seria uma
visita meramente social: havia-lhe prometido a nudez e algo mais que a nudez.
—
Eu tinha uma irmã gêmea, sabia? — disse a francesa, deitando-se, ao comprido,
sobre a mesa de mármore. Fechou os olhos, estirou os braços ao longo do corpo e
deixou que o queixo caísse um pouco, à maneira de um cadáver.
Owen
Llewellyn evitara, até então, fazer qualquer referência à autópsia de Sophie
Renard. Agora, parecia revê-la na mesa de necropsia. Não sabia o que dizer.
—
Foi por isto que eu o procurei — concluiu Marie-Thérèse.
Llewellyn
gelou.
—
Gostaria de saber como ela morreu? — perguntou o médico.
—
Não. Eu sei como ela morreu.
—
Como?
—
Numa mesa de autópsia. Ela tinha paralisia do sono, que evoluía, muitas vezes,
a um estado cataléptico. Não se deram ao trabalho de examiná-la com cautela. Deram-na
por morta. E, então, mataram-na.
—
E você sabe quem fez a autópsia?
Marie-Thérèse
não respondeu. Limitou-se a dizer:
—
Prometi-lhe a nudez e algo mais. Agora, cumprirei a minha palavra. A propósito,
eu sou virgem... Mas acho que você já sabe disto... Espere-me um pouco. Estas
roupas me sufocam.
Caminhou
até a sala de estudos, onde o médico mantinha uma farmácia e um pequeno
laboratório, conjugado a uma saleta de consultas. Quando voltou, estava nua. Trazia
na mão uma seringa com curare, uma substância paralisante.
—
Me reconnais-tu maintenant?[2]
O
corpo lívido da mulher apresentava incisões profundas, grosseiramente
suturadas, como as de um cadáver autopsiado.
Llewellyn
gemeu.
—
Je n'étais pas morte — disse o cadáver, antes de avançar e mergulhar a
agulha no pescoço de seu algoz.
Depois,
apenas o ruído febril de ruginas, tesouras e bisturis.
Paralisado,
o Dr. Llewellyn não pôde gritar. Mas os seus olhos conservavam uma expressão
eloquente e devastadora. Queriam dizer algo de trágico e terrivelmente assustador.
E
foi exatamente aquilo que a Sra. Gwrhyr viu, na manhã seguinte, quando retornou
à casa do doutor, após a missa dominical vespertina.
Imagem da abertura: Enrique
Simonet (1886 – 1927).
Fantastico ! Um dos melhores !
ResponderExcluirEstou sempre aqui, lendo, Barão, amigo.
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